O álbum do estranhamento familiar na fotografia de Ilana Bar
Publicado em: 25 de setembro de 2017Toda foto de família é ao mesmo tempo o documento visual de uma comunidade real e um olhar lançado sobre uma comunidade imaginária. Toda família, por sua vez, é também a soma dos rituais e meios que utiliza ou inventa para se autoafirmar, se inscrever e se situar no mundo. Esses gestos de inscrição movem-se pela necessidade cultural de um dispositivo de memória portátil, no qual uma constelação de afetos se enlaça à exemplaridade das narrativas visuais, tornando-as objetos capazes de transmitir aos descendentes uma identidade coletiva e uma tecedura complexa de hierarquias e emoções.
Todo álbum de família quer ser um tecido que conserva o calor da vida e, intencionalmente ou não, mobiliza sensações de pertencimento, origem, herança, vulnerabilidade.
Amplamente difundido a partir do final do século 19, o hábito familiar de tirar fotos para criar álbuns remete antes à prática amadora da fotografia do que ao trabalho de fotógrafos profissionais ou de artistas que tem a fotografia como linguagem primordial. Isso foi determinante para a abordagem desse tipo de imagem, sendo bastante recente a entrada dos álbuns de família no rol dos objetos considerados atraentes pela teoria crítica e dignos de inclusão nos livros de história da fotografia. Como vem apontando insistentemente a pesquisadora dinamarquesa Mette Sandbye, a maior parte da bibliografia sobre a teoria fotográfica não chega sequer a mencionar essa prática, por muito tempo relegada ao interesse exclusivo de antropólogos e de alguns poucos cientistas sociais.
Portanto, não surpreende que os aspectos mais propriamente estéticos e as escolhas formais – conscientes ou não – dessas imagens tenham sido pouco ou nada considerados, com leituras interessadas quase exclusivamente na sua dimensão de documento social. Apesar disso, seja no contexto artístico, seja no campo amador da produção e circulação de imagens, toda foto de família explora e reelabora as expressões afetivas de uma comunidade, colocando em cena a trama dos laços interpessoais, os modos de vida e a autoimagem que esses pequenos grupos desejam perpetuar.
As fotos da jovem fotógrafa paulistana Ilana Bar (1988) se inscrevem nesse circuito e colocam desafios ao olhar contemporâneo. Seu trabalho evidentemente foge às convenções dos álbuns de família, mas é impossível pensá-lo sem considerar o diálogo fértil que estabelece com essa prática.
Transparências de lar, a série aqui apresentada, foi realizada ao longo dos últimos 10 anos com foco no ambiente em que um grupo de pessoas vive na cidade de Atibaia (interior de São Paulo), e é ao mesmo tempo um trabalho de investigação sobre um microcosmo social singular – o da sua própria família – e um experimento de tensionamento e fluência entre contingência e performance, ritmo cotidiano e suspensão temporal. As imagens estabelecem, com um olhar silencioso – um olho que respira –, um contrato visual baseado na observação íntima de um espaço que ela parece ao mesmo tempo habitar profundamente e visitar casualmente. São fotografias desprovidas de truques formais, mas extremamente cuidadosas em sua construção cênica e espacial, com algumas leves pontuações ficcionais que parecem apontar para o que há de inacessível nesse ambiente.
Perguntada sobre os processos que levaram à criação da série, Ilana diz que não foi algo premeditado, o projeto “foi se formando, acho que desde que comecei a praticar fotografia comecei esse trabalho. Mas não sabia que estava começando, não fiz uma decisão do tipo ‘vou fazer um projeto sobre minha família’. Eu gosto de tirar fotos em casa, porque é propício e confortável.” Esse caráter de pesquisa espontânea se alia aqui à potência dos enquadramentos, nem formalistas nem frouxos. A família é ao mesmo tempo um mundo paralelo e um fragmento de mundo sem totalidade recuperável. E nós, que o acessamos através do olhar de Bar, não somos nem intrusos, nem voyeurs, mas tampouco pertencemos a ele. O enquadramento cria a distância visual necessária para que possamos observar o ritmo da vida humana de um ponto de vista que não promete nomes próprios, nem enredos específicos, mas não se esquiva da carga narrativa que todo agrupamento familiar arrasta consigo.
Uma situação visual no limiar entre o pertencimento e a visitação, entre a densidade misteriosa de um torpor cotidiano e o fulgor de pequenos instantes de prazer.
Esse conjunto de fotos não apenas inscreve o nome de Ilana Bar dentro de uma longa tradição do olhar fotográfico, mas cria uma situação visual no limiar entre o pertencimento e a visitação, entre a densidade misteriosa de um torpor cotidiano e o fulgor de pequenos instantes de prazer. Sem dúvida a fotógrafa está muito próxima das pessoas que retrata, mas seu olhar cria uma espécie de afastamento ou defasagem lírica que potencializa a composição das cenas. Um homem fechando o portão de casa, dois outros nadando em um lago, a troca de fraldas de um bebê.
Ao contrário do que ocorre tradicionalmente nos álbuns de família, Ilana não se centra em eventos especiais ou festas comemorativas – ocasiões em que as famílias costumam se fazer fotografar – mas num cotidiano coberto por um véu ficcional, que ela maneja com sutileza, sem deixar que tudo seja absorvido pela teatralidade, ou que as pessoas se convertam em personagens. Os homens com Síndrome de Down remetem de forma direta à questão da herança no nível da transmissão genética e fisionômica, mas nas fotos o que mais chama atenção é o modo como ela articula a relação entre as figuras. Os vínculos familiares nunca ficam totalmente claros, o que nos leva inclusive a indagar se esse “lar” de que fala o título da série não poderia ser uma comunidade de outro tipo – os homens podem ser irmãos gêmeos, mas também primos ou simplesmente amigos. Essas dúvidas são mais um índice da subversão do modus operandi tradicional dos álbuns de família, em geral guiados pelo dever de reter e transmitir com clareza a árvore genealógica, fixando para os descendentes e futuros espectadores a estrutura das relações e suas posições na hierarquia familiar.
O pesquisador Richard Chalfen, autor de Versões instantâneas da vida (Snapshot Versions of Life, de 1987) tem razão ao sinalizar que fotos de família são também um ato significativo dentro da economia comunicacional de seus membros. Ao se fotografarem e se deixarem fotografar, os integrantes de uma família estão antes de mais nada se relacionando. Ao destacarem sua imagem para criar um material transmissível, encetam um ritual de dobra reflexiva do olhar em direção a sua própria estrutura comunitária. Em geral essa reflexão tem um forte caráter de fixação de valores, mas algo diferente acontece nas fotos de família de Ilana: aqui não sabemos exatamente o que se está preservando ou fixando como herança e valor a transmitir, cria-se assim uma abertura ambígua, o espectador irá aproximar-se dessas fotos não tanto movido pelo interesse de encontrar aí uma pequena história familiar, mas de participar do olhar da própria fotógrafa que nos devolve o estranho-familiar dos laços de afeto e convivência nessa casa que é um abrigo e também um caminho para o seu fora: a floresta, o rio.
O escritor francês Maurice Blanchot situou o cotidiano do lado do irrepresentável chamando atenção para a falácia de que o dia a dia seria autotransparente e por isso facilmente captável, enunciável ou fotografável. As transparências fotográficas de Ilana Bar parecem se fundar num princípio atento a essa falsa impressão de tradutibilidade total e documental do cotidiano, e por isso opta por uma espécie de translucidez misteriosa. Arriscaria dizer que esse véu advém da posição paradoxal na qual a fotógrafa se coloca para observar a própria família, conjugando distância e intimidade, semelhança e diferença, suas fotos são também um modo de enfrentar – com delicadeza e atrevimento – o desafio ético de retratar a vida privada de seus próximos, sem nunca expor o seu segredo. Assim, o cotidiano da casa e da família se converte naquilo que há ainda por descobrir, pois nunca se deixa totalmente enquadrar. Concebido frequentemente como uma espécie de elogio do presente, aqui o cotidiano emerge com sua estranheza, e nos coloca mais perto do enigma contido no funcionamento de toda comunidade humana.
Ilana Bar (1988) é fotógrafa e artista. Formou-se em fotografia pelo Centro Universitário Senac. Nascida em São Paulo, cresceu em Atibaia e hoje transita entre estas duas cidades.
Laura Erber é escritora, artista visual e professora do departamento de Teoria do Teatro da UNIRIO. Autora de Os corpos e os dias (Editora de Cultura, 2008), Ghérasim Luca (EdUERJ, 2012), Esquilos de Pavlov (Alfaguara, 2013) e A Retornada (Relicário, 2017). Dirige com Karl Erik Schøllhammer a editora digital Zazie Edições, voltada para teoria e crítica de arte e pensamento contemporâneo.
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