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Fotografia, performance, isolamento social e identidade de gênero no fotolivro do artista Fe Avila

Andressa Ce & Fe Avila Publicado em: 15 de março de 2022

Fabiano, do livro No encontro tudo se dilui, de Fe Avila, 2022.

Realizado durante a pandemia, o fotolivro No encontro tudo se dilui, do artista Fe Avila, reflete uma visão muito pessoal dos momentos de isolamento social forçado pelos quais passamos desde 2020. Usando uma câmera analógica, Avila fotografou, através da tela do computador, amigos e conhecidos em performances dirigidas remotamente por ele. “Os corpos tinham se transformado em pixels de luz, então ficava pensando o que seria transformar um pixel digital em um grão analógico. Tornar a imagem digital física novamente, na película do filme, em mais uma camada da imagem, e que depois de revelada passa por um processo de scanner digital e volta a ser pixel”, comenta o artista.

Com lançamento previsto para o final desse mês, convidamos a editora e pesquisadora de fotolivros Andressa Ce para uma conversa com Fe Avila sobre o seu processo de criação e a relação da fotografia com a performance e a identidade de gênero.

 

Gracielle, do livro No encontro tudo se dilui, de Fe Avila, 2022.

Você disse que o livro aconteceu em um momento de transformação pessoal e durante o período de isolamento social. De que forma este trabalho se relacionou com este processo de autoentendimento e de identificação como uma pessoa não binária?

Fe Avila: Esse processo de transformação pessoal e identificação como uma pessoa não binária começou um pouco antes da pandemia, em 2017/18, com o auxílio do pensamento de Castiel Vitorino Brasileiro, Paul Preciado, Emanuele Coccia. E com trabalhos e conversas com travestis, pessoas trans e não binárias, fui expandindo as ideias sobre as possibilidades dos nossos corpos, sobre metamorfose, sobre performatividade e cura. Parece que o isolamento social acelerou esse processo de perceber que não me via e não queria mais atuar no papel de homem. Isso me fez voltar à infância e perceber que fui uma criança desobediente de gênero, mas precisei performar o homem que a sociedade esperava para sofrer menos com a violência. Junto com a pandemia vieram outras questões de saúde e morte na minha família de origem, a realidade da finitude da vida, a impossibilidade de me despedir presencialmente de quem morria e o medo da morte, ao mesmo tempo, que sentia um processo de morte em vida, de renascimento, de transformação, desapego e novos começos.

Gosto de pensar a fotografia também como o registro de um tempo. Num impulso decidi iniciar o trabalho convidando as pessoas para fotografar pela tela, de forma intuitiva, pensava em amigues e artistas com quem tinha uma proximidade mínima. O primeiro encontro foi no dia 7 de abril de 2020, com Raphael e André, que estão na capa do livro. Não estava tão claro no começo do trabalho, mas hoje, penso que a série é feita de fotografias de encontros entre pessoas passando por processos de transformação. Recorri à fotografia e aos encontros para entender o que estava sentindo e ouvir sobre o que aquelas pessoas estavam sentindo naquele momento, o que elas e seus corpos queriam contar dos seus processos de metamorfose e autoentendimento. Os momentos e as conversas que tivemos enquanto fazíamos as fotografias foram marcantes e importantes para meu processo, encontrar com as pessoas ajuda a se ver.

Esse processo de autoentendimento não se encerra nesse trabalho. No momento também tenho experimentado a corporalidade em autorretratos e fotoperformances com pessoas da família, e revisitado fotografias da infância, me reencontrando na performatividade daqueles retratos.

 

Seu livro anterior, Corpo presente, é sobre o corpo em contato/conflito. Com este novo projeto existe uma busca por esta mesma ação, mas virtualmente? Como você sentiu a diferença entre o virtual e o real e como isso se reflete na imagem e na forma de se relacionar com os retratados?

FA: Em Corpo presente (2019) o contato/conflito estava bem marcado com as imagens da polícia em oposição às imagens dos corpos em festa, em celebração e luta. Fomos no conceito de biopolítica de Foucault, para falar da máquina que o sistema opera para o controle dos nossos corpos. As fotos nas ruas mostram corpos em ebulição nos anos finais da década, sufocados pelo sistema heteropatriarcal capitalista, tendo as próprias corporalidades como principal arma. Esse movimento vinha numa crescente, não imaginávamos que no ano seguinte estaríamos isolades numa pandemia e que os encontros na rua ficariam suspensos.

Nesse segundo livro, No encontro tudo se dilui, as ruas ficaram vazias e os corpos estão no casulo (talvez o conflito seja mais interno), a relação com as pessoas retratadas tem um protagonismo maior e a câmera está mais próxima. Vejo um corpo se contorcendo, em transição, tentando manter a memória dos encontros de outrora, querendo explodir as fronteiras do gênero e da tela, na expectativa do contato e do encontro com o outro. Uma vontade de ultrapassar a virtualidade, de tentar fazer um encontro que fosse capaz de diminuir a distância física e ficar marcado na memória e no corpo.

Com a virtualidade mudou muita coisa na relação com as pessoas retratadas, principalmente o jogo da performance corporal no momento das fotos. Não tinha o encontro do corpo físico, a pessoa retratada só via minha cara na frente da câmera (fotografei bem próximo à tela do computador, com a lente 50mm). Normalmente me movimento bastante quando estou fotografando, foi estranho ficar sentade numa cadeira enquanto fotografava. Mas facilitou a entrada no ambiente íntimo das pessoas, em suas casas e famílias.

 

Mathea, do livro No encontro tudo se dilui, de Fe Avila, 2022.

A escolha de utilizar papel vegetal em frente a algumas imagens busca reproduzir a barreira que sentiu ao fotografar pelo computador? Pensando na materialidade do livro, como se deu as escolhas dos materiais?

FA: De certa forma sim, as folhas de papel vegetal entram no meio da sequência de imagens simbolizando mais uma das camadas que nos separam nesses encontros pela câmera. O papel translúcido revela o que tem atrás, porém, deixando uma camada de “névoa” na imagem, que acho interessante para essa série onde estava pensando também numa luz saturada como se a imagem estivesse quase desaparecendo, com tanta exposição à luz.

Gosto do fotolivro justamente pela possibilidade de experimentar a materialidade e o toque nas imagens, as escolhas dos materiais foram feitas junto com Martinica Space, que assina o design do livro. O papel couchê brilho foi escolhido pelo efeito de refletir a luz quando manuseamos ou viramos as páginas, rimando com os reflexos da tela do computador que aparece em algumas imagens. A capa de PVC dá uma proteção para o livro e, junto com os vegetais, são os materiais que trazem a cor laranja.

 

David e Kenny, do livro No encontro tudo se dilui, de Fe Avila, 2022.

A performance e o uso do corpo está muito presente em todo seu trabalho. De que forma você enxerga esses elementos dentro do processo de expressividade?

FA: Penso que o corpo é a nossa primeira ferramenta de criação e expressão, o principal instrumento da nossa arte e cultura. A desconexão da nossa espécie do restante dos seres deste universo é uma questão que ronda minha pesquisa, e acredito que ela passa pela desconexão com nosso próprio corpo. Nesse tempo em que o corpo é uma imagem construída na virtualidade, me interessa o corpo real, a conexão com outros seres, a espiritualidade, o transe e o reencantamento dos nossos corpos.

Os encontros com amigas da dança, performance e teatro, influenciaram meu trabalho e o gosto pela performance, como uma das artes que trabalha de forma mais visceral os corpos. Também tenho pensado que na nossa sociedade quase tudo é performance, desde o gênero, até como nos encontramos e andamos na rua, ou no movimento de um corpo com uma câmera fotográfica na mão. Fotografar me faz pensar na performance desse corpo que fotografa.

Fotografar as pessoas em performance para a câmera me atrai também pela adrenalina, há uma tensão no ar, parece que a cortina se abre e estamos em cena, um frio na barriga que acontece naquele momento que fazemos a foto. No caso da fotografia analógica, não vemos a imagem no momento que a estamos fazendo, então gosto de pensar como se a fotografia fosse o registro de uma performance, ou de algo muito maior que aconteceu no momento que a fotografia era feita.

 

Ao utilizar a câmera analógica para fotografar a tela do computador, como você disse “misturando os grãos do analógico com o pixel da tela”, cria-se de certa forma um ritual. Como este processo, assim como a elaboração do enquadramento e direção dos retratados à distância, contribuiu para o resultado final?

FA: Essa pergunta me fez pensar que fotografar é um ritual. Sobre a mistura dos grãos analógicos com os pixels da tela, pensava na materialidade do corpo no ambiente digital. Os corpos tinham se transformado em pixels de luz, então ficava pensando o que seria transformar um pixel digital em um grão analógico. Tornar a imagem digital física novamente, na película do filme, em mais uma camada da imagem, e que depois de revelada passa por um processo de scanner digital e volta a ser pixel. É sobre esse embaralhamento, a fotografia não é digital ou analógica, é híbrida.

A direção dos retratados à distância e a comunicação foi difícil em vários momentos devido às limitações e falhas na transmissão. Ao mesmo tempo, sinto que talvez tenha sido mais fácil tomar as decisões, porque as pessoas participaram mais do fazer a imagem, escolheram como e o que apareceria no quadro. Essa direção compartilhada possibilitou fotografar com mais escolhas da pessoa retratada e brincar com as possibilidades de enquadramento. Eu enquadrava uma parte da tela do computador dentro de um enquadramento feito no posicionamento da câmera, pela pessoa retratada ou por alguém que estava com ela. Então a fotografia é uma reprodução ou um recorte desse enquadramento ou um “autorretrato” do encontro.

Esse processo de fazer as fotos virtualmente acabou se transformando num experimento sobre a linguagem da fotografia, para tentar expandir esse fazer fotográfico que se dá no encontro de uma ou mais pessoas. E contribuiu para que eu chegasse numa imagem mais estourada e numa materialidade granulada/pixelada, aproximando a fotografia do desenho e da gravura.

 

Autorretrato da série Antiédipo, de Fe Avila, 2021

O texto, que costura citações de autores que você leu durante o processo e reflexões feitas por você, está no final do livro. Como foi tomada a decisão de separar estes elementos na diagramação?

FA: No início do projeto do fotolivro o texto era incerto, queria convidar alguém para escrever e não conseguia decidir quem. Chegou um momento, no meio do processo, quando a sequência final das imagens já estava se desenhando, que decidi que era hora de assumir o risco e escrever o texto, junto com as citações de autores que fui lendo nesse período de dois anos.

Enquanto isso, a seleção das imagens que iriam para o livro foi uma etapa bem importante do trabalho e contou com a parceria do Vitor Casemiro e a escuta e olhares de várias pessoas. Quando montava a sequência das imagens pensava em um filme. O cinema é uma grande influência para meu olhar e enquadramento, a ideia era que cada uma das 33 imagens presentes no livro fossem frames de um fotofilme, onde os corpos se transformam enquanto vão se encontrando e se reconhecendo nesse labirinto de espelhos, feito de câmeras e telas. Acredito que as fotografias vistas na sequência têm uma narrativa forte e queria que o texto funcionasse em paralelo às imagens e não como legenda, e que, imagem e texto, pudessem ser lidos separados também. Ainda pensando em cinema, vejo a parte dos textos, nessa diagramação, como os créditos de um filme que sobem na tela depois da última cena, como se revelasse o que estava passando naquelas conversas e encontros enquanto fazíamos as imagens. ///

 

Fe Avila (São Paulo, 1981), pós-graduado em História da Arte, realizou a exposição Masculino dócil (2017) e publicou os fotolivros Corpo presente (2019) e No encontro tudo se dilui (2022). Artista em transformação, no presente trabalha com a fotografia e pensa na performance e na materialidade das imagens. Interessade em pensar a câmera como ferramenta para mediar uma outra forma de encontro, na experimentação da corporalidade e da performatividade para além das fronteiras de gênero.

Andressa Ce é editora independente, pesquisadora de fotolivros e artista visual criadora do projeto Histórias nem tão reais.

 

 

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