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Outros navios

Eder Chiodetto & Eustáquio Neves Publicado em: 26 de janeiro de 2023
Fotografia da série Arturos, de Eustáquio Neves, 1993. Cortesia do artista.

Eustáquio Neves, ou José Eustáquio Neves de Paula nasceu em Juatuba, Minas Gerais, em 1955. Descendente de ancestrais escravizados, tornou-se técnico de química industrial. A lida com laboratório e químicas o levou ao ambiente analógico da fotografia. Certo dia foi ver uma exposição de Arthur Bispo do Rosário. Deu-se uma catarse. As obras que justapunham obsessão, visceralidade, contundência e uma miríade de materiais abriu para o jovem aprendiz de fotografia uma espécie de portal que o libertou para o universo de experimentações.

Surgiram desse encontro as estratégias de amalgamar imagens, texturas, abrasões, documentos históricos, grafias desconexas e outras informações que viriam a matizar suas criações a partir de então, tendo invariavelmente como tema os calabouços obscuros da escravidão no Brasil e o racismo estrutural sobre a população negra que persiste até os dias de hoje. A fotografia expandiu-se em seu laboratório de experimentações tornando-o um artista incontornável e singular na produção artística contemporânea brasileira. Desde de 1992, quando se iniciaram suas séries, Eustáquio e sua iconoclastia tornaram-se referência para as novas gerações de artistas. Sua obra foi uma das pioneiras a desacomodar a história oficial e fazer uma revisão crítica sobre a escravidão e seus ecos.

Em virtude dos 200 anos da Independência do Brasil, propusemos ao Sesc Ipiranga, localizado na região do “Grito do Ipiranga” e ao lado do Museu da Independência, a realização de uma ampla retrospectiva da obra de Eustáquio Neves, como contraponto a história da colonização contada a partir do ponto de vista dos colonizadores portugueses. Inaugurada em 06 de setembro de 2022 e em cartaz até o final de fevereiro de 2023, a mostra Outros Navios: Fotografias de Eustáquio Neves, contém 70 obras de 10 séries do artista, ocupando três salas, sendo uma delas dedicada a produção em vídeo.

Para a realização do projeto, artista e curador – com o auxílio de Lilian Oliveira, pesquisadora e esposa de Eustáquio – fizeram um levantamento do acervo seguido de diálogos que visavam a organização e a geração de textos sobre cada série. A seguir, alguns trechos desses diálogos.

Fotografia da série Boa Aparência, de Eustáquio Neves, 2000. Cortesia do artista.

Fomos o último país ocidental a abolir a escravidão, a nação que recebeu quase a metade do total absoluto de pessoas negras escravizadas no mundo entre os séculos 15 e 16. Nas últimas décadas, após reiterados esforços de historiadores e de diversos segmentos dos movimentos negros, entre outros, engendrou-se mais fortemente um debate urgente e necessário pela reparação histórica e pelo fim do racismo estrutural que até hoje, 134 anos após a abolição, segue enraizado, limitando acesso, voz, participação e equidade social à população negra brasileira, que representa 56% dessa nação. O título Outros Navios, que pegamos de uma série sua em andamento para ser o nome da exposição, sinaliza justamente para essas questões, certo?

Eustáquio Neves: Sim. Nas chuvas do último verão observei nos telejornais que os frequentes deslizamentos dos morros e o consequente soterramento de pessoas que vivem em situação de extrema vulnerabilidade afetava basicamente populações negras, que ali vivem por conta da total falta de oportunidades de emprego, educação e assistência mínima. Além disso, vemos cotidianamente ônibus e trens que ligam os centros das cidades brasileiras às periferias, apinhados de pessoas negras sendo transportadas de forma pouco digna. Se olharmos para o interior dos camburões da polícia e das celas dos presídios, veremos um reflexo imediato disso. Pensei então que “outros navios” carregando corpos negros escravizados não cessaram de chegar até nós nos dias de hoje.

Fotografia da série Arturos, de Eustáquio Neves, 1993. Cortesia do artista.

Arturos, série iniciada em 1993, já possuía a construção em camadas, justapondo trechos de negativos fotográficos com abrasões, químicas, tintas, documentos antigos e outros tipos de interferências. Desde ali suas imagens findam por ser a soma de múltiplas fontes de informações que ora se apaziguam, ora se atritam gerando campos pictóricos complexos. Essas estratégias formais, que convertem imagens de superfície em espessuras, seriam metáforas sobre como certas verdades históricas vão sendo eclipsadas pelos discursos oficiais de quem detêm o poder?

EN: Exatamente, por meio dessas estratégias das camadas, parto de uma fotografia como uma matriz para então iniciar um longo processamento em que informações de várias fontes que pesquiso interceptam a imagem gerando uma multiplicidade de signos que reclamam protagonismos e rasgam a aparência da superfície, revelando aquilo que tangencia e muitas vezes é sufocado na história.

Por essa mesma época você inicia a série Objetificação do Corpo, fotografando a Lilian, sua esposa, que serve de modelo. Comente essa série.

EN: Nos anos 1990, pesquisei a estética e as práticas artísticas e conceituais do período do Renascimento. Desse estudo derivaram novas experimentações sobre a construção de imagens. As imagens de nu feminino, recorrentes nas pinturas renascentistas, me levaram a pensar sobre os usos mercadológicos do corpo feminino no mundo atual, sobretudo na publicidade, quase sempre objetificado e sexualizado. Fotografei a Lilian simbolizando modelos negras, uma exceção no universo da publicidade até então. Pensava em falar de outras formas de dominação e escravização de corpos, nesse caso, sobre o feminino. As imagens foram ganhando cicatrizes, tintas sanguíneas, grafias desconexas, trechos de cartas de alforria e de venda de pessoas escravizadas. Acabou se tornando uma espécie de manifesto que se insurge contra a indústria do consumo que insere corpos femininos na lógica da mercadoria.

Fotografia da série Boa Aparência, de Eustáquio Neves, 2000. Cortesia do artista.

Na série Boa Aparência (2000) você recupera uma expressão utilizada em anúncios de emprego e encontra ecos dela na época da escravidão…

EN: Com cerca de 18 anos eu estava procurando meu primeiro emprego em Belo Horizonte. Nos anúncios em jornais, muitas vezes, as empresas solicitavam que os candidatos tivessem “boa aparência”. Como eu nunca era chamado, percebi que o pedido de “boa aparência” era uma forma velada de impedir que as pessoas negras tivessem acesso a esses postos.

Por essa época, comecei a pesquisar arquivos de jornais brasileiros e de língua inglesa do século 19, nos quais se anunciavam a compra e a venda de pessoas escravizadas. Entre as qualidades elencadas, como “bons dentes” e outras características corporais, invariavelmente, a expressão “boa aparência” se destacava nos anúncios. Naquele contexto, a expressão servia para impulsionar o comércio de pessoas escravizadas e, após a alforria, passou a ser utilizada para negar-lhes acessos.

Nessa série, parto de um autorretrato que é submetido a várias intervenções como forma de citar esse sistema de exclusão típico do racismo estrutural. Documentos de arquivos coloniais são “tatuados” de várias formas sobre a minha pele-película fotográfica, junto a esses anúncios que persistiram cerca de um século após a abolição.

   

Fotografia da série Retrato Falado, de Eustáquio Neves, 2019. Cortesia do artista.

Na série Retrato Falado, que você realizou após ganhar a Bolsa de Fotografia ZUM/IMS em 2019, você faz uma surpreendente incursão pela história da fotografia a partir da ausência de um retrato do seu avô no acervo familiar…

EN: Um olhar retrospectivo para a história da fotografia, desde sua invenção em 1839, mostra que foi necessário mais de um século no Brasil para que famílias negras começassem a adquirir câmeras para se autorrepresentar. Antes disso, no século 19, pessoas escravizadas eram fotografadas em estúdios por fotógrafos de origem europeia e seus retratos eram vendidos no formato de cartões postais (cartes de visite) como item exótico para colecionadores. Em Retrato Falado busquei recuperar, por meio da memória oral de meus familiares, a imagem do meu avô, João Catarino Ribeiro, o qual não cheguei a conhecer e do qual não restou nenhuma fotografia guardada pelos meus parentes. A partir das descrições crio um retrato falado nos moldes daqueles realizados pela polícia, e então parto para tentar restituir as feições do meu avô a partir de fotografias danificadas e com o auxílio da fotopintura. Em algumas dessas tentativas – que invariavelmente fracassam – acabo por encontrar o meu próprio rosto criando uma estranha semelhança entre as gerações da minha família. ///

Eder Chiodetto é mestre em Comunicação e Artes pela ECA/USP, jornalista, fotógrafo, curador independente e autor dos livros O Lugar do Escritor (Cosac Naify), Geração 00: A Nova Fotografia Brasileira (Edições Sesc) e Curadoria em Fotografia: da pesquisa à exposição (Ateliê Fotô/Funarte), entre vários outros.

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