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Exposição Antilogias: o fotográfico na Pinacoteca trabalha a ideia do acervo como espaço em movimento

Ronaldo Entler Publicado em: 21 de julho de 2017

Armando Prado, sem título, 1977

A missão do museu é paradoxal. Sua tarefa é tanto resguardar quanto colocar em circulação os objetos que abriga. Ele deve estabilizar seus materiais e também responder à transformação dos olhares. Ao museu de arte, sobretudo, cabe circunscrever as linguagens operadas pelas obras e, ao mesmo tempo, pôr em marcha suas potê­ncias transgressoras. Dentro do museu, o acervo parece responder pelo lado mais rígido dessa missão. É ali que se realiza a tarefa de conservar os objetos, de preservá-los da ação do tempo. Inacessível, ele é a parte mais privada desse espaço que foi reivindicado como público. Imaginamos um ambiente onde a luz, a umidade, a temperatura e também os gestos são balanceados, onde o olhar adquire seu viés mais técnico e eficiente. Supomos que, dentro dele, também as palavras são pronunciadas de forma precisa e solene, apoiadas em convenções seguras. E, uma vez impressas nas fichas que agenciam o acesso às obras, elas se tornam definitivas.

A exposição Antilogias, na Pinacoteca de São Paulo e com curadoria de Mariano Klautau Filho, é uma oportunidade para desconstruir essas fantasias em torno do acervo. A mostra surge do esforço da instituição de pensar sua coleção de fotografia, constituída ao longo dos últimos 40 anos. Em princípio, a tarefa solicitada a Klautau foi essencialmente técnica: ele deveria percorrer as imagens para entender e refinar suas formas de catalogação. Deveria também vasculhar o centro de documentação do museu para buscar informações complementares sobre os trabalhos. A pesquisa permitiu ainda observar as margens da coleção de fotografia para localizar obras que, mantendo-se em suas vizinhanças, poderiam ser eventualmente pensadas dentro desse recorte.

Para uma tarefa como essa não existe uma ciência pronta. As palavras, os conceitos e os indexadores que o pesquisador escolhe não são neutros, eles têm um alto poder de renovar os sentidos das imagens a que se referem. É assim que o acervo, esse lugar que imaginamos hermético e assertivo, contamina-se dos paradoxos que atravessam de modo amplo qualquer espaço dedicado à história da cultura. Não se preserva uma obra de arte como se guarda um fóssil. Aquilo que de uma obra se conserva é também sua mobilidade, sua capacidade de falar dos novos tempos com que se confronta.

Thomaz Farkas, Expedição ao rio Negro, da série Brasil e brasileiros no olhar de Thomaz Farkas, 1975

A ideia de realizar uma exposição veio em seguida, ao final de um semestre de pesquisas realizadas por Klautau. Mas é possível supor que a tarefa de observar sistematicamente a coleção já tivesse exigido muitas vezes o trabalho inventivo de uma curadoria. A preparação da mostra demandou mais um ano de trabalhos e contou com a colaboração de Pedro Nery como curador-adjunto. Para ampliar a leitura já realizada, Klautau optou por colocar a coleção da Pinacoteca em diálogo com outras imagens. Antilogias conta com cerca de 250 trabalhos de 32 artistas presentes no acervo e de outros 29 nomes convidados. O objetivo dessa abertura foi reforçar a proposição de certos “percursos” – conceito-chave explorado pelo curador – pela diversidade de formas e materialidades que a fotografia já esboçava dentro do acervo.

Sabemos que, nessas quatro décadas em que essa coleção se constituiu, nossa compreensão da fotografia foi alargada tanto pelas novas abordagens teóricas quanto pela produção experimental dos artistas. Sabemos também que, nesse mesmo período, os diretores e curadores que atuaram na Pinacoteca souberam manter a instituição atenta à produção fotográfica brasileira, ainda que com visões e preferências muito distintas. Num país marcado por instabilidades políticas, as instituições precisam desenvolver certa habilidade para produzir suas narrativas a partir de gestos descontínuos. Para se ter uma noção do que é esse esforço: Tadeu Chiarelli, que dirigia o museu na época em que o projeto de revisão catalográfica foi viabilizado, conta que foi seu antecessor, Ivo Mesquita, quem lançou um olhar mais provocativo e atento em direção ao acervo de fotografia. O convite a Klautau para realizar a pesquisa que culminou nessa exposição partiu de Chiarelli. Mas, semanas antes da Pinacoteca abrir Antilogias, Jochen Volz já tinha assumido o lugar de Chiarelli na direção.

Em meio à diversidade de trabalhos e de visões que resultam nessa coleção, a exposição não tem a pretensão de chegar a uma síntese do que é a fotografia abrigada pela Pinacoteca. O que está ali representado é, antes, a topografia complexa de um espaço percorrido pela instituição nessas quatro décadas e que, conforme o mapeamento feito pelo curador, constitui um campo fotográfico bastante vasto.

André Penteado, da série Missão francesa, 2017

Se obedecermos ao desenho das salas ocupadas pela exposição, é a série Bom Retiro e Luz (1976), de Cristiano Mascaro, que abre Antilogias. Esse trabalho, produzido a convite da então diretora Aracy Amaral, demarca o início da coleção de fotografia da Pinacoteca. Na sala subsequente, vemos outras obras produzidas entre as décadas de 1970 e 1980 por nomes como Carlos Moreira, Boris Kossoy, Armando Prado e Alair Gomes. No entanto, a exposição não se limita a uma organização cronológica. Apesar da simetria das salas, o espaço simbólico construído pelas imagens é complexo e nenhuma linearidade está garantida: numa espécie de analogia com o que ocorre no acervo, há diversas portas de entrada para a exposição. Independentemente da que for escolhida, é certo que, em uma experiência dessa ordem, sempre chegaremos pelo meio. Antes mesmo de entrar nas salas, encontramos um recorte da série Missão Francesa (2017), trabalho recente de André Penteado que cria também um espaço de transição entre esta exposição e uma história mais ampla da arte brasileira, bem representada em outros espaços da Pinacoteca. A exposição revela uma curadoria provocativa e plena de inquietações, mas que não faz das obras um pretexto para manifestar suas hipóteses teóricas. Com uma montagem simples, generosa e sem artifícios cenográficos, o público encontrará sua própria distância e ritmo para percorrer as imagens.

Não é difícil construir hipóteses sobre o que aproxima as obras alocadas em cada uma das sete salas da exposição, recortes mais ou menos consolidados como fotografia documental, fotografia expandida, corpo, paisagem e narrativas, entre outros. Mas, como parte desse exercício de produzir antilogias [termo que indica contradição ou confronto em ideias e argumentações], sempre encontraremos trabalhos que não se entregam tão facilmente ao lugar que lhe foi dado pela curadoria. Também veremos imagens que ora antecipam, ora desdobram para outras salas os recortes demarcados. Um exemplo: em meio a um gênero tradicional como o da fotografia de paisagem, algumas obras se expandem na direção da imagem em movimento por meio de fotomontagens, de sequências narrativas, vídeos e gifs animados. Ou, na direção contrária: numa sala que claramente prioriza as poéticas da fotografia expandida, bem ao lado de Rosângela Rennó, há um documentarista clássico como Jean Manzon. Segundo o curador, o que motivou essa aproximação é algo muito sutil: numa de suas imagens (Cena urbana no centro de São Paulo, 1950), vemos um garoto imerso em alguma outra paisagem do mundo, graças a um aparato de exibição de imagens estereoscópicas. Klautau enxerga ali o prenúncio do desejo de desvelar os artifícios do dispositivo fotográfico, que marca vários dos trabalhos mais recentes expostos naquela sala.

Claudia Andujar, sem título, 1970

Podemos apostar que algumas tensões provocadas pela curadoria já estavam, desde antes, colocadas também pelo acervo. Já na primeira sala, os curadores informam que as imagens de Mascaro exibidas originalmente em 1976, foram novamente ampliadas em 2003. Com algumas dessas cópias exibidas lado a lado, vemos como uma mesma imagem se comporta de modos distintos quando submetida a condições técnicas diferentes. A fotografia impôs o reconhecimento da autenticidade estética de uma imagem que já nascia como cópia. Mas há um efeito colateral dessa concessão que demoramos a reconhecer: se o procedimento técnico de reprodução não oferece parâmetros inequívocos, o trabalho criativo do fotógrafo está longe de se esgotar na captura de um instante.

Cristiano Mascaro, da série Bom Retiro e Luz, 1976

Cristiano Mascaro, da série Bom Retiro e Luz, 1976

Além de muitos jovens artistas, a exposição inclui trabalhos pouco vistos de fotógrafos consagrados, por exemplo, uma Claudia Andujar precocemente experimental (Sem título, 1970) ou, ao contrário, um Thomaz Farkas documental, já distante do formalismo dos fotoclubes (Expedição ao Rio Negro, AM, 1975). Há em Antilogias um desejo claro de apontar para a amplitude das experiências que a fotografia pode assumir: ela pode assumir a forma de livro, de instalações e de objetos variados. Pode também avançar sobre o território da literatura, da escultura e do cinema. Uma situação-limite desse exercício curatorial pode ser visto na pintura Banhistas I (1976), de João Calixto. A técnica tradicional – óleo sobre tela – não deixa dúvidas sobre o lugar mais confortável para catalogação dessa obra. Mas a exposição é muito convincente ao observar aquilo que há de fotográfico na imagem: um realismo baseado na banalidade do instante e no enquadramento quase acidental de alguns elementos, inevitavelmente associado ao clique despretensioso de uma câmera. Trazida para o território da fotografia, e assumida a possibilidade de leituras anacrônicas, essa imagem poderia se confundir com um dos registros que postamos nas redes sociais num fim de semana. Como sugere Klautau, o que guia sua pesquisa é a tentativa de compreender uma cultura visual atravessada pela fotografia.

Em particular, a vitrine dedicada à série Nova York (1982), de Alex Vallauri, constitui uma alegoria dos deslocamentos que uma obra pode experimentar dentro de um acervo. Vallauri é um dos precursores da arte urbana no Brasil e o que vemos ali, em cópias xerográficas, é um portfólio composto por registros fotográficos de intervenções feitas na cidade.  Não é incomum ver documentos, sobretudo aqueles que se referem a ações artísticas efêmeras, ganharem em coleções o estatuto de obra de arte. Mas o que surpreende não é apenas isso: ao lado da sequência de fotografias está a pasta que abrigava esse portfólio. Nela vemos que as páginas de plástico transparente absorveram as imagens que protegiam, como se o tempo tivesse prosseguido por conta própria a experimentação de novos suportes que tanto marcou o trabalho dessa geração de artistas. É um acidente, sem dúvida, mas que demonstra o modo como as imagens, mesmo quando permanecem guardadas, são capazes de renovar os problemas que lançam ao olhar.

Alex Vallauri, da série Nova York, 1982

Vitrine com a série Nova York, de Alex Vallauri, 1982

Percorrendo Antilogias, entendemos que o acervo não é avesso às ações do tempo. Ao contrário, é constituído justamente por elas: pelas transformações que marcam a trajetória da instituição, o olhar do público, os materiais e as linguagens da arte. O trabalho do curador foi, em certa medida, dessacralizar o espaço de uma reserva técnica, produzir ali movimentos menos contidos e protocolares, arrancar de seu silêncio solene uma escuta do modo como as obras negociam entre si uma história da fotografia, que não se resume à somatória das leituras que justificaram cada uma das aquisições. Ao colocar seu acervo em diálogo com outros trabalhos, o museu demonstra que investir na compreensão de sua história não é um movimento de autocelebração, mas uma forma de manter a vitalidade de sua coleção e de fazer dela um canal de diálogo com o mundo a seu redor.///

 

Ronaldo Entler é pesquisador e crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP) e editor do site Icônica (www.iconica.com.br).

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