O seu reflexo na água: narrativas de gênero no fotolivro
Publicado em: 15 de agosto de 2023A exposição o seu reflexo na água, que abre amanhã em São Paulo na terceira edição da IMAGINÁRIA_festa do fotolivro, festival idealizado pela Lovely House Editora, traz mais de 40 fotolivros, zines e outras publicações com o tema da desobediência de gênero, infância LGBTQIAPN+ e outras dissidências que permeiam identidades não-normativas e historicamente marginalizadas. Talvez você se veja nela: turva, indefinida, fraturada. Mas é assim na água. O artista e amigo André Penteado diz que ama a habilidade da fotografia de contar histórias através da superfície do mundo. Essa superfície ilimitada se comunica nas variações de suas formas. Reunir a produção de uma comunidade tão ampla quanto essa é o tempo todo querer desestabilizar um único modo de fotografar.
Mais de 4 bilhões de anos
Vou contar rapidamente uma história que tem mais de 4 bilhões de anos. Em uma noite, no verão, durante o festival de Arles, caminho até uma mesa lotada de artistas. Olho as taças vazias. Ouço o falatório vibrante, mas não falo francês. As pessoas comemoram a publicação de um fotolivro: Desiderea Nuncia, de SMITH, Lucien Raphmaj e Diplomates. Temos uma amiga em comum, Oleñka Carrasco, fotógrafa venezuelana. Ela se aproxima de SMITH e nos apresenta. Logo depois dos abraços, SMITH estende o braço à minha frente. Mostra, com um ar intrigante, um calombo embaixo da pele do antebraço. Um volume. Um caroço. Toco o caroço, que mexe dentro dele. Ele diz que é um pedaço de meteorito. Fico estarrecide. Diz que implantou um meteorito como parte da sua performance / pesquisa fotográfica. Na minha bolsa, naquela hora, por coincidência, tenho um livro de fotografia publicado pela editora THE EYES chamado Transgalática, que SMITH e Nadège Piton haviam realizado a curadoria. Uma seleção de artistas trans de algumas partes do mundo, com textos relacionados, uma entrevista com Paul B. Preciado, com Élisabeth Lebovici. É um livro maravilhoso.
O braço de SMITH e a idade daquele meteorito, mais de 4 bilhões de anos, ficaram na minha cabeça. Como pode um corpo transmasculino engolir a idade da Terra? O que ele traz para o trabalho sobre a própria transgeneridade (mas que também não é só sobre isso) me faz lembrar da Juliana Huxtable, as suas metamorfoses, uma terra especulativa povoada por humanas-morcegas, pessoas bovinas e bezerros arrebatados. O fotolivro de SMITH venceu o prêmio do festival daquele ano. Ele compõe uma resposta aos corpos perdidos. Produz uma arte corporal. Fotografa, muitas vezes, com câmeras termosensíveis. Faz um cruzamento entre estar em contínuo movimento e ter uma identidade em movimento contínuo, como a água, sempre com a mesma essência. No fotolivro, leio: “saberes que nasceram desde o nascimento do desejo”, e sou levade a pensar em um corpo que contém o pedaço de uma paisagem noturna.
Para falar de gênero, es fotógrafes expandiram o gênero além do concebível pelo mundo cishetero. E, como muitas vezes o gênero está no corpo, levaram o corpo ao limite. Para falar de limites, mostraram o corpo em fotografias extremas (se é que existem). Catherine Opie escarifica a palavra “Pervert” no peito. Para nós, espectadores e artistes, dedicam a vertigem, a dor suportada (e o prazer), o beijo, olham-nos através da lente por cima de todas as mazelas da coletividade, a má-fé, a perversão, a baixeza. Olham com o amor viado, com o amor que parece amor, com o amor que não parece amor, com tudo. Mostram o gênero sobre a mesa, um binder pendurado no cabide, uma ampola de T nas mãos. Mostram o gênero em cima da cama. A fotografia de gênero é política e, portanto, houve, historicamente, uma tendência a provocações. A fotografia de uma sapatão lambendo o mamilo de uma outra mulher em uma ponte (Jill Posener), fotos em lugares públicos, cruising, a interferência em outdoors publicitários e em paredes de estações de metrô. A vandalização prazerosa que muites artistes fazem na casa da própria família (suas casas?). O banheiro público masculino e feminino. A nossa bexiga. O mijo. Dentro da sigla, as muitas interseccionalidades de raça e classe produzem correntes autobiogeográficas (como diz o artista Washington da Selva) e criam ramificações de gêneros sem fim.
Ponto de encontro
Foi Gabz 404 quem me colocou na água. O seu trabalho sugere que estou em movimento de transição, mesmo quando sinto que não tenho corpo (questões e questões). Este zine, mole nas mãos e muito bem impresso, começa com a foto da lateral da sua cabeça, um coração partido que gera picos e pausas com seu eletrocardiograma desenhado no couro cabeludo (máquina 2, 1, 0, feito pelas mãos do barbeiro e poeta slammer Chrix, @pretochrix / @tapadotopher).
Páginas vermelhas com letras brancas remontam trechos do seu diário sobre transição. Meus olhos correm as páginas antes de ler as frases. Algumas palavras saltam: “testosterona – plutão – voltas e voltas – respirar fundo”. Recolho as palavras lidas e demoro para voltar ao início do texto. Escalo essas frases como em um jogo. Elas são plataformas quebradas e às vezes chego nos fins errados. Sei que essa é a proposta. Estou de acordo com elas, algumas me revelam, é isso que dói. Saber que não sentimos essas coisas sozinhes é resultado de um exercício de vulnerabilização muito generoso na arte dissidente (e em certa medida, terrível). Entre o “ser do mundo” e o “não pertencer” você traçou um trampolim para quando eu caísse. Misturar fotografia com palavras foi um acerto pensado nos mínimos detalhes. Não é fácil impedir que as palavras interfiram no sequenciamento das imagens.
Queda livre e um segredo são autorretratos e registros do espaço doméstico onde objeto, corpo e palavra se fundem. Segundo Gabz, não é sobre um processo sem volta, aquilo (o corpo; a queda) que não se pode parar, tampouco sobre uma meta engessada, um destino final, mas sobre perceber a não linearidade dos processos. Isso está claro na edição.
Em uma entrevista, Taous Dahmani (curadora e pesquisadora de fotografia, de origem franco-argelina) cita duas frases ilógicas que amo.
Ela diz, primeiro: “À medida que tento me tornar outro tipo de escritora, estou me tornando outro tipo de leitora: Tentando encontrar o caminho para uma estratégia corporificada de narração que existe no ponto de encontro entre intestino (biografia) e cérebro (história/teoria).” A frase está presa no meu imaginário toda vez que analiso meus próprios trabalhos. O ponto de encontro entre biografia-intestino e história-cérebro é mais ou menos os pulmões. Uma ficçãofagia. Posso entender isso de inúmeras formas: a história que penso viver e a história que estou digerindo (docuficção) é a nossa única forma de autenticidade.
A segunda frase é uma citação: “Em How to Suppress Women’s Writing (Como suprimir a escrita das mulheres), de 1983, Johanna Russ escreve: ‘Embora repleta de fatos e referências, [a escrita das mulheres] tem o estilo errado. É pessoal e soa pouco erudito, uma acusação muitas vezes feita à escrita feminista moderna. Ou seja, o tom não é impessoal, distante e seco o suficiente – em suma, não patriarcal o suficiente – para produzir crença.'” A produção fotográfica LGBTQIAPN+ é quase sempre uma voz autoconsciente. Um eu. O deleite da autobiografia. Mas não somos críveis.
Instituem-se leis em inúmeros países contra a nossa fotografia. Todas as leis para nos colocar em terceira pessoa, para dizer que não existe família fora do molde hegemônico e tradicional. Fotografar uma família composta por identidades fora da norma de gênero é uma reivindicação dolorosa (e linda). Achamos que nosso autorretrato é uma realidade irrefutável. Mas, o tempo inteiro, refutam nosso rosto (em exposições e publicações). Temos uma história refutável. Vão nos censurar para vencer o argumento: vocês não estão aqui. A nossa fotografia não prova nada. A imagem não nos salva. Mas a imagem provoca. Provoca os sentidos do ódio mesmo quando não se pretende (venham ver). O nosso afeto, muito presente na exposição, é lido, por alguns, como perversão. Vão dizer que o nosso afeto é exibido para corromper as infâncias.
Ainda ouso dizer que esses fotolivros são sobre a infância. E o mundo tem medo do corpo (e do pulmão) da infância. A poeta Claudia Rodriguez, ativista travesti, escreve: “Fomos rejeitadas porque o corpo é sagrado e com ele não se brinca”. Se a infância não pode brincar com o corpo, brincará com o quê? Mario Quintana, em uma poesia de duas linhas, também diz: “as crianças não brincam de brincar, brincam de verdade”. O experimento com o corpo é o início do gênero e a produção identitária de algo real. Temos D’Angelo Lovell Willams, com seu livro Contact High, posando junto da família, dos amigos e dos amantes. Ile se abaixa para mostrar na câmera uma mancha de sangue na cueca. Jocosamente. Ile, com o pai, compete em uma queda de braço. Os dois, sem camisa, se encaram no quintal de casa. Seus braços, no entanto, não parecem fazer força. Eles só se encaram com os cotovelos na mesa. A masculinidade do pai cis hetero e a masculinidade de uma pessoa trans não-binária medem força na fotografia. A foto se chama Daddy issues (Questões paternas). Outras coisas estão em curso.
Forma simples
Alguns dos fotolivros dessa exposição foram lançados junto a confissões. D’Angelo Lovell Williams abriu para o mundo o seu diagnóstico de HIV positivo no lançamento deste corpo de trabalho, cujo tema é uma exploração lúdica do amor, do estar vive, e do teatro contido nos laços de parentesco.
“Nas imagens”, ile diz, “eu pretendo perfurar o reino da autoconsciência, criando um espaço onde os espíritos dos corpos negros possam viver livremente em seus encontros uns com os outros”. Algumas imagens são uma metáfora sobre ser viste, puxar alguém para o desconhecido, entrar em uma intimidade e privacidade intensas. Efetivamente, esses são motivos também muito sérios para a comunidade NB, queer e outras tantas que se entrecruzam aqui. Para o espírito dos corpos negros.
André Penteado, de novo, me ensina a ler primeiro as fotografias com descrições objetivas. A forma mais simples de olhar uma página. Mas sempre que começo a olhar de forma simples, vejo alguma coisa que me contamina com interpretações, como se eu não precisasse mais da foto.
Essa letra T maiúscula de cabeça pra baixo (que só no português é tesão, eu acho) olha para a lente como se perguntasse alguma coisa. A bermuda jeans presa no alto das pernas, a bota que ile não tira, a toalha ciano sobre o lençol. Não sabemos a pergunta que o olhar faz. O que mais amo na fotografia é que as perguntas são de olhar e não de ouvir. Então não preciso responder. Fico quiete. Com a pergunta na mão, escolhemos ficar ou passar a página.
“Uma ruína para a palavra amor”
Há alguns anos (vasculhei nossa conversa mas não encontrei a data exata), recebi do Lucas Gibson, fotógrafo e pesquisador da fotografia japonesa, uma mensagem com o link do trabalho da Momo Okabe. Era um vídeo com as páginas de seu fotolivro Bible. Uma porrada. Todas as imagens sangradas. Cores vívidas e distópicas. Cicatrizes de mastectomias, olheiras, escombros, dildos: alguém muito viva.
O volume esmagador, dentro da fotografia sobre gênero, da linguagem do retrato é mais do que compreensível. A presença do corpo em discursos sobre identidade é quase dominante. É possível falar de gênero sem o corpo? Ler o gênero no mundo? Em objetos, cidades, sentimentos. O mundo não é cis, foi erguido por esse credo, mas ele não é nada. E olhar para o mundo como espelho, estar inserido no espelho quando se conta uma história, é admitir que a arquitetura, a cama de casal, a sala de casa, as calçadas, todas as coisas, são veículos perfeitamente corruptíveis. Temos que redirecionar o mundo. Sinto um amor enorme por um dos trabalhos do artista Jonathas de Andrade, o 2 em 1, no qual dois marceneiros (vestidos com o mesmo uniforme, quase com as mesmas medidas: homos) transformam duas camas de solteiro (iguais, também homos) em uma cama de casal. E assim, a imagem dos dois relógios do artista cubano Félix González-Torres, que me fascinam, se repetem na história homoafetiva.
No fotolivro Ilmatar, de Momo Okabe (presente na exposição), as pessoas estão ao lado de ruínas, de estrados de madeira, de elementos da destruição e da reforma, de tubarões enferrujados, que aludem ao acidente da vida, a noção de que seus modelos podem se erguer e podem se demolir.
Lucas Gibson escreve sobre Ilmatar: “Okabe reúne imagens produzidas entre 2014 e 2019, dando especial enfoque à documentação de sua gestação e o nascimento de sua filha, concebida a partir de fertilização in vitro. Ilmatar, na mitologia finlandesa, é o nome da deusa virgem do ar e da criação, que acaba por engravidar a partir do contato com as águas. A escolha da entidade para nomear a obra se conecta com os desejos de Okabe de afirmar sua assexualidade e seu processo de gravidez, que se concretiza sem uma penetração sexual, ressaltando também seu olhar questionador de gênero: ‘às vezes me sinto como um homem, às vezes como uma mulher, e usei meu útero como ferramenta para dar à luz.'”
Isso me leva ao título da exposição.
Água-viva
“Aparência em mudança infinita e uma aparência constante sem fim”, diz a artista Roni Horn sobre a água. O título da exposição foi retirado do trabalho dessa artista. Em uma leitura feita por ela, um texto chamado Saying water (Falando água), ouvimos sobre a inquietação dos rios, o fascínio pelo desconhecido despertado por eles. É muito comum encontrar o elemento água no trabalho de pessoas dissidentes de gênero. Aprendi isso em uma entrevista com o fotógrafo Matthew Leifheit.
Roni fala sobre a sensação de não estar mais aqui. De desaparecer. Quando se imagina um rio quase totalmente opaco e temos vontade de entrar, devagar, na indefinição, com o nosso inconsciente desejando e temendo esse desmembramento. Às vezes, é possível enxergar um pouco através da superfície, alguns centímetros adentro. Temos a impressão de que no fundo a água é ocupada por algo que não é água. Somos atraídes por essa sensação, por essa outra água. “Quando você diz água, o que você quer dizer? Quando você vê o seu reflexo na água, você reconhece a água em você?” A água te provoca com a própria ambiguidade.
Sombra, deslocamento e profecia
Nas aulas, costumo falar sobre a memória da ilegalidade, algo que vem desde a infância e que nos faz intuir o custo de aparecer em público. O custo de estar na luz do sol. O custo de aparecer em casa, para a família, diante das nossas mães e pais, da escola, da internet, em qualquer lugar. Marlene Wayar fala sobre a diáspora LGBTQIAPN+, a busca de um lugar no mundo e de uma coletividade. É possível ter que sair de todos esses lugares, expulsas ou em fuga voluntária, do virtual ao real, do privado ao público, até poder se encontrar. Conhecemos a linguagem do apagamento e ela se reflete em nossos arquivos. Em um certo sentido, tudo isso se incrusta na nossa experiência de olhar. Perguntamos intimamente: ela pode mostrar o rosto?; eles estão fingindo ser amigos?; a família sabe quem ela é? A luz e a sombra no retrato dissidente de gênero correspondem a uma escala social.
Ahlam Shibli (com matéria publicada na ZUM #18), fotógrafa palestina que retratou, entre 2004 e 2006, pessoas LGBTIAPN+ oriundas do Paquistão, do Líbano, da Turquia, da Somália e da própria Palestina, autoexiladas de suas terras natais para poderem habitar o próprio corpo, está tão próxima das fotos, tão fundo nas fotos, que parece nos dar uma nova vida. John Berger diz sobre ela,”existem fotógrafos que são grandes contadores de histórias […] Ahlam Shibli, eu diria, é uma adivinha. Ela observa atentamente, lendo os sinais, adivinhando e oferecendo sua profecia, que, como a de uma cartomante, é ao mesmo tempo clara e obscura, apresentando as probabilidades como cartas de um jogo, sem escolher nenhuma”.
Há quem edite as fotografias com narrativas mais ou menos lineares, como Matthew Leifheit em To die alive (presente na exposição), que faz uso até de capítulos para demarcar a história. Há quem prefira cartas sobre a mesa, meticulosamente forjadas como à sorte, como Ahlam. Para sermos adivinhas de todos os mais de 40 fotolivros na exposição, é bom reaprender edição, lugar e sombra.
Vulgaridade
“Meu trabalho é a ação de parar”, ele diz. “Conexão, saudade, memória e masculinidade.”. Ele é um “estrategista da ternura”. Nada nunca parece forçado.
Cresci tentando separar os sentidos das palavras vulgar e repugnante. A depravação, cerne da palavra vulgar, eu fantasio, pode me acusar, não te ouço. Mas a repugnância não. No fotolivro Orange Grove, Clifford Prince King encena momentos de felicidade doméstica com corpos serenos. Mostra a rotina de viver com HIV, que é invisível, evocando uma história potencial para reparar os afetos em todas as suas variações.
Na imagem escolhida como capa, envolta em um tecido púrpura, assistimos uma ação fora de quadro protagonizada por duas pessoas. Quatro pernas emaranhadas em cima de um colchão. São pés de homens negros, entrelaçados embaixo de um retrato de Martin Luther King, que nos olha docemente, preso à parede como um pôster em quarto de adolescente. O M. L. King está torto, como se o casal tivesse esbarrado sem querer. No alto da imagem, vemos o desenho de um homem negro e uma uva. Essa uva voltará em outra fotografia importante do livro. Orange Grove mostra o pós-sexo com diferentes amantes, a ternura entre amigos, o convívio sem roupa e sem a hipersexualização do outro. Não há outro entre eles.
“Eu os invento como vocês são”, a frase (que amo) de Robert Bresson sobre o cinematógrafo (cineasta, como ele chamava) agora vira: eu me invento como eu sou.
Os diários de Lyle Ashton Harris são cheios de vulgaridade (não quero ter mais medo dessa palavra). Quando comecei a fotografar, com a série Tornaras (2018), disseram que eu era obscene. Realmente, talvez eu seja. Meu amor pela fotografia explícita se dá pelo motivo de, muitas vezes, só ela poder ensinar o que o sexo realmente é (ou o que ele pode ser) para pessoas sobreviventes de violências sexuais. O explícito é um guia de retorno. O sexo é a arma favorita do mundo. Dentro dessa sigla tão abrangente, LGBTIAPN+, essa arma deturpada de correção nos persegue com imagens de violação. Ver o prazer do toque, o consentimento, os corpos respirando devagar, é poderoso. O fotógrafo Alvin Baltrop, com o seu livro The Piers (também presente na exposição), desenha outro tipo de cenário para os encontros casuais.
No pôr-do-sol, agachade em terras ancestrais de Chinook, Cowlitz, Evan Benally Atwood, fotógrafe indígena nádleehí (pessoa de corpo masculino afeminado) Diné e não-binárie, veste-se de cowboy com a calça recortada, adaptada de modo a parecer uma indumentária queer, com profanação, restituição e beleza. A série se chama Cowboy Juice, e é de 2019.
Em entrevista concedida ao fotógrafo e escritor Will Matsuda na revista Aperture, Evan diz: “Os Diné têm cinco gêneros, e os têm desde antes da colonização. O binário de gênero foi empurrado para nós. Em muitas culturas indígenas, o gênero é psicoespiritual e não fisiológico”.
Legado
Há um legado para cada letra da sigla. Há o legado da ferida, o que faz com que, dessa maneira, a experiência de entrar em um banheiro público (ou fotografar um banheiro), nos una. Estar diante de duas portas de banheiro sem poder entrar em nenhuma, e entrar, é um legado. Há o legado que documenta e há o legado que comunica.
Pensei em incluir Alair Gomes na exposição, misturá-lo às novas formas de sobreviver ao corpo do outro. De admirar em sujeição. De estar aos pés de um corpo. Alair foi para mim, enquanto eu crescia, tudo o que eu não queria ser, ou o que eu não achasse que pudesse ser. Ele quis o que eu não queria. Com os anos, percebi que eu, de uma outra forma, em outra instância, me coloquei aos pés de outras realidades inalcançáveis (aproximadas pela homenagem da fotografia). Ele olhava o corpo musculoso, magro, jovem, hétero, gay, cis, os volumes marcados na sunga entre as cavidades das sombras, via os seus diários eróticos ganharem personagens, e dentro das hierarquias coloniais de beleza, ele era o narciso daquilo que não tinha mais de 40 anos e parecia querer ser amado. Havia uma desidentificação. Confesso que demorei a entender o erotismo gay e a válvula de escape que isso proporciona. Ao mesmo tempo que é uma ode (desproporcional) à ideia de beleza, é um esgotamento (proporcional) daquilo que não pôde ser vivido.
Marlene Wayar, ativista travesti argentina, fala sobre Judy Garland em uma palestra na Universidad Nacional de General Sarmiento. As lágrimas embargam sua voz. Ela diz mais ou menos o seguinte: ao contrário de outras figuras como Marilyn Monroe, Barbara Streisand e outros epítomes da perfeição colonial, Judy era uma criança. Una niña. Dorothy foi espelho para uma comunidade sem infância com amigos inexistentes: um homem de lata, um leão e um espantalho (a não ser por um cachorro que era real). Com eles, falava de um arco íris.
A Fudida silk, coletivo formado por travestis cariocas, estampa camisas (e outras superfícies) com o retrato da Lacraia, da La Veneno, da Erica Malunguinho, da Linn da Quebrada e de outras expoentes. Vendem em feiras do Rio de Janeiro, fazem oficinas de serigrafia e reproduzem fotos de ícones trans e travestis como método de enaltecimento.
Agora, só mais uma anedota sem solução: uma amiga íntima da artista Greer Lankton, a também artista Van Barnes, diz que talvez Nan Goldin tenha documentado o seu tempo, enquanto Greer, sem dizer que isso tenha sido superior ou não, tenha comunicado. Parece superior. Comunicar soa relativamente mais importante. Penso sobre essas palavras, sem impasses entre as artistas. Nan Goldin e Greer Lankton eram amigas íntimas. Greer posou para Nan diversas vezes. Não sei o que posso dizer sobre esse caso específico sem solução. Greer deixava que outras pessoas se encontrassem através dela (a fotografassem), em um acordo de partilha amorosa. Não acredito que a amiga de Greer tenha sabido explicar a razão do próprio comentário. Acho que documentar o próprio círculo de amigos e a si mesma tem um valor cândido, quase justo, horizontal. Minha teoria, fraca, é: talvez a interdisciplinaridade seja o único caminho para comunicar o nosso tempo. A fotografia sozinha, pensada enquanto método de documentação, ao invés de uma imagem que exige saber, espaço e som, está destinada ao catálogo e a alguma insuficiência. Fui um pouco dure, me excedi, não posso concordar plenamente comigo, mas tenho tentado entender o valor do documento feito por um olhar totalmente distante e não consigo plenamente.
Legado LGBTIAPN+: infâncias que procuram infâncias felizes. Infâncias de gerações passadas, que procuram infâncias para terem sido felizes. Legado será ter uma infância livre para entregar uma realização às gerações passadas.
Muholi, em Somnyama Ngonyama: Hail The Dark Lioness (presente na exposição), cobre a cabeça com círculos de bombril e dedica o retrato à memória de como sua mãe poderia ter se parecido na sua idade, em seu imaginário. Bester, título da foto e nome de sua mãe, trabalhou como empregada doméstica. Há poesias escritas para ela. O olhar absolutamente ferrenho que atravessa até nós, pergunta ou afirma.
A fotografia-legado olha para trás, para quem não emergiu como nós. É visionária assim.
No exercício de se colocar na cidade natal, após o seu retorno, o fotógrafo Ian Lewandowski, no fotolivro My Man Mitch, intercala cenas das fábricas de aço do estado de Indiana, fotografias vernaculares da masculinidade local, e cenas do seu corpo, do corpo de seu marido e da fuligem. Ele entra em choque com o passado ou subverte o passado para poder voltar íntegro.
Curadoria e conclusão
De fato, realizar uma curadoria com fotógrafes que pensam o gênero não é articular uma fala sobre a história do gênero. É contar a história do mundo. E qualquer demarcação pretendida entre os nomes selecionados para a exposição, é falha e pequena. Mesmo que falemos sobre o mundo, falta mundo ainda. Estes livros são, na maioria, os que entraram na minha casa, fisicamente. Os que pude segurar. Mas outros, os que não conseguimos trazer, são as minhas maiores ambições. Há artistas que, por posarem, revelam no corpo uma primeira impressão de tema: a pele, o brinco, a renda, o jeito. Mas há peles e brincos que não querem pensar sobre gênero. Ter que criar uma mostra focada nessa dissidência é um aprisionamento, apesar de ser uma felicidade. A última proposta que tenho é que vocês segurem os livros (com cuidado, alguns têm dedicatórias) e não pensem também.
Tudo que quero é não ter que sentir o seu pensamento.
Entre os mais de 40 nomes da exposição, estão: John Edmonds, Sakiko Nomura, Claudia Pía Budracco, Ren Hang, Gabz 404, Zanele Muholi, Matthew Leifheit, fe AVILA, Adelaide Ivánova, Jordan Weitzman, Kaetérine Terra, JEB, Gui Mohallem, Marília Oliveira, Alair Gomes, Clifford Prince King, D’Angelo Lovell Williams, Marvel Harris, Maurício Igor, Momo Okabe, SMITH, Rafaelly de La Conga Rosa, Giovane Ferreira, Mapplethorpe, Régis Amora, Alvin Baltrop, Fábio Lamounier e Rodrigo Ladeira, Tillmans, Igor Furtado, Erick Rhein, João Penoni, etc. ///
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A IMAGINÁRIA_’03 acontece de 16 a 20 de agosto de 2023 das 14h às 19h, no Edifício Vera, à rua Álvares Penteado, 87, São Paulo
A exposição o seu reflexo na água será sediada pelo Vórtice Cultural, localizado no 7º andar.
No dia 17/08, às 16h, a IMAGINÁRIA realizará uma conversa com curadore e artistas, seguida de visita guiada.
Masina Pinheiro (1987) é artista visual nascide e criade em Vila da Penha, no Rio de Janeiro. Utiliza diferentes suportes em seus trabalhos, como fotografia, filme-ensaio, escultura, arte-educação e literatura. Sua série intitulada GH, Gal e Hiroshima, colaboração com a artista Gal Cipreste, foi uma das 10 finalistas ao prêmio Louis Roederer Discovery Award no Les Rencontres d’Arles 2022 e indicada ao prêmio principal do Gomma Grant. Venceu o primeiro lugar no Photo Prix Aliança Francesa e integrou a publicação The Eyes, [After]care, com curadoria de Laia Abril. Em 2021, ganhou o primeiro lugar no PhMuseum Photography Grant.