Sensibilidade e ética: a produção em vídeo de artistas mulheres em À Nordeste
Publicado em: 19 de agosto de 2019Juliana Notari, Soledad (2014)
À nordeste é uma posição, uma perspectiva, um lugar físico ou simbólico a partir do qual os artistas que integram a mostra organizada por Bitu Cassundé, Clarissa Diniz e Marcelo Campos produzem.
Os curadores, que conhecem de dentro as cenas artísticas do Ceará (Bitu), de Pernambuco (Clarissa) e da Bahia (Marcelo), optaram por uma postura inclusiva em detrimento de um recorte específico e direcionado. Não há cortes geracionais, nem por linguagem. Na mostra, convivem trabalhos mais antigos e recentes, altamente tecnológicos e artesanais. O resultado é uma exposição com 160 artistas e 275 trabalhos.
É muita coisa para ver em uma visita só. É também muita coisa para acomodar na sala expositiva do Sesc 24 de Maio. Aracy Amaral mencionou o “espaço atravancado” e a “montagem labiríntica”; “ambiente saturado” e “montagem confusa” foram os termos usados por Tadeu Chiarelli (ambos na revista Arte!Brasileiros). No entanto, essa abundância joga a favor: pluralidade é a premissa de uma exposição que se recusa a fazer uma síntese e apresentar uma visão unívoca e acabada sobre o nordeste. É, também, uma demonstração clara da qualidade da produção artística situada “à nordeste”, questionando e confrontando a ideia, tão equivocada quanto persistente,de uma hegemonia do sudeste nas artes.
A exposição oferece a possibilidade de ver trabalhos instigantes de artistas cujas obras circularam pouco na cidade de São Paulo. Juliana Notari, por exemplo, vem realizando uma investigação centrada no corpo como veículo de experimentações sensoriais extremas desde o início dos anos 2000. Em Soledad, videoperformance de 2014 que está na exposição, a artista lava um mausoléu abandonado, limpando o interior de uma urna funerária com mãos desnudas, retirando um a um os ossos ali depositados. A imagem criada pela artista é forte. Remonta ao tema clássico da Vanitas, geralmente relacionado a pinturas de natureza morta nas quais aparece uma caveira como a nos lembrar do caráter passageiro da vida: “tudo é vaidade”. O distanciamento insinuado pelo caráter profissional da ação, ressaltado pelo avental branco, cede a uma intimidade incômoda que se estabelece entre o corpo vivo da artista e o corpo fragmentado, desfigurado e frágil do morto desconhecido. Há uma dimensão ética em Soledad, no dispêndio de energia, tempo e atenção na ação da limpeza que não pode ser retribuída ou sequer reconhecida pelo outro que já não está mais ali.
A ética atravessa boa parte dos trabalhos dos artistas que produzem à nordeste. Nessa categoria está o colossal vídeo Provisão (2009), de Rodrigo Braga e obras que envolvem a participação de comunidades e a representação do outro. Tanto Bárbara Wagner e Benjamin de Burca quanto Virgínia de Medeiros, por exemplo, são artistas cujo trabalho se dá em colaboração com comunidades específicas. Para realizá-los, os artistas passam longos períodos convivendo com pessoas, conhecendo seus modos de vida, valores, desejos. A ética norteia a relação entre artista e esses indivíduos ou grupos sociais.
Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, Faz que vai (2015)
Em Faz que vai, 2015, Bárbara e Benjamin filmam quatro bailarinos dançando, numa sintonia fina entre a dança e o modo de captar os movimentos desses corpos. O trabalho é a confluência entre esses dois conhecimentos, que faz ambos presentes e visíveis. A dança é encenada para a câmera, mas ainda vemos espontaneidade e descontração. A luz cuidada da cena, o enquadramento preciso e a alta definição da imagem levariam a pensar numa filmagem tradicional, uma propaganda para TV ou uma novela. Mas o que segue é uma exibição de corpos que não atendem aos padrões convencionais de beleza, e roupas que não correspondem à última moda. São protagonistas muito mais complexos do que a dançarina do programa de auditório, os modelos de comercias de carro ou as atrizes da novela das oito.
Trem em Transe (2019), de Virgínia de Medeiros, foi filmado em um trem urbano em Salvador. Durante o percurso, um grupo religioso prega e interage com os passageiros. Feito de modo bastante simples e direto, com uma câmera dentro do trem, o trabalho consegue capturar a tensão entre encenação e espontaneidade, verdade e ficção, fé e convencimento racional. Resistindo à tentação de julgar o discurso redentor e as avaliações morais do pastor, Trem em transe revela ambiguidades: a proximidade da religião evangélica com as religiões de matriz africana, o relato pessoal cheio de floreios narrativos sobre o encontro do pastor com Jesus, a empatia de algumas pessoas e a relutância de outras.
Virgínia de Medeiros, Trem em transe (2019)
Yolanda, de Sayara Elielson, também tensiona os limites entre ficção e realidade. De volta à casa dos pais, após um período de formação atuando em um grupo de dança, a artista decide fazer uma série de vídeos, dividida em episódios, que tem a personagem Yolanda, uma espécie de alter ego da artista, como protagonista. Sayara cria a partir de elementos cotidianos presentes na casa de seus pais e utiliza recursos bastante limitados de filmagem e edição. A partir de um cotidiano árido, de uma casa bastante simples e de objetos ordinários a artista consegue construir uma narrativa que, nos melhores momentos, combina imagem e texto em uma narração bastante poética. Os episódios da série, uma espécie de diário íntimo que aborda assuntos como a sexualidade da artista, que se define como não binária, podem ser vistos na internet.
Há inúmeras outras artistas que mereceriam um olhar mais atento. A exposição traz momentos mais abertamente políticos, e dedica-se a pensar a questão do trabalho e da exploração da mão de obra nordestina na história brasileira. À nordeste também reúne um conjunto bastante significativo de obras que trazem signos, rituais e símbolos das religiões de matriz africana. Artistas modernos como Montez Magno, ou concretos, como Almandrade, aparecem ao lado de artistas usualmente classificados como populares, como mestre Vitalino. Os saltos de um trabalho a outro muitas vezes são grandes, e exige do público atenção. Mas algumas relações, como a Carrancaiaque de Marepe (uma carranca desenhada em uma das faces de um caiaque) junto às carrancas feitas com capacetes e motos de Tadeu dos Bonecos são divertidas e revelam encontros inesperados.
Sayara Elielson, Yolanda (2018)
Chama a atenção a ausência de outra grande artista, Oriana Duarte. Mais especificamente, seu trabalho Plus Ultra (2006-2010), que mostra a artista remando por diversos rios brasileiros, de norte a sul do país. Talvez Oriana ali, dentro do barco, remando e deslocando-se constantemente fosse a resposta possível à pergunta do artista Yuri Firmeza que deu origem à exposição. Yuri teria perguntado: “a nordeste de quê?”… Quando se está em constante deslocamento, o nordeste também vai mudando. Para responder essa pergunta, o sujeito não pode ficar na margem, parado; deve estar em movimento, projetando sucessivos “nordestes”, onde quer que esteja.///
Thais Rivitti é crítica de arte e curadora.
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À nordeste está em cartaz no Sesc 24 de Maio, São Paulo, até 25 de agosto.
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