A fotografia é o motor invisível de exposição da artista Cinthia Marcelle
Publicado em: 15 de maio de 2018Em entrevista de 2011, concedida a Júlia Rebouças, a artista mineira Cinthia Marcelle afirma que se descobriu como artista em 2003, quando participou de uma residência artística na Cidade do Cabo, África do Sul. Daquela experiência, voltou ao Brasil com uma série fotográfica, realizada em parceria com o artista sul-africano Jean Meeran e intitulada Capa Morada, na qual, cobrindo-se com tecidos da mesma cor do fundo em frente ao qual se colocava, a artista tentava se fundir à paisagem da cidade – apenas uma foto da série não obedecia a esse esquema, curiosamente, a única em que a artista de fato se “desmargina” no meio cidade.
Cinthia Marcelle já trabalhava como artista desde os anos 1990, mas seu mito auto instituído de eleição poética está localizado em Capa Morada e na sua tentativa, com essa série, de diluir suas margens e fronteiras para mesclar-se e mestiçar-se em um outro mundo. É nesse mito, associado a uma fotografia realizada na África do Sul, que penso com frequência nos cinco dias que passo em Oxford, acompanhando a montagem de sua exposição The Family in Disorder: Truth or Dare (A Família em desordem: Verdade ou desafio), atualmente em cartaz no Modern Art Oxford (MAO), na Inglaterra. Para a exposição a artista preparou dois trabalhos inéditos, muito distintos um do outro em termos de escala e energia empregada: um site specific, The Family in Disorder, e um vídeo, do qual a exposição retira a segunda parte do seu título (Truth or Dare), feito a partir de uma fotografia registrada na África do Sul em 2017. Como se verá, toda a exposição equilibra-se e sustenta-se sobre uma fotografia feita também no país africano 15 anos depois daquela de Capa Morada.
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Exposição The Family in Disorder: Truth or Dare, de Cinthia Marcelle, Upper Gallery [vista geral]. Foto de Ian Wallman. Cortesia da Artista e do Modern Art Oxford.
Terminada a construção, um grupo de montadores-artistas convidados ocupou a galeria maior com liberdade para desmontar a estrutura, manipulando os materiais como bem entendessem, contanto que respeitassem algumas regras: evitar textos e representações figurativas, não alterar o carpete (este deveria permanecer como o índice mais evidente da duplicação de uma sala na outra); não usar qualquer tipo de ferramenta; e, por último, não retirar nada da sala, de modo que, ao final do processo, se fosse possível pesar as duas galerias, o peso de ambas deveria ser idêntico. A galeria menor ficou preservada com a mureta de materiais intocada e, uma vez aberta a exposição, permaneceu como um espelho tridimensional do passado ordenado da maior, já “desordenada”.
Como que para assegurar sua própria exclusão e a imprevisibilidade do processo, a artista confiou ao museu a escolha dos seis montadores: Aline Arcuri, Aaron Head, Chris Jackson, Kamila Janska, Andy Owen e Seb Thomas. Que também fossem artistas no lugar de “não-artistas” ou amadores era tão importante para a operação em jogo em Family in Disorder quanto o afastamento auto-imposto por Marcelle. Isso porque o enquadramento da arte, quero dizer, sua localização dentro do campo da arte, é central para a operação em jogo neste projeto. O esforço de Marcelle em Family in Disorder vai no sentido de se desafiar como artista, provocando, deslocando e desenquadrando sua história, seus métodos e processos, deixando-se, tal como em um jogo de verdade ou desafio, revelar e desmontar. Um esforço, em suma, de se “desenquadrar” de seus quadros habituais. Mas sem o enquadramento da arte, esse gesto seria apenas uma diluição ou dissolução no todo.
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Exposição The Family in Disorder: Truth or Dare, de Cinthia Marcelle, Piper Gallery [vista geral]. Foto de Ben Westoby. Cortesia da Artista e do Modern Art Oxford.
Na apresentação das fotografias aos montadores, à medida que os slides se sucediam, notava-se a recorrência de materiais como cordas, areia, pó branco, borracha, pedras ou lona preta – vários dos quais apareceriam na barreira –, assumindo formas variadas e prestando-se a usos diversos. O aspecto bruto e integral dos materiais chamava mais a atenção que o contexto das situações. Passado um tempo, deixava de importar se o que víamos era um trabalho artístico ou a desordem ilógica do mundo, se estávamos em uma galeria ou em um terreno baldio. Também deixava de importar a autoria ou a realidade anterior de cada imagem. No fluxo indiferenciado dos slides, por contágio e repetição, de uma fotografia a outra, a arte perdia seu enquadramento ao mesmo tempo que, ao desarranjo mundano, era atribuída uma gramática, um sistema e um limite.
A apresentação das imagens em fluxo contínuo e a decisão de neutralizar as particularidades de cada uma com um filtro preto e branco contribuía para aumentar a impressão de indiferenciação. Também colaborava para isso o fato de que várias das imagens não pertenciam ao repertório dos montadores-artistas. Ainda que pudessem reconhecer nomes já clássicos como Carolee Schneemann, Joseph Beys, Martha Roesler ou Robert Smithson, não se pode esperar o mesmo em relação a alguns artistas brasileiros, como António Manuel, Artur Barrio, Carmela Gross; que dizer então daqueles da geração de Marcelle, como Lais Myrrha, Sara Ramo, Marilá Dardot ou Matheus Rocha Pitta.
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Exposição The Family in Disorder: Truth or Dare, de Cinthia Marcelle, Upper Gallery [vista geral]. Foto de Ben Westoby. Cortesia da Artista e do Modern Art Oxford.
Pertencendo apenas ao processo da exposição, o slide show não foi disponibilizado ao público – e tenho dúvidas de que algum dia a artista o dividirá novamente com alguém: há algo de tão íntimo e pessoal ali, que a simples ideia já parece obscena. Mas para aqueles que o viram, uma vez aberta a exposição, era possível reconhecer aqui e ali, na galeria onde trabalharam os artistas convidados, algumas formas saídas das fotografias: uma massa redonda pendendo do teto lembra um detalhe em uma instalação do sul africano Dineo Seshee Boppe; uma pequena escultura de tijolos equilibrados em giz, um André Komatzu; fitas pendentes na parede, um Robert Morris; uma espiral de tecido branco, uma Cinthia Marcelle. Era como se as fotografias do slide show, inicialmente pertencentes à memória pessoal da artista, tivessem ido para o espaço depois de filtradas e reorganizadas pela experiência de cada um dos montadores; como se aquelas formas tridimensionais fossem os vestígios de uma memória individual deslocada, transformada e naufragada coletivamente.
Se aquelas formas autônomas citavam diretamente o slide show não é possível saber, assim como não é possível adivinhar para qual montador deve ser atribuída sua autoria. O trabalho retira sua força dessa indistinção, pois não estamos em uma sala cheia de objetos independentes, de autorias distintas, dispostos lado a lado segundo algum tipo de padrão ou ordenação. Ao contrário, a sala nos provoca duas experiências distintas, que se alternam mas não se anulam: de um lado, a apreensão de uma totalidade, um overall abstrato que parece querer se expandir para além das paredes. De outro, uma atenção aos detalhes e pequenos acontecimentos visuais. Em outras palavras: enquadrar e desenquadrar.
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Três fotografias da exposição The Family in Disorder: Truth or Dare, de Cinthia Marcelle, Upper Gallery [detalhe]. Foto de Cinthia Marcelle. Cortesia da Artista e do Modern Art Oxford.
Na sua simetria interrompida por um centro, Truth or Dare reflete a situação espacial da exposição, com suas duas salas espelhadas e uma no meio com o vídeo: os movimentos em sentido horário e anti-horário apontam, cada qual, para uma sala, e a sombra projetando-se sobre o eixo triangular faz a vez da sala onde o vídeo está instalado – ela também mais escura que as duas grandes galerias entre as quais se encontra. Se o movimento do triângulo no filme lembra o de uma bússola ou um relógio, ele também evoca, como sugerido pelo título, o de uma garrafa na brincadeira “verdade ou desafio”, com as duas salas encarnando, ao mesmo tempo, os dois jogadores do jogo: uma sala é o espelho e o desafio da outra.
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Exposição The Family in Disorder: Truth or Dare, de Cinthia Marcelle, Middle Gallery, frames do vídeo Verdade ou desafio. Cortesia da Artista e do Modern Art Oxford.
O vídeo também provoca uma sensação de desorientação não muito distinta daquela provocada pelas duas galerias de Family in Disorder: não só a bússola parece sem prumo, mas nós também perdemos, momentaneamente, o sentido de gravidade e nossa capacidade de interpretação espacial. Por um instante, ficamos sem saber se é o triângulo que se move sobre um fundo fixo, se é o fundo que gira com o triângulo colado a ele, ou se é a câmera que gira sobre o próprio eixo ao redor de um objeto fixo. Não somos capazes nem mesmo de saber se o filme é uma animação feita a partir de uma fotografia ou é um plano sequência: assim como as fotografias do slide show desaparecem no meio do processo, também aqui não é possível ter certeza de que aquela forma triangular seja originalmente uma fotografia. É essa fotografia, praticamente invisível e esquecida, que sustenta e equilibra o jogo de verdade e desafio entre duas salas repletas de materiais.
Entre esta fotografia e aquelas de Capa Morada, são 15 anos que separam o momento em que Cinthia Marcelle se reconhece como artista e a ocasião em que convoca um levante contra sua autoridade artística. Nesse meio tempo, a artista expôs em grandes museus, participou de bienais e recebeu vários prêmios – o mais recente, uma Menção Honrosa por seu trabalho Chão de Caça, comissionado para o pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza.
Pensando nessas datas, à luz do que testemunhei em Oxford, fico a me perguntar se Family in Disorder não seria, mais que uma provocação e um desafio, uma retrospectiva de Cinthia Marcelle. Ou melhor dito: uma retrospectiva-levante, uma retrospectiva-motim, uma retrospectiva-ataque-desafio-provocação. Uma retrospectiva na qual a artista pode recuperar sua trajetória tanto quanto seu gesto inicial e tantas vezes repetido de tentar perder suas margens dentro de uma margem delimitada. Uma retrospectiva que, como um beijo de Judas, revela e põe à prova.///
Cinthia Marcelle (1974) vive e trabalha em São Paulo. Suas fotografias, vídeos e instalações já foram expostas em instituições no Brasil e no exterior, entre os quais o MoMA PS1, a Tate Modern, a Trienal do New Museum, a Bienal de São Paulo e, recentemente, a 57 Bienal de Veneza, onde recebeu a menção honrosa por seu trabalho no pavilhão brasileiro.
Patrícia Mourão é doutora em cinema pela Universidade de São Paulo, com bolsa sanduíche na Columbia University. Programou mostras dedicadas ao cinema estrutural e organizou, entre outros, os livros Cinema Estrutural (coorganização de Theo Duarte, Caixa Cultural, 2015); Jonas Mekas (Cinusp, 2013), David Perlov: epifanias do cotidiano (coorganização de Ilana Feldman, CCJ, 2011) e Harun Farocki: por uma politização do olhar (Cinemateca Brasileira, 2010).
Tags: exposição, exposição internacional, fotografia