Fotolivro de Cabeceira

Fotolivro de Cabeceira | André Penteado escreve sobre Estados Unidos 1970-1975, de Jacob Holdt

André Penteado Publicado em: 29 de maio de 2017

Como recomendar um livro com o qual você tem um problema fundamental? Sempre desconfiei e tive problemas com o que chamo “trabalho documental de denúncia da miséria humana”, feito por brancos de países ricos que percorrem o mundo mostrando suas mazelas.

Não que eu não entenda a importância de documentá-las ou que não respeite aqueles que dedicam suas vidas a este tipo de trabalho. Porém, o que sempre me deixou um pouco com o pé atrás – e o que talvez seja uma dúvida que tenho a respeito de todos os trabalhos de arte que se pretendem políticos, inclusive os meus – é que na maioria das vezes e, especialmente no mundo saturado de imagens que vivemos, as consequências no mundo real de um trabalho deste tipo é provavelmente muito menor do que gostaríamos. E a denúncia, depois do choque inicial, causa pouquíssima transformação. Posso estar enganado – inclusive na minha ignorância em conhecer todos os casos em que fotografias mudaram o mundo – mas não consigo deixar de sentir isso.

Sendo assim, tenho poucos livros documentais desse tipo na minha biblioteca. Porém, tenho um que constantemente me atrai de volta às suas páginas: Estados Unidos 1970-1975, de Jacob Holdt. No momento que o vi pela primeira vez, há alguns anos, fiquei muito tocado por suas fotografias. Para mim, elas possuem toda a potência que resumem as qualidades intrínsecas a uma boa fotografia. Qualidades que não me atrevo a definir, pois são diversas e fugidias. Mas que, quando presentes, a tornam um objeto artístico único. Ao me deparar com estas imagens que realizam todo o seu potencial enquanto imagens fotográficas, fica claro para mim que existem coisas que somente fotografias podem dizer.

De uma certa forma, acho a fotografia a mais fácil e a mais difícil das artes. Ela não requer nem habilidade manual e nem um equipamento caro. E nela, o acaso pode proporcionar obras-primas, o acidente pode ser maravilhoso, algo mais difícil em outras mídias. Sem saber, o amador completo, desconhecedor de qualquer técnica para realização de uma “boa” fotografia pode conseguir uma imagem que tenha esse poder – basta ver quantos livros de fotografia vernacular existem hoje em dia. Ao mesmo tempo, ela exige muito do fotógrafo que quer realizar um trabalho consistente e que sobressaia no universo de bilhões de fotografias em nosso mundo contemporâneo. No mínimo: compreensão profunda do seu tema, trabalho duro, resiliência, domínio absoluto do equipamento de sua escolha, refinamento de sua linguagem e uso dos canais apropriados para divulgação de seu trabalho.

Jacob Holdt cumpriu com louvor todos os pontos acima. Sendo um hippie dinamarquês, branco, de classe média e não fotógrafo, depois de viajar pelos Estados Unidos por algum tempo e ficar chocado com o que viu, resolveu cruzar o país durante cinco anos para documentar a desigualdade social e o racismo. Em suas viagens conheceu e viveu nas casas de todos os tipos de pessoas – dos mais pobres aos mais ricos. Fotografando sempre com uma câmera muito simples, uma Canon Dial, chegou a vender plasma sanguíneo duas vezes por semana pra comprar filmes. O seu comprometimento com o trabalho a que se dedicou foi total. Sua vida e seu projeto fotográfico tornaram-se uma coisa só.

Feitas com uma câmera “apontar e clicar”, suas imagens são incríveis. Nunca ficou tão claro para mim que o equipamento utilizado tem pouca relevância para a realização de um bom trabalho fotográfico. O fotógrafo só precisa realmente aprender a usar o equipamento que tem, conhecendo suas virtudes e limitações. Com isso e a prática, as soluções estéticas serão desenvolvidas e refinadas.

As fotografias de Holdt possuem um refinamento visual grande e qualidades que sempre me interessaram: seu enquadramento e sua luz (natural ou flash direto – que tanto gosto), capturam cenas, gestos e rostos com crueza e potência. Para mim, cada imagem deste livro é uma viagem. Uma viagem dentro da linguagem fotográfica, sobre o que é enquadramento – e como usar seus limites – como iluminar uma cena e, acima de tudo, como ser aceito pelas pessoas que se quer fotografar. Dentro do universo quase cinematográfico ou teatral que cria, percebe-se que Holdt possuía a capacidade de ser aceito por aqueles que retratava. Para conseguir aquelas fotos, além de estar presente, ele realmente se importava com seus sujeitos, a quem muitos chama de amigos nos textos em que conta a história de cada imagem, ao final do livro.

Se adoro a qualidade fotográfica de seu trabalho, isto, porém, não resolve o problema com o qual comecei este texto: Um trabalho fotográfico assim faz alguma diferença no grande esquema das coisas? Consciente desta questão, Holdt optou por não seguir uma carreira de fotógrafo. Decidiu passar os últimos 40 e tantos anos apresentando as imagens que fez em palestras que denunciam a miséria e o racismo nos EUA. Ele sabe das limitações de seu trabalho como fotógrafo, mas encontrou nele uma ação que deu sentido à sua vida. Quanto a mim, não posso negar que me sinto mais humano e mais triste ao ver seu trabalho. Se não muda o mundo, para mim escancara as nossas falhas, os nossos erros, a impossibilidade humana de simplesmente resolver nossos problemas. Me faz pensar que o que precisamos é simplesmente sair para viajar e conhecer os outros. Acho que esse é motivo suficiente para ter este livro.///

André Penteado (1970), fotógrafo, é autor dos livros O suicídio de meu pai (2014), trabalho pelo qual recebeu o Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger em 2013, Cabanagem (2015) e Não estou sozinho (2016).

 

 

Estados Unidos 1970-1975
Jacob Holdt
Editora: Steidl GwinZegal, 2007
Dimensões: 25,4 x 25,4 cm
Número de páginas: 192

 

 

 

 

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