Ultrasuperfície: entre o privado e o performativo
Publicado em: 5 de dezembro de 2024É nessa linha tênue que a artista e cineasta brasiliense Amanda Devulsky realiza o seu projeto Ultrasuperfície, apresentado como web art em parceria com a plataforma aarea.co em 2021 e publicado como fotolivro pela zero-Edições no final de 2023. Ultrasuperfície nasce do resgate dos arquivos digitais do fotolog da pompomzinha, nas palavras de Amanda uma “proto-influencer” e alter-ego da autora e que aos 13 anos de idade se tornou uma celebridade local na comunidade online de Brasília. Isso no início deste século, entre 2003 e 2006, auge do sucesso da plataforma Fotolog no Brasil.
Amanda conta com que uma das suas ideias com o projeto foi “brincar com essa coisa da futilidade, do supérfluo, do bonitinho. Tem muita inocência envolvida, mas também alguma estratégia. Ao tentar recuperar algum poder no mundo através de imagens, de narrativas, ela está também desafiando o mundo a responder a isso, e encarando as consequências”. Além disso, em Ultrasuperfície ela também discute a percepção dessas imagens “sem valor” dos arquivos digitais de uma geração que desenvolveu uma cultura visual já no ambiente online de jogos, fotologs e afins. Leia abaixo a entrevista.
A ideia de arquivo fotográfico ainda é muito vinculada à imagem analógica, da caixa de negativos e fotografias ampliadas em papel fotográfico guardadas no fundo de algum armário. Seu projeto resgata arquivos digitais de uma “época de ouro” (ou de inocência) da internet brasileira, a febre do fotolog aqui no Brasil (algo entre 2000 e 2005). Como surgiu a ideia para este projeto? Por que resgatar imagens dessa “gaveta digital”?
Amanda Devulsky: Fiquei cozinhando esse projeto por uns dez anos. Acho que em 2015 ele começou a tomar um pouquinho de forma quando comecei uma engenharia reversa para entender duas coisas: uma era o que me levou a trabalhar com cinema e a outra era porque não me sentia tão confortável com a centralidade do cânone desse campo.
O meu trabalho primário na vida adulta foi como cineasta. Estudei cinema na universidade e dirigi filmes desde então. Desde quando pisei numa aula de cinema em 2010, eu saquei que o interesse que eu tinha em imagens digitais da internet era recebido com estranhamento. Talvez também por uma questão geracional. Sou da primeira geração que teve a transição entre infância e adolescência permeada pelo acesso à internet. Em 2010, todo esse universo parecia uma coisa ainda pouco refinada, cafona, com um ar expirado de novidade. Talvez até hoje seja assim.
Mas o fato é que eu considero que minha primeira “escola de cinema” foram os primórdios da internet: jogar Counter Strike na lanhouse aos dez anos de idade, entrar no bate-papo da Turma da Mônica, aprender a fazer o upload de um autorretrato nas redes. Toda a minha relação com imagem e narrativa se formou ali. Na minha casa, não havia tanto a cultura de se ver televisão ou filmes juntos. Havia fotografias analógicas guardadas, mas eu não tinha a permissão de tirar fotografias analógicas porque elas supunham um gasto financeiro: comprar o filme, revelar. Definir o que valia a pena ser registrado, por essas razões, era privilégio dos adultos. O acesso a uma câmera digital alterou essa relação de poder, para mim. Então, ver valor na imagem digital foi algo natural desde o princípio. E, o que tem valor, a gente arquiva, a gente preserva, a gente guarda. E isso requer uma avaliação e curadoria também.
Pensando nessa história da primeira internet, lembrei do polêmico manifesto escrito pelo preservacionista Paolo Cherchi, que eu descobri há poucos anos, mas que foi publicado curiosamente no ano em que eu comecei a estudar cinema: “Preservar tudo é uma maldição para a posteridade. A posteridade não ficará grata por uma acumulação desmedida. A posteridade quer que façamos escolhas. Logo, é imoral preservar tudo; selecionar é uma virtude”. Que já é uma outra questão… Mas, para voltar para a sua pergunta: eu percebia o estranhamento alheio com a atribuição de valor a essas imagens e isso me incentivou ainda mais a olhar para elas e para o que vinha com elas.
Ultrasuperfície narra (visualmente e em texto) uma história acontecida no fotolog de uma menina conhecida como pompomzinha. Se as imagens dão um tom documental para a narrativa, o texto abre portas e janelas para uma ficção. O que te interessa nesse jogo entre documentário e ficção operado por imagens fotográficas digitais?
AD: Eu nunca soube muito bem o que responder quando me perguntam se a história é verdadeira ou não. Sabe porquê? Porque a história é verdadeira. Tudo aquilo aconteceu materialmente. Eu adoraria dizer que eu inventei, talvez fosse mais sedutor, mas não vou dizer isso. Ao mesmo tempo, não é verdadeira porque toda história é uma história, exige uma construção. E, também, porque ela não é crível. Parece um pouco impossível que tudo aquilo tenha acontecido daquela forma, e isso fala também do espetáculo e do drama como proteção. Aquilo aconteceu, e eu tenho fotos, e as fotos oferecem esse verniz de realidade, e eu tenho a narrativa… mas tudo isso junto constrói uma desconfiança. Eu gosto de pensar que a verdade muitas vezes está escondida à luz do dia. E com as imagens também é assim.
Uma história curiosa é que quando o trabalho estava sendo exposto dentro do aarea.co, havíamos desenhado o website para que cada publicação tivesse uma caixa de comentários única e anônima, como era no próprio Fotolog. Eu fiz o design do site e o primeiro rascunho da programação, depois o Gustavo Barros me ajudou a torná-lo funcional. E após o convite das curadoras do aarea.co, o Adriano Ferrari programou a versão final. Essa caixa de comentários anônimos foi nosso maior desafio de programação. Isso era comum na internet de 2003, mas hoje em dia é impensável. Bom, o que aconteceu? Uma pessoa que eu, como pompomzinha, conhecia naquela época, comentou: “esse tênis nessa foto é meu, esse é meu pé”. E, ao ler o comentário, apesar de ser anônimo, eu imediatamente soube quem era. Isso aconteceu outras vezes, de pessoas daquela época participarem do trabalho em sua versão web. Algumas pessoas eu sei quem são, outras não. Mas mesmo isso parece forjado. O real parece forjado e o forjado parece real.
Dizem que a imagem fotográfica teria essa condição do índice, da traçabilidade do real, a documentação de que “isso aconteceu”. Há controvérsias, como sabemos, mas para além disso acho que a internet colabora para dar uma retorcida nisso aí, mesmo antes da popularização dos filtros e da AI. O trabalho Ultrasuperfície em sua versão web art aconteceu antes do boom da AI, por exemplo. Eu fazia questão de colocar os metadados originais de cada objeto digital como título em cada publicação, para chamar atenção para essa materialidade. Mas, mesmo que uma imagem seja autêntica, não a vejo como índice. Eu a vejo mais como um véu, uma janela falsa, superficial como uma tela, e cheia de mentiras e verdades espalhadas na profundidade impossível dos seus pixels. Acho que isso serve para o cinema também, onde eu tenho operado nesse jogo do documentário ficção. Mas quando o jogo passa para os suportes de um trabalho participativo online ou um livro, as questões mudam.
Uma menina de 13 anos de idade publicar fotos (e depoimentos pessoais) diariamente em um fotolog. Hoje em dia isso é praticamente impensável. O que tornava isso possível (ou não) em 2003?
AD: Mesmo em 2003 não era exatamente o normal. O normal era ter um Fotolog, sim, se seus pais deixassem e se você tivesse acesso a alguma câmera. Mas não era normal compartilhar experiências pessoais sobre a linha do tempo dos seus namorinhos infantis, sobre os seus sentimentos e reflexões sobre o universo, criando uma espécie de reality show da sua própria vida. As pessoas que faziam isso eram maiores de idade: Marimoon e Lovefoxx são os exemplos mais óbvios.
As consequências disso foram várias. Muitas pessoas, inclusive adultos com idade para serem meus pais, desenvolveram o que se denomina hoje de “relacionamento parassocial” com a pompomzinha, que é essa ilusão de que você é íntimo de uma pessoa que você factualmente não conhece. Uma ilusão criada pelo consumo excessivo de imagens e narrativas daquela pessoa.
É interessante pensar que hoje a gente tem nome para tudo o que foi vivido ali em 2003: selfie, relacionamento parassocial, influencer, redes sociais. Naquela época, nenhuma dessas nomenclaturas existiam. Era realmente a sensação de estar descobrindo um novo território.
Acho que outras crianças e adolescentes com pais mais presentes não eram autorizadas a engajarem-se nesse nível de exposição. Por outro lado, a ignorância de muitos outros pais sobre como a internet funcionava os fazia não intervir. No caso da pompomzinha, o próprio pai era uma figura da internet, então não era o caso dela. Ele a ensinou que a internet era terra de ninguém. Isso supunha suas vantagens e também suas desvantagens.
Pensando nessa garota de 13 anos, é possível ver a pompomzinha como uma vítima ou como uma narcisista. Eu acho que não é bem nenhum dos dois. Ou talvez sejam as duas coisas criando uma terceira. O que eu acho interessante dessa história é a possibilidade de acompanhar a tentativa de aprendizagem cambaleante no lidar com a ideia de poder. Isso da perspectiva de uma jovem criança, ainda no início do longo processo de se tornar uma mulher. De brincar com essa coisa da futilidade, do supérfluo, do bonitinho. Tem muita inocência envolvida, mas também alguma estratégia. Ao tentar recuperar algum poder no mundo através de imagens, de narrativas, ela está também desafiando o mundo a responder a isso, e encarando as consequências.
Em 2008 foi quando eu notei que a internet estava se tornando menos terra de ninguém e mais uma terra corporativa de rastreio de dados. Ver o que aparecia no Google quando se buscava por “pompomzinha” ou termos relacionados me horrorizava. Eu ainda era adolescente, mas em breve me tornaria maior de idade, e decidi fazer um esforço consciente para apagar tudo. Entrei em contato com todos os sites e solicitei a exclusão do conteúdo. Até hoje evito rostos, detalhes pessoais, reconhecimento facial. Fui para detrás das câmeras, com o cinema. Mas talvez em 2025 eu esteja entrando numa nova fase.
Publicar na internet uma foto pessoal em 2004 e postar uma foto numa rede social em 2024. O que, na sua visão, mudou nesse intervalo de 20 anos?
AD: Eu não me sentia em risco quando publicava fotografias em 2003-2005. O fato de que eu era uma pessoa, e não um anônimo qualquer, poderia inclusive me garantir algum respeito básico nas dinâmicas sociais da época. Era muito mais difícil encontrar uma pessoa na vida real só com os seus dados disponíveis online. Não existia reconhecimento facial, não existia busca por imagens no Google, não existiam deep fakes. Por outro lado, a internet não era rentável como se tornou hoje. Nem era a intenção que fosse. Existia uma visão um pouco mais romântica e democrática sobre o que a internet viria a ser.
Por outro lado, pessoalmente, eu vivi uma experiência de proto-influencer antes da época. Dentro do computador, aos 13 anos eu possuía uma estrutura de pastas onde eu organizava quais frases seriam utilizadas, quais trechos de músicas, fotografias para cada humor, com a intenção de uso em publicações futuras. É praticamente um planejamento de conteúdo de social media. Então não era tão diferente assim do que é hoje, mas não era algo normatizado, não existiam cursos de curadoria de imagem pessoal…
Hoje, se você publica um autorretrato ou uma fotografia de uma paisagem da sua cidade, ela em breve poderá ser usada para treinar algum mecanismo de geração artificial de imagens. O nível de extração de dados a que estamos sujeitos é absurdamente maior. Desde governos de grandes nações, como a China ou o Canadá, utilizando dados biométricos como uma nova identidade digital, até escândalos privados como o Facebook – Cambridge Analytica no qual mais de 50 milhões de pessoas participaram sem saber de um laboratório experimental de perfilamento político. Como é que a gente vai falar de imagem, qualquer imagem, hoje, sem pensar nisso? Em 2018 eu fiz um filme que se chamava Tente não existir. A minha presença online se tornou quase nula hoje em dia, e tem a ver com esse incômodo existencial. Mas isso também tem um preço.
O seu projeto inicialmente foi um site publicado dentro da plataforma aarea.co, das artistas e curadoras Marcela Vieira e Lívia Benedetti, em 2021. Depois foi publicado como livro pela editora zero-Edições (2023). Como se deu esse trajeto?
AD: O projeto no aarea.co foi um trabalho de arte online que era participativo e possuía nuances de performance também. Durante os dois meses de duração do ultrasuperficie.net, a cada dia era publicada uma nova imagem, com seus respectivos metadados técnicos, em um website que desenhei a partir do primeiro layout do Fotolog e de outros sites da época, com uma caixa de comentários anônimos disponível para cada publicação. O mecanismo era: uma foto por dia, comentários livres, um botão “Compre” que redirecionava para a compra via NFT em duas criptomoedas: ethereum e tezos. Cada imagem era colocada à venda diariamente em um non-fungible token, e isso requeria todo um processo financeiro que acontecia o dia inteiro, por isso eu ressalto o aspecto da ação performática do trabalho para além do próprio site. A questão das criptomoedas e seus tokens não-fungíveis para mim era um statement um pouco cínico se a gente olha para a própria obra e o que ela fala sobre a transformação semiótica da venda da imagem de si mesmo na internet. Mas, como tudo nesse trabalho que é ambíguo e contraditório, de um jeito ou de outro eu estava lá: mintando as imagens [cunhar um NFT – em inglês to mint – significa criar um token único em uma blockchain], subindo uma fotografia por dia, ansiosa para ler os comentários anônimos que alguém pudesse deixar ou para saber se alguém compraria uma imagem.
A complexidade das interações que vieram com a efetivação desse trabalho fazem com que ele seja extremamente efêmero. Os sites onde se vendia o NFT já nem existem mais como existiam. Esses NFTs que foram comprados, onde estão? Para onde foram? O próprio ultrasuperficie.net foi retirado do ar após um ano, e apesar de estar sendo preservado pelo próprio aarea.co, não é possível acessar hoje para ver os comentários que foram feitos durante a sua duração. Só quem viveu sabe.
Eu gostava desse aspecto de “arquivo efêmero” do trabalho. Que tem a ver com a natureza da internet, também. Mas, alguns meses depois, tive vontade de fazer o outro caminho: de materializar esse acontecimento e projeto em um formato físico. Comecei a esboçar algo e chamei o Romeu Silveira para conversar, porque já acompanhava o trabalho dele com a zero-Edições e nos identificávamos nos nossos interesses por essas imagens consideradas “sem valor”. Ele se animou e juntos fomos preparando a maquete visual do que seria esse processo. Pensei muito numa lógica de montagem cinematográfica, de imagem-tempo – também por ser montadora de cinema –, e como os textos se relacionariam com as imagens escolhidas nessa lógica temporal, linear e espacial, da-esquerda-para-a-direita. Pensamos muito na experiência de visionamento e navegação do site em contraposição à experiência do livro. A questão do aspect ratio também era importante, eu queria que o livro tivesse as proporções de uma tela de computador de tubo e que as imagens coubessem nas páginas sem margem.
Eu gosto muito que o livro seja um objeto que funciona também como uma espécie de livro de registro, um pequeno arquivo físico, feito a partir de um arquivo efêmero, digital, participativo e online, que por sua vez foi feito de um arquivo caseiro guardado em um HD com materiais de 20 anos atrás. Uma boneca russa.
Que projetos te interessam hoje? Ainda teremos novidades saindo deste baú digital?
AD: A questão dos perigos e sedução da imagem, principalmente da perspectiva de garotas e mulheres diante das novas e antigas tecnologias de poder, continua sendo um foco para mim. Dentro do campo do cinema, tenho trabalhado a relação de arquivos de diferentes suportes, como no longa-metragem Vermelho bruto (2022) e no média-metragem Artificial porém muito sensível (2024). Nos últimos anos me dediquei bastante a uma arqueologia dos meios voltada para esses processos domésticos, amadores, de tudo que não é considerado importante. Esses projetos continuam em andamento e lidam com como se tem transformado a experiência de filmar e de fotografar nossas vidas pessoais.
E aí temos a questão dos rostos: o desejo de não ser percebido que a sensação de constante vigilância ocasiona. Atualmente, estou trabalhando num projeto de filme que lida com isso, chamado Tudo explodirá. Essa vertente do meu trabalho acaba envolvendo o baú digital, embora já não tanto no sentido de auto-ficção. Não é o meu baú.
Sobre a pompomzinha, que jaz em paz, talvez a sua intérprete supere o medo dos rostos, agora que todos nós estamos destinados a virar deep fakes de qualquer maneira, e volte a ser uma microcelebridade regional na sua nova skin de mulher adulta. Ou não. Vamos ver o que vem por aí. ///
Carlos Eduardo Franco é editor online da revista ZUM
Tags: fotografia, fotolivros, Fotolog