Cidade em carne viva: resenha de “Maldicidade”, de Miguel Rio Branco
Publicado em: 7 de outubro de 2015O que há dentro do pacote que aparece duplamente na fotografia da capa de Maldicidade? Uma garrafa? Um maço de dinheiro? Drogas? Ou esperança? Um pacote sempre guarda algum tipo de surpresa para a mão que o abre, mas a imagem é cruel: uma mulher deitada, talvez dormindo, talvez desmaiada ou mesmo morta, não o vê e não pode alcançá-lo. É a maldição da metrópole que recai sobre os marginalizados: a esperança sempre tão próxima, e quase sempre inalcançável.
Assim Miguel Rio Branco nos introduz a seu décimo sexto livro – de acordo com o site do próprio artista, sem contar os inúmeros catálogos –, editado pela Cosac Naify. Maldicidade traz imagens feitas entre 1970 e 2010 em cidades de Estados Unidos, Brasil, Japão, Cuba e Peru, mas essa informação pouco importa em seus livros. Miguel integra uma vertente de fotógrafos que acumula fotografias através do tempo, captando-as mais de acordo com seus interesses do que com uma preocupação temática. Ele já afirmou inclusive pensar que a fotografia tende a ficar chata quando é “muito temática”, e seu trabalho acaba se voltando em boa parte à ressignificação de seu próprio acervo para gerar novas obras, sejam elas exposições ou livros.
Maldicidade é uma obra magistral. Logo de cara, o artista nos convida a pegar carona num dos carros abandonados ou destruídos que aparecem numa das sequências iniciais do livro – os mesmos que um dia foram o símbolo máximo da metrópole moderna – e sair num passeio errático por uma cidade com as vísceras expostas, repleta de personagens marginalizados e extremamente vulneráveis.
Diferente de seus livros anteriores, nos quais a edição e o layout das páginas se baseavam em relações criadas através de duas imagens lado a lado (ou até três, no caso de Entre os olhos, o deserto) em páginas duplas, em Maldicidade a edição é quase totalmente baseada numa única imagem sangrada a cada página dupla, estratégia já utilizada em Você está feliz?, de 2012.
Creio que tal decisão seja acertada para este livro: no ritmo imposto, o virar de páginas é uma necessidade premente para que se criem conexões narrativas, reforçando o conceito do livro e colocando o leitor numa posição “de passagem”. Mesmo dispensando as conexões mais contemplativas dos dípticos, não há relação fácil ou passagens soltas entre as imagens aqui. O autor é conhecido por ser um exímio editor das próprias fotografias e demonstra estar mesmo no auge.
O resultado é uma narrativa densa, pulsante, que entrecruza retratos de moradores de rua, cães perdidos, prostitutas e presos, com paisagens destruídas, carros abandonados, bocas cheias de dentes de ouro e também comida, muita comida. É um chamado de Miguel Rio Branco a darmos um “pulo nessa imensidão de famintos”, como diz a música “Fome de Tudo” da Nação Zumbi.
Com projeto gráfico do próprio autor, a produção do livro segue a linha de publicações anteriores: capa dura com foto sangrada, papel revestido e boa impressão (Maldicidade foi feito em Portugal, numa das gráficas europeias que têm se especializado em fotolivros). É a visão de Rio Branco para o livro de fotografia, sem complicações ou invencionices – o que há de se respeitar, embora fique uma vontade de que certos detalhes ou materiais fossem melhor pensados. Pequeno mas denso, pesado, o livro carrega uma fotografia em preto e branco com tons majoritariamente cinzas que recobre capa, lombada e quarta capa, criando um objeto interessante: um pequeno tijolo, provavelmente vindo direto da maldita cidade nele retratada.
Diante atual da cena de fotolivros, em que jovens fotógrafos chegam a publicar dezenas de livros no intervalo de poucos anos, dezesseis publicações não parece um número tão grande para um artista com pouco mais de cinquenta anos de carreira. Mas ainda é difícil encontrar paralelos nos dias de hoje com a genialidade de alguns de seus melhores livros, como Nakta (1996), Silent Book (1998) ou o já citado Entre os olhos, o deserto (2001). Maldicidade é mais um que vai direto para essa lista.
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Maldicidade, de Miguel Rio Branco
São Paulo: Cosac Naify, 2014.
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Fábio Messias é fotógrafo, designer gráfico e um dos fundadores do grupo de discussão sobre fotolivros TRAMA.
REPRODUÇÕES: RICARDO IANNUZZI
A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.
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