Entrevistas

Norval Baitello Jr, cocurador de Flusser e as dores do espaço, fala sobre a exposição dedicada ao filósofo no Sesc Ipiranga

Publicado em: 15 de janeiro de 2018

Retratos de Vilém Flusser, 1988-89. Crédito da foto: Ed Sommer

A exposição Flusser e as Dores do Espaço, em cartaz no Sesc Ipiranga, com curadoria de Norval Baitello Jr e Camila Garcia, oferece um panorama do pensamento de Vilém Flusser e propõe reinterpretações sobre as principais contribuições do filósofo em diversos campos de atuação, tomando como ponto de partida termos chave como pós-história e imagem técnica.

Autor de livros como A Filosofia da Caixa Preta e O Mundo Codificado, Vilém Flusser nasceu na atual República Tcheca, em 1920. Quando tinha 19 anos e estudava filosofia em Praga, o exército nazista ocupou o estado checo – seus pais, avós e sua irmã foram mortos nos campos de concentração. Em 1941, Flusser emigrou para o Brasil. Por aqui, elaborou as bases de algumas de suas principais teorias sobre fotografia e linguagem, fez carreira como professor universitário, colaborou com diversas revistas e jornais, naturalizou-se brasileiro e permaneceu até o início dos anos 70, quando voltou para a Europa – embora tenha retornado com certa regularidade durante os anos 80 para dar aulas de teoria da comunicação na FAAP.

São nove espaços expositivos, alguns com colaboração de outros artistas, como Renato Sass. Na área externa, um painel de grandes dimensões apresenta os desenhos de um molusco criado pelo filósofo, cujo nome é também o título de seu livro de ficção lançado em 1988, Vampyroteuthis infernalis.

Em uma das salas, diversos trabalhos de artistas conhecidos são acompanhados por textos de Flusser, entre eles uma série de colagens de Sérgio Lima, que utiliza páginas de revista, imagens de arquivo e objetos. Na mesma sala são apresentadas fotografias de uma performance de Fred Forest para a 12ª Bienal de São Paulo – o artista argelino, conhecido por se apropriar dos meios de comunicação de massa para construir discursos, participou da Bienal após um convite do próprio Flusser.

ZUM conversou com Norval Baitello Jr, cocurador de Flusser e as Dores do Espaço, sobre a importância do pensamento de Flusser nos dias de hoje, os desafios para a montagem da exposição e os possíveis caminhos apontados pelo filósofo para darmos conta da invasão “de todas as mediações imagéticas visuais ou acústicas” que sofremos.  

Como surgiu a ideia de organizar uma exposição sobre Vilém Flusser? Foi um convite do Sesc?

Norval Baitello: Foi uma ideia conjunta do Arquivo Flusser de Berlim e do Arquivo Flusser de São Paulo. Estávamos digitalizando os escritos de Flusser em Berlim, com o apoio da FAPESP. Tudo o que está hoje na web é fruto deste trabalho do AFSP que está sediado na PUC-Ipiranga. São mais de 35 mil páginas escritas por ele. Trata-se de um pensador muito fértil que escreveu e pensou sobre as grandes mudanças que estavam apenas se anunciando e que transformaram a face do mundo, os novos ambientes da comunicação por aparelhos, mas também as grandes revoluções constitutivas da hominização, a queda das árvores, o nomadismo, o assentamento em casas e aldeias fixas e, por fim, a última catástrofe, a das habitações inabitáveis. Trata-se de um pensador muito instigante e que vem sendo descoberto no mundo todo. Ele não fazia ficção, nem filosofia, ele pensava antropologicamente por meio de cenários muito bem fundamentados em uma arqueologia e uma futurologia.

Da ação conjunta entre os dois arquivos nasceram duas exposições, uma em Berlim e Karsruhe (Alemanha), chamada Flusser e as Artes, e esta outra em São Paulo, chamada Flusser e as Dores do Espaço, voltada para os diferentes ambientes que Flusser pensou, das coisas e das não-coisas, da escrita, do celeiro de ideias, diálogos e polêmicas, da caixa preta, do Vampyrotheutis, dos diálogos com os artistas e da habitação inabitável perfurada pelos furacões da mídia. O Sesc acompanhou a exposição alemã com atenção e teve especial sensibilidade para um novo projeto mais abrangente e plural, enriquecendo a exposição que mostra um Flusser mais crítico e mais lúdico, pensada desde o princípio juntamente com Leo Réa Le, o produtor, e com Camila Garcia, também curadora.

Montar a sala dos artistas parece ter sido uma tarefa prazerosa. Além de pinturas e outras técnicas, há dois conjuntos que trazem a fotografia para a discussão: as colagens de Sérgio Lima e os registros da performance de Fred Forest na Bienal. Quais são as principais contribuições desses trabalhos, no contexto da exposição?

NB: Os diálogos de Flusser com os artistas foram muitos, desde aqueles iniciantes que lhe mandavam poemas e obras pedindo sua avaliação, até aqueles que o desafiavam com sua criatividade. E os textos que ele escrevia sobre eles, seja como simples cartas de resposta (às vezes demolidoras), seja como artigos em jornais e revistas, eram sempre surpreendentes, verdadeiramente críticos. Assim foi com a Poesia Concreta, com Guimarães Rosa, com Niobe Xandó, com Fred Forest, Sérgio Lima, Gabriel Borba, Edmar de Almeida e muitos outros. Pretendemos nesta sala da exposição reviver a tensão entre as obras e os textos sobre elas. Não queremos ilustrar nem um nem outro, mas confrontar olhares. Assim também os confrontos de olhares com os fotógrafos e seus aparatos. Flusser tinha um especial carinho pelo ato fotográfico como um “bote” que paralisa o tempo.

Registro fotográfico da performance O branco invade a cidade, XII Bienal de São Paulo, 1973 © Fred Forest /AUTVIS, 2017

Na obra de arte, Flusser se interessa mais por suas propriedades de comunicação e menos pela forma. Isso significa dizer que ele tinha menos apreço por artistas mais preocupados com a experiência estética? 

NB: O olhar de Flusser de fato nunca se atinha a um produto em si, mas ao impacto que este produto causava ou poderia causar em uma cultura, em uma época, em um ambiente. Isto, no entanto, não significa que ele não estava atento aos experimentos com a forma artística. Ao contrário, os experimentos de Mira Schendel, de Guimarães Rosa, de Samson Flexor, de Haroldo de Campos também despertavam sua atenção, pois apontavam para novas possibilidades de ambientes culturais.

É difícil deixar de pensar que algumas ideias levantadas por Flusser ainda nos anos 70 nos ajudam a pensar sobre 2018. Por exemplo, as consequencias de uma sociedade mediada por superfícies, abordadas no livro O Mundo Codificado. Hoje não apenas consumimos imagens em telas, como também produzimos conteúdo por meio delas…

NB: A criação de uma realidade mediada por superfícies, aponta Flusser, nasce com os primeiros registros das imagens rupestres. Já elas produziam conteúdos sobre o mundo, sobre os homens que as criavam e sobre elas mesmas. O que mudou, de lá pra cá, foram as técnicas de registro cada vez mais mediadas por aparatos programáveis, tornando seus operadores apenas funcionários dos programas. E os programas são cada vez mais onipresentes e obedecem a outros programas mais complexos e abrangentes. O diagnóstico de Flusser, dos anos 70, é mais atual que nunca.

Painel com os desenhos do molusco Vampyroteuthis infernalis, criado por Vilém Flusser e parte da exposição Flusser e as dores do espaço, no Sesc Ipiranga, 2017. Crédito da foto: Alexandre Nunis

Curiosamente, temos duas exposições simultâneas em São Paulo que envolvem importantes pensadores do campo da linguagem visual, Vilém Flusser e Georges Didi-Huberman. Você vê algum ponto de contato entre as duas mostras?

NB: Flusser tinha um pensamento original sobre as realidades bidimensionais e seu impacto sobre o espaço tridimensional. Aí sua originalidade é insuperável: esta é uma das dores do espaço, o encolhimento da vida para caber em duas dimensões (as outras dores são a passagem para a unidimensão da linha e a passagem para a nulodimensão das cifras e algoritmos).

Didi-Huberman possui um olhar mais estetizante sobre a imagem, mesmo sendo um leitor notável de Aby Warburg (que combatia a “leitura excessivamente estetizante” das imagens, em favor de uma busca de etimologias e de impactos). Mas justamente na exposição Levantes [em cartaz no Sesc Pinheiros até dia 28/01] temos um Didi-Hubermann já muito mais voltado para a força das imagens sobre os ambientes nos quais atuam. Esta é, sem dúvida, uma aproximação ao pensamento de Flusser e um estreitamento de intimidade com Aby Warburg e seu conceito de imagem como “fórmula de emoção” (Pathosformel, em alemão).

Na casa/contêiner, ponto final da exposição, tudo se transforma em uma sobrecarga intimidadora – e acho que todos passamos por essa sensação com nossos dispositivos eletrônicos, por exemplo. Existe alguma forma de lidar com isso, além das tentativas frustradas de reclusão em nossas “casas furadas”? Há alguma pista disso nos textos de Flusser?

NB: Procuramos potencializar ali o desconforto de estarmos, dentro de nossas próprias casas (o que significa também, dentro de nossa intimidade e nossos corpos), invadidos pelas intempéries e destemperanças de todas as mediações imagéticas visuais ou acústicas. Tal situação extrema, disse Flusser, é uma catástrofe que apenas começa e, portanto, é “sem nome”. Em uma de suas últimas conferências, na Academia das Artes de Berlim, ele performatiza sobre o palco o “sem saída” em que estamos nos metendo e, encostado no fundo do palco, declara que chegamos ao final da linha e só nos resta buscar percorrer um retorno gradativo aos espaços que perdemos. Ele dizia: “Espaço, eis aqui as minhas dores!”///

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Flusser e as dores do espaço
Sesc Ipiranga
Mais informações aqui.

No dia 20/01, haverá uma aula aberta em um dos espaços da exposição com Norval Baitello junior, Alex Heilmair, Camila Garcia, Diogo Andrade Bornhausen e José Eugenio de Oliveira Menezes.

 

Norval Baitello junior é Dr. em Ciências da Comunicação e Literatura Comparada pela Universidade Livre de Berlim. Professor de Teoria da Imagem na pós-graduação da PUC-SP. Diretor científico do Arquivo Flusser São Paulo. Autor dos livros O pensamento sentado (2012) e A era da iconofagia (2014). Professor convidado das universidades de Viena, S. Petersburgo, Évora, Barcelona e Sevilha.

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