O verão de 1945 na Itália
Publicado em: 30 de setembro de 2022Um país devastado e uma população miserável, porém liberta da tirania, afastada da barbárie, sem medo de bombas sobre suas cabeças, começando a reconstrução. Um breve passar de olhos pode identificar somente a tristeza e o desamparo, entretanto havia esperança nos olhares captados pelas lentes fotográficas. Aquele era o primeiro verão de liberdade na Itália.
Nos meses seguintes ao término da Segunda Guerra Mundial na Europa, o fotógrafo Federico Patellani e os arquitetos Lina Bo e Carlo Pagani foram convidados a fazer uma reportagem sobre as condições de moradia em cidades italianas impactadas pelo conflito armado.
O roteiro começou na própria cidade em que Lina vivia. Em Milão, o trio visitou o bairro que se autointitulava Baia del Re – uma homenagem da população ao explorador Umberto Nobile, cuja expedição chegara ao pólo Norte com um dirigível. O nome oficial do conjunto habitacional na zona sul milanesa era 28 Ottobre, data da fascista Marcha sobre Roma. Havia sido construído pelo governo nos anos 1920. Seus banais prédios de quatro ou cinco andares com frívolos ornamentos classicistas eram semelhantes a tantos outros edifícios feitos por toda a península itálica no começo do século 20.
Em 12 de julho de 1945, as ruas da Baia del Re estavam tomadas de crianças. Os meninos vestiam camisetas com suspensórios e bermudas de tecido barato, um tanto sujos de poeira. As meninas portavam vestidos estampados, com bolinhas ou xadrez, e frequentemente tinham algum enfeite de cabelo. As irmãs mais velhas carregavam as mais novas: um pouco como brincadeira de boneca, um pouco por um carinho maternal que as próprias mães, imersas em afazeres domésticos ou no luto pelos maridos e filhos mortos, não conseguiam proporcionar com a intensidade habitual de uma sociedade católica. Na Baia del Re, a infância era de carestia e pobreza, mas todos ali, pela primeira vez na vida, podiam brincar sem medo nos pátios e nas ruas pois estavam livres da ocupação alemã. Todos os rostinhos expressavam certa alegria e encanto por aquela moderna máquina fotográfica com a qual Patellani os eternizou.
Suas mães e avós observavam das janelas. Constatavam-se poucos pais: alguns podiam estar trabalhando, outros devem ter morrido na guerra. Para o ensaio, os arquitetos e o fotógrafo entraram em alguns apartamentos. Em um deles, o vaso sanitário ficava ao lado de um galinheiro improvisado. Ter galinhas em casa não era exceção: em muitos balcões, viam-se aves ciscando para dar os ovos do consumo familiar. Os ambientes internos eram escuros e visivelmente apertados para famílias com tantos filhos.
Enquanto isso, Lina Bo, trinta anos, vestido florido, sapato branco de salto baixo, cabelo negro e comprido, franja-rolo sobre a testa, foi fotografada na escada de um dos prédios da Baia del Re. Sorria. Parecia genuinamente feliz.
Naqueles dias também visitaram os baraccopoli milaneses, isto é, as favelas que surgiram em periferias e avenidas largas. As precárias casas eram feitas de madeira e todo tipo de material achado nos entulhos de prédios destruídos. Pisos de apartamentos elegantes converteram-se em paredes. Improvisadas tendas de sacos de estopa forradas com feno davam abrigo a idosos. Pequenas hortas eram plantadas para a subsistência. Muitos moradores eram milaneses cujas residências haviam sido destruídas nos ataques aéreos. Outros tantos fugiam da miséria do Sul da Itália, agravada pelas frentes de batalha.
Como a península itálica estava predominantemente ocupada pelo exército norte-americano, seus generais tinham o poder de autorizar ou não grandes deslocamentos pelo país. Bo, Pagani e Patellani apresentaram sua justificativa — a reportagem — e receberam os documentos que lhes permitiam passar pelos bloqueios e tropas nas estradas entre Milão e Roma.
Lina chamou a viagem de “uma aventura não alegre”. Uma constante preocupação acompanhava o trio: não podiam sair da estrada. Andar num gramado ou num bosque era perigosíssimo em razão das minas terrestres deixadas por alemães, pelos Aliados ou mesmo pelos partigiani. Não era recomendado sequer pegar algo desconhecido com as mãos. Bombas ainda estavam por todo lado.
A primeira parada foi Marzabotto. Neste vilarejo ocorreu um dos mais cruéis crimes de guerra: entre 29 de setembro e 5 de outubro de 1944, os nazistas executaram filhos e filhas, pais e mães, avôs e avós, não menos de 770 assassinados. Patellani fez fotos da igreja com telhado colapsado, os bancos revirados e os ornamentos do altar transformados em destroços. As fachadas das casas estavam repletas de marcas de tiros de fuzis e metralhadoras. Poucas famílias não debandaram. As ruas de Marzabotto estavam vazias.
Mais algumas dezenas de quilômetros e chegaram a uma irreconhecível Florença. As margens do Arno tornaram-se uma massa única e amorfa de escombros. Não dava para distinguir a beira do rio, a rua, as construções. Ali somente a Ponte Vecchio fora poupada dos bombardeios. Nas estreitas vias florentinas, prédios de lados opostos da rua escoravam-se entre si: impossível não fazer uma analogia da imagem dos dois edifícios solidarizando-se estruturalmente com as passarelas entre as torres do Sesc Pompeia.
O trio seguiu seu caminho até parar na pequena Buonconvento. Patellani fez duas fotos no lugarejo. Nelas, Lina aparece em pé sobre o capô de um carro preto de placa “Roma 8173”. Ela aproximava seu rosto do arco acima do portão de entrada de um edifício. Não era uma tentativa de ver quem estava dentro. Ela queria observar de perto as cinco gaiolas penduradas sobre a porta. Lina tinha fascínio por animais.
Pela estrada encontravam tanques abandonados e carcaças de ônibus. A parada seguinte foi Radicofani. Sua torre medieval que desponta sobre um monte foi fotografada por Patellani tendo, em primeiro plano, um cemitério de militares franceses com covas identificadas por singelas cruzes de madeira pintadas de branco.
Em seguida, chegaram a devastada Acquapendente. Todavia, sua praça central estava repleta de gente. Viam-se cenas banais, como senhoras sentadas nas soleiras das portas das casas, conversando com vizinhos, vendo a vida passar. Encontraram também cenas anormais, como crianças brincando nos escombros de edificações arruinadas. Fachadas tinham inscrições em inglês deixadas pelas tropas que lá passaram. Nos mesmos muros, a prefeitura colara cartazes com instruções para a reconstrução das casas.
Mais alguns quilômetros ao sul e chegaram a Viterbo. Seguia-se o recorrente cenário: pilhas de pedras e tijolos mais altas que um corpo humano; edificações sem telhado, nem esquadrias; fachadas desmoronando; paredes de quartos à mostra para a rua. Em meio à degradação, o centro da cidade estava enfeitado para uma festa de santo. Do mastro da praça desciam fios repletos de bandeirinhas. Nas estreitas vielas, cabos com arranjos de folhas de pinheiro e papéis coloridos se prendiam nas fachadas. A edícula votiva estava toda ornamentada. A imensurável tragédia não inibira manifestações da fé popular.
Há dúvidas a respeito da sequência do itinerário: o trio pode ter ido direto para Roma ou antes visitou alguns municípios ao sul para depois retornarem à cidade eterna. Fato é que, naqueles dias, Patellani fez registros fotográficos de duas cidades meridionais à capital italiana: Cassino e Valmontone, ambas com um nível de destruição ainda maior que o testemunhado antes.
Embora pesquisadores atestem a ida de Lina a Cassino, não há ainda fonte primária que confirme isso peremptoriamente. Ao certo, sabe-se que, em seu trabalho de edição na revista A, a arquiteta viu as fotos feitas por Patellani nessa cidade.
A bem da verdade, não era mais possível identificar uma urbe no local onde ocorrera a batalha de Monte Cassino. As estátuas de santos, os anjos de mármore, os entablamentos com suas frisas e cornijas, as colunas e seus capitéis afloravam em meio aos destroços. Os monges andavam pelos escombros, coletando fragmentos de ícones e esculturas religiosas.
Eram as mulheres que trabalhavam nas obras de reconstrução de edifícios, por mais que seus esforços parecessem gotas d’água no oceano diante de tanta devastação. Porque, em Cassino, Patellani retratou a extrema pobreza. Fotografou crianças sentadas em calçadas empoeiradas com roupas encardidas – um dos garotos não tinha calça, mas somente um farrapo sobre o colo. O barbeiro ocupara o arco de um muro de pedra: instalou ali a placa com a inscrição “barbiere” feita toscamente à mão, improvisou um caixote para ser sua mesa de apoio com tesoura e navalha, e seus clientes sentariam numa cadeira quebrada e sem assento.
Nas cercanias de Cassino, a paisagem natural fora devastada. Não havia verde folha naquele verão. Destacava-se somente o cemitério onde foram enterrados mais de 4 mil soldados da Commonwealth. Uma produção em série de cruzes brancas cravadas no solo. Uma produção em série de mortos.
As condições em Valmontone não eram melhores. Próxima a Roma, a maior parte das edificações da cidade desmoronou. Das poucas que se mantiveram razoavelmente íntegras, o Palazzo Doria tornou-se lar para mais de cem pessoas. Viviam amontoados em espaços escuros, parca ventilação, quase nenhum mobiliário, repleto de detritos e poeira.
Outras pessoas fizeram precárias barracas com madeiras e pedras recolhidas dos entulhos, somadas a sacos de estopa e lona usados na guerra ou no transporte de mantimentos. Para não dormirem ao relento, apropriaram-se do que tinham disponível e converteram em algo essencial para a sobrevivência, isto é, em moradia — uma operação semelhante ao que Lina, anos depois no Brasil, veio a chamar de pré-artesanato. Sob a mesma lógica, uma criança foi fotografada guardando seu livro escolar num velho porta-munição de metal usado por algum soldado inglês.
Com a fachada danificada, porém com as duas torres de pé, a igreja de Santa Maria Maggiore resistiu na praça central, na qual os camponeses montavam uma feira de verduras e frutas. Terminada a paúra da artilharia inimiga, a população tudo fazia ao ar livre, por mais árido que fosse.
Roma era o destino. Pela sua importância histórica e sendo sede da Santa Sé, a cidade foi poupada de batalhas mais ferozes. Não se viam edifícios desmoronando na capital italiana, mas sim terrenos baldios envoltos em arames farpados, caminhões do Exército e munição exposta a céu aberto.
Uma foto emblemática mostra Lina Bo, com seu vestido florido e uma bolsa, subindo um pequeno barranco na Piazza Augusto Imperatore — visualmente, o logradouro acumulava as funções de sítio arqueológico do Mausoléu de Augusto e lixão. Por trás do aclive repleto de entulho havia um prédio em estilo fascista, no qual se encontrava a sede do Studio d’Arte Palma, a galeria daquele que viria a ser o esposo da arquiteta: Pietro Maria Bardi.
Depois de testemunharem imagens tão duras, aquela visita tinha um quê de diversão e escapismo para o trio viajante. Por alguns instantes, Lina foi modelo para as câmeras de Patellani. Na última foto, ela está sentada numa pitoresca cadeira, encarando a lente fotográfica com rosto altivo, sorriso leve e um tanto enigmático, tal como uma Gioconda. Estava com um semblante confiante no futuro após o fim da Segunda Guerra Mundial. ///
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As fotos fazem parte da exposição O verão de 1945 na Itália: a viagem de Lina Bo nas fotografias de Federico Patellani, com curadoria de Francesco Perrotta-Bosch e em cartaz até o dia 7 de outubro no Instituto Italiano di Cultura em São Paulo. Mais informações aqui.
Francesco Perrotta-Bosch (Rio de Janeiro, 1988) é arquiteto e escritor. Autor de Lina, Uma Biografia (Todavia, 2021). Mestre pela FAU USP e doutorando pela mesma instituição e pela Universidade IUAV de Veneza. Em 2013, venceu o prêmio de ensaísmo da revista serrote com A arquitetura dos intervalos.
Tags: arquitetura, exposição, Itália, Lina Bo Bardi, Pós-guerra, Segunda Guerra Mundial