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A materialidade da fotografia: resenha do livro-catálogo “Coleção Masp FCCB”

Heloisa Espada Publicado em: 2 de junho de 2016

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A incorporação de parte do acervo do Foto Cine Clube Bandeirante ao Museu de Arte de São Paulo é um passo decisivo no processo de reconhecimento do papel do clube na história da arte brasileira e ocorre num momento de valorização dessas mesmas obras no mercado de arte nacional. Coincide, além disso, com a compra de fotografias de modernos ligados ao FCCB por instituições internacionais como a Tate Modern de Londres e o Museu de Arte Moderna de Nova York.

O livro Coleção Museu de Arte de São Paulo Foto Cine Bandeirante cumpre a dupla função de ser catálogo da exposição Foto Cine Clube Bandeirante: do arquivo à rede, realizada entre novembro de 2015 e março de 2016, com curadoria de Rosângela Rennó, e de apresentar a coleção completa cedida ao Masp. Além das 275 imagens vindas do FCCB – realizadas por 82 de seus sócios entre 1939 e 1980 –, o livro incorpora mais quatro fotografias doadas por conselheiros do museu. Como defendem Adriano Pedrosa, curador-chefe do Masp e organizador do volume, e Heitor Martins, diretor executivo do museu, a importância de reunir o conjunto num único volume está, sobretudo, em seu potencial de instigar novas pesquisas sobre o legado do FCCB.

Composta por vintages de Geraldo de Barros, José Oiticica Filho, Valêncio de Barros, José Yalente, Thomaz Farkas e tantos outros, a coleção possui verdadeiros tesouros dos anos 1940 e 1950. Esses trabalhos representam muito mais do que o fetiche pela cópia de época. Em tempos de desmaterialização da imagem, as fotos são documentos de materiais e tecnologias em desuso, testemunhas de uma cultura fotográfica que não existe mais.

Um dos aspectos mais interessantes do livro é o registro de todas as fotografias, frente e verso, de maneira que a parte da frente coincide com a parte de trás da imagem impressa no lado oposto de uma mesma página. Os carimbos informam os salões, as datas e os lugares por onde as fotos circularam, em várias partes do Brasil e do mundo, evidenciando o alcance da rede de contatos estabelecida pelo FCCB ao longo de quatro décadas. A escolha remete a um tipo de abordagem teórica que passou a ser reivindicada a partir do fim dos anos 1970, na qual o contexto e a forma de circulação das fotografias são considerados como determinantes. Autores como Jonh Tagg, Allan Sekula, Victor Burgin, Abigail Solomon-Godeau e Douglas Crimp procuraram, desde então, interpretar a fotografia num campo amplo da cultura, muitas vezes sob um ponto de vista sociológico, negando a possibilidade de a imagem fotográfica possuir uma identidade própria.

O auge das trocas entre fotoclubes ocorreu no segundo pós-guerra, sobretudo, nos anos 1950, quando a Europa assistiu a uma retomada da estética da fotografia moderna realizada nos anos 1920 que havia sido banida pelos regimes fascistas. O cosmopolitismo do FCCB coincide com o fenômeno internacional de ativação das trocas culturais entre países após o fim da guerra. Coincide também com a atuação do fotógrafo alemão Otto Steinert, sediado em Essen, como divulgador de uma estética moderna pautada no experimentalismo técnico e formal, denominada por ele como fotografia subjetiva, a partir de 1951. A produção moderna do FCCB tem muitos pontos em comum com essa fotografia de origem alemã que, ao longo dos anos 1950, se tornou um estilo internacional. Steinert criou uma ampla rede de difusão da fotografia subjetiva na Europa e em outros continentes, mantendo contato com o FCCB desde o início dos anos 1950. O momento mais significativo dessa relação ocorre em 1955, quando o clube patrocinou a realização da mostra Otto Steinert e seus discípulos no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

A materialidade e as funções sociais da fotografia são extrato de boa parte da obra de Rosângela Rennó como artista, diga-se de passagem, o que agrega ainda mais interesse a sua atuação como curadora da mostra Foto Cine Clube Bandeirante: do arquivo à rede. Por outro lado, em seu texto para o livro-catálogo, Rennó por vezes parece confundir a ideia de “fotografia amadora”, tal como empregada no contexto do fotoclubismo, com o conceito de fotografia vernacular, no sentido de popular, doméstica e não erudita. A curadora inicia sua apresentação com uma citação de Douglas Crimp em que o autor defende que a multiplicidade de sentidos e o caráter não artístico da fotografia seriam uma ameaça à ideia de museu como reservatório de objetos de sentido especial, para não dizer sagrado. Rennó, por sua vez, seguindo a argumentação de Crimp, reinvindica a importância da entrada da fotografia no museu como um fator de transformação do mesmo, devido justamente a seu caráter “impuro”, pois carregado de história e cultura não erudita. No entanto, no contexto específico dos fotoclubes, a expressão “fotografia amadora” foi usada para denominar a produção de amadores que tinham a fotografia como hobby, ou de jovens iniciantes que pretendiam se profissionalizar. De todo modo, desde o surgimento dos primeiros fotoclubes, em fins do século XIX, até as abstrações modernas dos anos 1950, o objetivo dos clubistas seguiu sendo justamente o reconhecimento da fotografia como uma expressão artística nos moldes das belas-artes. Os “amadores” dos fotoclubes sempre desejaram diferenciar suas imagens de uma fotografia de caráter mecânico, popular e doméstico. Ou seja, o que os clubistas buscavam não se confunde com o caráter não hierárquico, vernacular, científico, documental e publicitário que contaminou o universo das artes por meio da fotografia, sobretudo a partir dos anos 1960, com a emergência da arte pop e da arte conceitual.

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O livro apresenta ainda um texto de Helouise Costa sobre o processo de assimilação da fotografia pelos museus de arte no Brasil, com foco especial no caso do Masp, o que inclui o interesse de Pietro Maria Bardi pela incorporação da fotografia às atividades da instituição, desde sua inauguração, em 1947. Curadora e professora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – além de autora do primeiro estudo sobre o legado do FCCB, o seminal A fotografia moderna no Brasil –, Costa traça também um panorama geral da história do fotoclubismo e apresenta uma análise do Salão Paulista de Arte Fotográfica, evento anual promovido pelo FCCB entre 1942 e 1989, com riqueza de detalhes, documentação e fontes inéditas sobre o assunto. O salão realizado na Galeria Prestes Maia, no centro de São Paulo, foi o principal termômetro do caráter cosmopolita da rede de contatos estabelecida pelo FCCB.  Em 1951, por exemplo, o X Salão Paulista de Arte Fotográfica recebeu a inscrição de cerca de 3 mil fotografias, realizadas por 935 fotógrafos, de 40 países diferentes.

Helouise Costa procura também diferenciar a chamada “Escola Paulista” – produção de caráter moderno surgida no interior do FCCB, na década de 1950, e pautada na fotografia de vanguarda européia e norte-americana dos anos 1920 – das obras dos sócios como um todo, marcadas por um ecletismo de qualidade bastante irregular. O Boletim Foto Cine, periódico publicado pelo FCCB, retrata sobretudo as atividades de um clube social. Nos anos 1940 e 1950, além da publicação de dicas técnicas e eventos sociais, a principal pauta do Boletim é a discussão sobre o caráter artístico da fotografia. Na década de 1940, predominam argumentos em defesa do pictorialismo; na de 1950, o fortalecimento da ideia de “fotografia artística” através da exploração criativa de seus próprios meios, a saber, a composição, o jogo de luz e sombras, o ponto de vista.

O fato é que essa passagem do pictorialismo ao moderno não é linear. Mesmo nos anos 1950, o Boletim publicou cenas urbanas e composições geométricas identificadas com a ideia de moderno, ao lado de retratos de animaizinhos e bebês. Alguns fotógrafos reconhecidos hoje como membros da Escola Paulista, como Gaspar Gasparian e Eduardo Salvatore, transitaram sem compromisso por diferentes estilos, sem perseguir uma determinada ideia ou vertente estética. Nesse sentido, são poucos os fotógrafos que, mesmo nos tempos áureos do pós-guerra, desenvolveram uma obra coerente e com força para romper com os limites da agremiação. Entre esses artistas, os nomes mais conhecidos são os de Thomaz Farkas, Geraldo de Barros, German Lorca e José Oiticica Filho.

Costa menciona também as dificuldades enfrentadas pelo clube, a partir dos anos 1960, de estabelecer relações produtivas com o meio artístico e comenta ainda a falta de pesquisas sistemáticas sobre a atuação do FCCB a partir dessa data. Isso ocorre, principalmente, porque os membros do clube continuaram a perseguir um ideal de “fotografia artística” que era a antítese da produção conceitual, ou, mais exatamente, era aquilo que a arte conceitual mais questionava e rechaçava. Além disso, a fotografia clubista ficou à margem do engajamento social, político e estético do melhor fotojornalismo brasileiro dos anos 1960 e 1970 desenvolvido por nomes como Claudia Andujar, David Drew Zingg, George Love e Maureen Bisilliat. Por fim, a mistura cada vez maior da fotografia com outras formas de arte foi também o avesso da vontade de especificidade defendida no contexto do clube.

Coleção Museu de Arte de São Paulo Foto Cine Bandeirante deixa clara a importância do clube como parte significativa da história da fotografia moderna no país. Porém, persistem dúvidas sobre a relevância cultural do FCCB a partir dos anos 1960. Ao observar o portfólio, pergunta-se sobre a pertinência de uma estética modernista que, ao longo dos anos 1970, significa não mais que a diluição de um formalismo que perdeu seu potencial utópico. Há poucas exceções, como os trabalhos de Ivo Ferreira da Silva e Raul Eitelberg, que, no entanto, ainda precisam ser melhor avaliados. Até que se mostre o contrário, a partir dos anos 1960 a produção do FCCB parece ter se tornado refém da “rede” social estabelecida pelos contatos do clube. Essa rede se torna um porto seguro que, ao restringir a circulação das obras ao circuito do fotoclubismo, impede uma penetração mais efetiva desses trabalhos na sociedade.

Nesse aspecto, o livro-catálogo surge como uma ferramenta central e inédita da análise da produção clubista entre as décadas de 1960 e 1980. Além disso, num momento em que sua produção dos anos 1950 já tem lugar consolidado na história da fotografia no país, pode ser uma valiosa oportunidade de reavaliação de trabalhos ainda pouco estudados. É necessário, sobretudo, cotejar obras e discursos, sabendo tanto reconhecer talentos como contradições, incoerências e irregularidades que também fazem parte dessa história.///

Heloisa Espada é curadora no Instituto Moreira Salles.

 

A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.

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