Exposições

VALIE EXPORT: o som ao redor e os outros sentidos da imagem

VALIE EXPORT & Nathalia Lavigne Publicado em: 16 de maio de 2024

From the Portfolio of Doggedness, 1968, em cooperação com Peter Weibel, Cortesia da Galeria Thaddaeus Ropac © VALIE EXPORT, VG Bild-Kunst, Bonn 2023. Foto: Joseph Tandl

O som do latido de um cão percorre diversos os ambientes da retrospectiva de VALIE EXPORT em cartaz no C/O Berlin Foundation. Vemos as primeiras imagens imaginando o que vem a seguir, certamente algo relacionado a uma de suas performances mais conhecidas: From the Portfolio of Doggedness (1968), quando caminhou pelas ruas de Viena com o artista Peter Weibel, seu namorado na época, amarrado em uma coleira tal qual um cachorro.  

O barulho que ouvimos vem de outra instalação menos marcante. Em certos momentos, o som fica alto demais, dificultando a leitura dos textos. Mas talvez ele tenha uma função inesperada, especialmente para quem já conhece o trabalho em questão. Ao ouvir o áudio logo na entrada da exposição, é difícil resistir a uma curiosidade voyeurística de se adiantar até a terceira sala para olhar aquelas fotos. De repente, nos vemos não tão diferentes dos espectadores originais da performance ali retratados. Se mais de 50 anos depois aquelas cenas ainda causam espanto, dá para imaginar como foram recebidas no conservador ambiente de Viena na época.

Um dos pontos altos da retrospectiva – idealizada originalmente por Walter Moser, do museu Albertina, em Viena, e co-curada no C/O Berlin por Boaz Levin – é a variedade de documentação reunida, mostrando os diferentes usos que a artista faz das mídias, especialmente a fotografia. No caso de From the Portfolio of Doggedness, chama atenção como parte das imagens mostram em detalhes a reação das pessoas. Seus olhares são um retrato valioso do contexto patriarcal que influenciou a formação de VALIE EXPORT enquanto artista.

O que, de fato, tinha acabado de acontecer: em 1967, aos 27 anos, ela assume parte do nome da marca de cigarros Smart Export como pseudônimo, criando um carimbo que adotaria como assinatura. O nascimento de sua persona artística foi uma maneira de se livrar do peso que um sobrenome carrega para uma mulher, especialmente na sociedade austríaca daquela época. Como comentou em uma entrevista, até meados dos anos 1970 uma mulher casada precisava de uma autorização do marido até para abrir uma conta bancária, entre outras coisas. 

VALIE EXPORT – SMART EXPORT, Autorretrato, 1970, Museu ALBERTINA, Viena – Coleção ESSL © VALIE EXPORT, VG Bild-Kunst, Bonn 2023; Foto: Gertraud Wolfschwenger © VG Bild-Kunst, Bonn 2023

VALIE EXPORT não estava sozinha em contestar o conservadorismo político, social e cultural que predominava na Áustria. Suas performances no final dos anos 1960 dialogam com outras ações do movimento conhecido como Acionismo de Viena, também realizadas em espaços públicos e envolvendo nudez, sadomasoquismo e o uso do corpo enquanto mídia. Embora seus interesses e a linguagem artística fossem semelhantes a de nomes como Günter Brus, Otto Mühl, e Rudolf Schwarzkogler, ela trouxe outras questões não abordadas pelo grupo – entre elas a crítica feminista à representação da mulher na cultura de massa.

Touch cinema, 1968, Museu Albertina, Viena – Coleção ESSL © VALIE EXPORT, VG Bild-Kunst, Bonn 2023. Foto: Werner Schulz

É o que aparece especialmente em Touch Cinema, 1968, quando saiu pelo centro de Viena e de Munique vestindo uma caixa preta pendurada sobre o busto. Quem passasse naquele momento era convidado a tocar seus seios por trás de uma cortina, com a condição de que a encarasse por 12 segundos. No texto escrito pela artista, reproduzido no catálogo, ela descreve a ação como uma “instância tátil de comunicação visual”, em que “a recepção tátil protesta contra a fraude do voyeurismo.” Em outro trecho, ela defende uma socialização da sexualidade: “Na medida em que um seio não é mais propriedade do homem, e a mulher o dispõe independentemente, a moralidade dos regulamentos estaduais (estado, família, propriedade) é quebrada”, escreve. Por isso a instrução de que o espectador a olhasse nos olhos era tão importante. Se a recepção da imagem na caixa preta deixava de acontecer pela visão, era por meio desse gesto íntimo e subjetivo que a objetificação do corpo feminino era contestada.

Realizada diversas vezes em contextos distintos, Touch Cinema foi amplamente documentada por fotógrafos profissionais e amadores. Alguns se misturavam ao público e participavam da performance, ajudando a criar situações que já nasciam pensadas enquanto imagens. 

Mas não foi esse o caso das fotos pelas quais VALIE EXPORT se tornaria mais conhecida. Em Action Pants: Genital Panic (1969), outra de sua performance da série chamada de cinema expandido, a ação original consistiu em caminhar entre os espectadores de um festival de filmes de vanguarda em Munique com uma calça recortada e a região genital descoberta. Foi apenas meses depois que surgiu a ideia de posar segurando uma metralhadora, fotografada por Peter Hassmann em seu estúdio, imagem posteriormente reproduzida em serigrafia e em cores variadas. Dessa vez, a crítica ao voyerismo ganha um tom mais ácido de confronto direto, sem a ironia presente tanto em From the Portfolio of Doggedness quanto em Touch Cinema.

From the Geometric Sketchbook of Nature: Tree Triangle, 1973, Cortesia da Galeria Thaddaeus Ropac © VALIE EXPORT, VG Bild-Kunst, Bonn 2023

O corpo enquanto registro e inscrição do espaço

Um segundo núcleo em destaque na retrospectiva é a série iniciada na década seguinte, Configurações do Corpo (1972-1982). Suas ações nesses trabalhos sugerem provocações mais sutis, porém com a mesma intenção de questionar hierarquias e ideologias que moldam uma cidade. Mais uma vez, seu corpo é colocado como medida com a função de reclassificar o entorno e se inscrever naqueles espaços, criando outras maneiras de ocupá-los a partir de estados internos subjetivos. Muitos dos ambientes retratados são edifícios monumentais de Viena, que ainda se recuperava das tramas do pós-guerra, ou paisagens onde quase não havia a presença de pessoas. Como escreve em suas anotações, “O corpo é esvaziado e passa a fazer parte de um espaço, revelando os vazios e as feridas da sociedade.”

Embora sua influência na arte de vanguarda feminista seja inegável, VALIE EXPORT levou tempo para ter uma visibilidade que a permitisse viver de seu trabalho como artista. O que começou a acontecer apenas nos anos 2000, após sua obra ser adquirida por grandes coleções norte-americanas ou pelo MoMA, que em 2012 comprou um conjunto significativo de suas obras.

Vendo sua produção reunida em uma retrospectiva, fica claro como o fato de não estar inserida no mercado lhe deu maior liberdade para seguir mais livremente por um caminho experimental. Por outro lado, alguns trabalhos dos anos 1980 ao 2000 parecem hoje um pouco deslocados do tempo – diferente de sua produção das décadas de 1960 e 1970, que dialoga melhor com o presente.

Uma das exceções é a instalação Fragmentos das imagens de uma carícia (1994). Ocupando o centro da última sala, 18 lâmpadas acesas movem-se verticalmente em direção a cilindros preenchidos com óleo, leite ou água. Cada um dos líquidos – preto, branco e transparente – refrata a luz de maneira distinta, sugerindo uma relação com o processo químico da película. O número 18 é também uma referência ao número mínimo de quadros por segundo necessários para que o movimento seja percebido como fluido na projeção de um filme. Além de ser uma homenagem ao cinema, área em que VALIE EXPORT também se destacou com longas-metragens como Adversários Invisíveis (1977) e A Prática do Amor (1985), a instalação traduz bem a experiência sensorial que ela sempre buscou ao pensar a imagem. E sem deixar de assumir os riscos desse processo, como misturar água à eletricidade. ///

Nathalia Lavigne é pesquisadora, jornalista e curadora. Atualmente vive em Berlim, após um período como pesquisadora visitante da Humboldt Universität zu Berlin, contemplada com uma bolsa da DAAD em 2021.


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