A cidade nunca está pronta: Jonathas de Andrade constrói seu livro a partir de ruínas
Publicado em: 13 de janeiro de 2017Ressaca tropical (Ubu, 2016) é um livro contido por fora, que não chama a atenção de quem passa o olho pela prateleira de Fotografia das livrarias. A capa e as guardas são cinzentas, sem imagens; finas rajadas diagonais, em alto relevo pelo tratamento em verniz, convidam a uma aproximação pelo tato. Ao abrir, o miolo se multiplica feito massa folheada, com páginas avulsas e pequenos livretos inseridos entre cada par, misturando textos e fotografias de texturas e épocas diversas, construindo uma narrativa por estratos.
Notas de um diário anônimo resgatado do lixo, que se estendem de 1973 a 1977, são intercaladas por imagens de quatro fontes distintas: vistas aéreas do Recife em preto e branco da coleção do fotógrafo Alcir Lacerda; fotos em negativo colorido de um acervo amador; imagens de arquivo da Fundação Joaquim Nabuco; e fotos de prédios modernistas dilapidados feitas por Jonathas em 2008.
As fotos de arquivos são indícios de uma cidade que não existe mais, transformada pelas reformas urbanísticas e por outras forças imprevistas – obras do acaso, que sempre entra pelas frestas –, como uma grande enchente tropical. Se as tomadas gerais em preto e branco põem em evidência a topografia do espaço urbano, revelando a arquitetura da cidade, as fotografias coloridas nos aproximam dos personagens, em geral jovens felizes congelados em momentos fugazes.
Por onde andará a morena flagrada com a boca enfiada numa suculenta melancia? Como terá emergido o rapaz de sunga vermelha de seu eterno mergulho na piscina? E os casais que se beijam há quarenta anos, quanto tempo terão durado? Os snapshots do acervo amador refletem o papel central da fotografia como prática social burguesa na segunda metade do século 20. Como em um álbum de família, as identidades e os laços de afeto entre os indivíduos são forjados e reforçados por uma crônica benevolente de suas vidas. A tirar por essas fotos, ela consistia em uma sucessão de encontros fortuitos e momentos de lazer, interrompidos ocasionalmente por pequenas surpresas e acidentes – sinais de que o acaso nunca pode ser totalmente controlado.
A montagem do livro é engenhosa, mas sistemática: logo somos absorvidos pelo ritmo de rotina que se estabelece do início ao fim. As imagens aparecem sempre de duas formas: sangradas na página dupla ou nos encartes posicionados na metade superior do volume. Já o textos vêm sempre em páginas amarelas de menor gramatura, na metade de baixo da lâmina, em uma fonte que simula a estética de máquinas de escrever (os diários originais foram escritos a lápis).
Não sabemos quem é o autor do diário, mas podemos deduzir que é jovem (em idade de vestibular), educado (“Encontrei-me com Rosa Maria… depois de tudo seu orgulho fê-la mostrar-se indiferente”), que precisa trabalhar porém tem tempo para o lazer. Gosta de passear na praia e ir ao cinema (Papillon, drama americano de Franklin J. Schaffner baseado na autobiografia de um prisioneiro, recebe comovida nota), torce para o Náutico, fuma um baseado eventualmente, tem muitos amigos (mas não menciona a família), acredita em Deus.
Suas motivações giram em torno da saúde, trabalho e sexo, não nesta ordem. Ele está quase sempre começando ou terminando um novo relacionamento; iniciando ou terminando em um novo emprego ou processo de seleção – como é tão comum na juventude.
“Estou sob tensão sexual… Uma tremenda ansiedade”, anota o diário em sua última entrada, de 11 de Setembro de 1977 – mas poderia ser o subtítulo do livro. Os trechos reproduzidos registram pelo menos 40 encontros românticos em cerca de quatro anos. A frase “início de romance com…” aparece ao menos dez vezes, com pequenas variantes. Maria Luiza, Sandra, Simone, Litinha, Neide, Gilda, Tita, Rosa Maria, Sidney, Dave, Marta, Euclides, Cecilia, Osvaldo, Ana Maria, duas Marlenes – são alguns dos parceiros citados. A maioria surge uma vez e nunca mais.
A sucessão de recomeços tem o efeito cumulativo de pôr em cheque qualquer ilusão em mudanças duradouras; criam um círculo vicioso em que “tudo muda para permanecer como está”. A edição não cronológica dos textos contribui para esse efeito, muitas vezes apresentando novidades com prazo de validade expirado: novos romances cujo fim já estava anunciado páginas atrás.
De forma análoga, fotografias de andaimes, escombros, acidentes e corpos jovens queimados de sol se sucedem de forma mais ou menos inconsequente. O tempo e o quadro fotográfico nivelam diferentes feições e versões do passado, pondo em curto-circuito a “marcha do progresso”. As obras de hoje são as ruínas da página seguinte; a cidade nunca está pronta.
Uma grande enchente; a morte de um Doutor querido; a revelação (casual) da bissexualidade; sua dispensa da Marinha “por interesse pessoal” de um cabo. Nenhum desses registros interrompe ou muda drasticamente o fluxo da narrativa; pelo contrário: novas peças se acomodam sem sobressaltos à trama (textual e visual) do livro. O tempo passa, distribuindo pequenas realizações e frustrações, sem fartura; o personagem é feliz, mas a tensão nunca vai embora.
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O diário compreende um período histórico em que já não era possível se iludir com as utopias modernas que embalaram as políticas desenvolvimentistas dos anos 50 e 60. Em plena Ditadura Militar, são escassas as notas sobre política. Em 15 de Novembro de 1976, o autor anota sua escolha para vereador nas eleições estaduais daquele ano: José Carlos Vasconcelos. Em 29 de Abril de 1977, escreve que “o comunismo é um sistema que revela uma mente limitada e egoísta” e agradece por viver no Brasil, “que é onde encontramos liberdade de escolha”.
A discussão do legado modernista na América Latina já estava em curso em trabalhos anteriores de Jonathas, como Recenseamento moral da cidade do Recife, de 2007, e Projeto de abertura de uma casa, como convém, de 2009. Nesta última instalação, fotografias da pilhagem de uma construção modernista acompanham uma maquete das ruínas da mesma casa. A destruição estaria prefigurada no projeto, dentro da lógica da especulação imobiliária.
O universo de Ressaca tropical é familiar ao público de outras obras pernambucanas contemporâneas, como O som ao redor e Aquarius, filmes de Kleber Mendonça Filho, e O sonâmbulo amador, romance de José Luiz Passos. Tendo Recife como pano de fundo, assumimos, em todas, a perspectiva de personagens de classe média absorvidos em seus conflitos cotidianos, enquanto uma tensão maior parece pairar, invisível, exercendo pressão sobre a narrativa.
Esse sentido de urgência, no livro, vem pela ação do tempo que se adivinha nas coisas e nos corpos congelados em instantes efêmeros passados, conferindo certa solenidade à narrativa, a despeito da banalidade dos fatos documentados.
Antes de virar publicação impressa, Ressaca tropical compunha um conjunto de 240 peças apresentadas na Bienal do Mercosul, em 2009. O projeto toma forma, segundo o artista, a partir do sentimento de viver “numa cidade-ruína; preciosa, violenta, saqueada, tropical”.
“Essa obsessão contemporânea pelas ruínas esconde a saudade de uma era anterior, que ainda não havia perdido o poder de imaginar outros futuros. O que está em jogo é uma nostalgia da modernidade”, escreve o crítico alemão Andreas Huyssen em Culturas do passado-presente. “A nostalgia pode ser uma utopia às avessas.”
A “ressaca” do título traz a imagem perfeita desse recalque ou rescaldo do passado, daquilo que volta à tona no presente. Neste sentido, as fotografias coloridas são gatilhos nostálgicos ainda mais fortes do que os registros em preto e branco. Daquela juventude tão viva e corpórea, restam apenas esses indícios bidimensionais, bengalas – ou mesmo os alicerces – da memória.
O reconhecimento da cidade como ruína (literal ou metafórica) é a “chave-mestra” da obra, a lente que põe em foco simultaneamente todas as camadas narrativas. Para aproveitarmos melhor essa premissa, contudo, convém abandonar a ideia de arquivos como relíquias, documentos do passado embalsamados no tempo.
Vistos como contemporâneos nossos, essas imagens e textos podem provocar mais do que anseios nostálgicos. “Quase tudo está destruído, mas resta algo. O importante é como nosso olhar põe esse algo em movimento”, sugere o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman em Imagens apesar de tudo. Ele compara as imagens antigas aos escombros: “Quem não sabe olhar atravessa a ruína sem entender”.
Além de apontar para as transformações arquitetônicas, dos costumes, da moda, dos penteados, as fotografias são evidências de como as próprias imagens aparentavam em determinada época, sublinhando a distância entre a cidade percebida e aquela que nos é dada a ver, construída pela retórica fotográfica. Analogamente, um abismo intransponível separa a cidade real da cidade ideal projetada pelas narrativas utópicas.
Reconhecer essas distâncias é tão fundamental quanto saber como agir diante delas. Em vez de idealizar seu fim – projeto fadado ao fracasso –, Ressaca tropical sugere que desse terreno instável – entre o plano e a construção; entre os discursos e as práticas; entre o mundo e suas aparências – novos futuros podem germinar.///
Rony Maltz é fotógrafo e professor de artes visuais. Produtor audiovisual e editor independente pelo selo {Lp} press.
Ressaca tropical
Jonathas de Andrade
design: Elaine Ramos
Ubu Editora, 2016
200 pp., 17,2 × 23,7 cm
A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.
Tags: arte, cidade, ditadura, fotolivro, modernismo, photobook, resenha de livro