Território, processo e paisagem
Publicado em: 13 de setembro de 2024Quando entrei em contato com o trabalho do artista baiano Rafael Ramos (1996), estava percorrendo o perfil do programa de pesquisa Práticas Desobedientes, organização voltada para formação de jovens artistas com foco em aprendizagem coletiva e pedagogias libertárias, baseada no Recôncavo Baiano. Capturada por um vídeo, no qual Ramos narra brevemente sua pesquisa, o que me chamou a atenção no trabalho do artista foi o entrelaçamento nítido entre imagem e espaço público. Nascido em Salvador, no Bairro Cidade Nova, Ramos navega entre o audiovisual e a fotografia, articulando dinâmicas urbanas e familiares como disparadoras de linguagem. Suas paisagens cotidianas, capturadas entre esquinas e calçadas da Cidade Nova (origem do projeto New City) impulsionaram meu desejo de entender as operações que constituem sua produção.
Algumas semanas após este primeiro contato, a entrevista se deu. Tangenciando as fotografias das séries Menino homem, Pacto pele vida, Cidade Viva, Obrigações e o filme Amiúde (curta metragem lançando em 2023 pela produtora Seiva),a conversa com Rafael Ramos se estabeleceu e, a partir da chave território: identidade, buscou-se delinear as nuances do processo criativo de um jovem artista negro soteropolitano que aposta na fotografia analógica como dispositivo criativo.
Quero começar contextualizando sua origem. Olhando para o seu trabalho, o bairro que você cresceu é um ponto de contato importante. Pensando nisto, você pode contar como foram seus primeiros diálogos com a linguagem fotográfica?
Rafael Ramos: Minha vida foi muito marcada pelo hábito, diria até pela rotina. Meus pais vieram do interior da Bahia. Eles se conheceram na UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) e são os primeiros filhos da família que ingressaram na universidade. Quando nasci, tanto meu pai quanto minha mãe já eram funcionários públicos. Minha mãe era professora e meu pai concursado no TRT (Tribunal Regional do Trabalho). Tive uma vida muito estável, mesmo morando na Cidade Nova, bairro que fica meio à margem da cidade. A partir do momento que entrei na UNEB (Universidade do Estado da Bahia), comecei a ter outros tipos de hábitos. Meu cotidiano sempre foi pautado pela vida escolar, e consumia arte e cultura muito a partir da perspectiva dos meus pais. Eu era meio geek, meio autodidata e muito criado dentro de casa. Quando passei a sair para estudar rompi algumas barreiras, criadas pela ausência de contato da minha família com o nosso entorno, e passei a me conectar com espaço público.
Já na UNEB, no início do curso de design, fiz uma amizade importante com um grafiteiro. Ele foi um amigo que me apresentou o que era ter um vulgo e que existiam pessoas por detrás das tags. A UNEB é lá no Cabula, uns 20 minutos de ônibus da casa que morava com meus pais. Eu fazia esse trajeto sempre, e, com o tempo, comecei a circular mais pela cidade, buscando conhecer outros lugares. Foi muito importante andar sem motivo, principalmente quando eu grafitava. Andando na rua conheci as pessoas, de fato, e elas passaram a me conhecer por eu estar sempre fotografando. Foi uma tomada de consciência sobre o território que eu habitava. De alguma forma criei um pertencimento. Eu ia andar de skate, depois ia tomar um café na padaria. Nisso me conectei com o dono do bar e, assim, entendia que tipo de dinâmicas aconteciam no bairro. E tudo isso me faz perceber onde é que a Cidade Nova se encaixava dentro de Salvador. Descobri que ali tinha o Arquivo Público da Bahia (terceiro maior arquivo do Brasil), e um dos cemitérios mais antigos da cidade (o da Quinta dos Lázaros), que é onde o Marighela está enterrado. Mas, ao mesmo tempo, o bairro é, institucionalmente, completamente invisibilizado. A questão da infraestrutura urbana se tornou muito recorrente para mim, sabe? Que tipo de equipamentos públicos existem aqui na Cidade Nova? Foi me dando conta dessas coisas que percebi como tudo isso passou a estruturar minha maneira de ver esse território. Da mesma forma cresceu em mim um desejo de que as pessoas ao meu redor também tivessem essa visão. Foi esse conjunto de formas de me relacionar (com as pessoas, com meu trajeto pela Cidade Nova) que a câmera/fotografia me proporcionou.
Desde 2018 a Cidade Nova não é mais apenas o bairro que você cresceu, mas também é onde acontece o projeto New City. Você consegue dizer o ponto em que o registro do seu cotidiano virou trabalho, ou seja, o momento em que você entendeu que a Cidade Nova era seu objeto de pesquisa?
RR: Não consigo ver um momento exato de reconhecer minha prática enquanto um projeto fotográfico, sabe? Mas acho que tem uma divisão, um marco, que foi quando comecei a fotografar com filme. Ele articulou uma unidade, tanto no tratamento das fotos, quanto nas minhas escolhas. Porque com a câmera analógica existe uma limitação que me tornou mais atento. Eu via as ações se repetindo. Os pais levando as filhas para a escola, um trabalhador fazendo algum tipo de movimento específico, ou alguém que parava sempre na mesma esquina com o mesmo tipo de ação. Quando fiz essa escolha, fiquei mais sensível às recorrências cotidianas. E também mudou minha forma de interação com as pessoas. Com a câmera analógica eu não conseguia, por exemplo, mostrar na hora a foto. Então, acontecia muito de reencontrar essa mesma pessoa e só depois conseguia apresentar aquela foto. A partir deste tipo de encontro a fotografia começou a se revelar, de uma maneira muito explícita, como a captura da luz sobre um reagente, como um acontecimento químico. Foi assim que eu me dei conta do processo.
Antes, quando andava na rua pintando e fotografando, era tudo uma mistura muito grande de sensações. Eu passei a perceber minha presença nas imagens com o hábito, com a prática, notando que meu corpo me levava às cenas de uma forma muito intuitiva. Sempre precisava ver mais de uma vez algumas situação, ou até mesmo participar dela, antes de registrar. Eu precisava estar ali com aquelas pessoas de alguma forma… precisava construir uma relação. Só depois me sentia confortável para fazer uma captura disso.
Hoje o processo se transformou muito, porque não moro mais na Cidade Nova e a minha relação com o cotidiano dali começou a se calendarizar. Com isso, fotografar no bairro se tornou uma prática, de fato, mais formal. Como não participo mais de momentos tão rotineiros, busco escolher pra fotografar aqueles que ainda consiga estar de uma forma mais abrangente, sabe? As eleições, por exemplo, são um desses momentos. Num dia só consigo ver muita gente que já conheço e que fazem parte desse cotidiano. É uma data em que, obrigatoriamente, as pessoas do bairro estão na rua. As pessoas precisam estar ali. E, para além da temática da votação e dos significados políticos para o exercício democrático, esse é um dia em que as pessoas exploram o lazer de alguma forma. É um dia livre de trabalho e se costuma beber, colocar paredão de pagode e construir um espaço de produção de socialização, de saúde. Agora estou notando essas ocasiões como formas diferentes de rever a minha posição enquanto um retratista desse cotidiano, desse espaço, sabe?
Quando você fala do seu trabalho e traz o lugar que seu corpo ocupa nos encontros, fico pensando na trama muito própria que emerge das tuas fotografias. Então, olhando para seu processo hoje, quando você já se entende enquanto fotógrafo e artista, como anda sua relação com a fotografia analógica?
RR: Engraçado você falar isso, porque rapidamente me veio uma resposta. Eu continuo experimentando com a fotografia analógica. Ela ainda tem muitas coisas pra me mostrar, sabe? Esse lugar de encontrar uma textura, em termos de tom, de escolha de cor, sinto que ainda estou encontrando o caminho. Por exemplo, agora comecei a fotografar com médio formato. Isso tem uma mudança muito grande, porque numa película é quase que o triplo de elementos que você capta [em comparação com o filme de 35 mm]. Quando a gente fotografa com filme a sensação é de ver de uma forma muito vívida. A sensação que tenho no analógico é bem mais real quando comparado ao digital… como a luz incide, tanto numa paisagem, quanto nas pessoas. Eu sinto que a quantidade de informação é muito mais ampla. E há aquela interação com os fotografados, que mantenho até hoje, porque é uma outra relação em termos de tempo de construção da imagem, que duas pessoas (fotógrafo e retratado) criam juntas.
Existe um outro lugar da experimentação, também, que se apresentou quando comecei a aprender técnicas de laboratório. Foi um momento que tive mais contato com a revelação e isso criou um olhar mais próprio para o tratamento da imagem. Eu desejo muito voltar a ter essa proximidade com o exercício de revelar, de poder fazer experimentos de manipulação da película, sabe? Eu diria que ainda tenho vários anseios para impulsionar novas explorações da imagem. Acho que é por isso que eu sigo ainda escolhendo a fotografia analógica.
Agora que já conversamos sobre seu processo, gostaria muito de ouvir você falar sobre algum trabalho mais específico, alguma série que esteja te movimentando criativamente no momento.
RR: Eu acho que tem dois trabalhos mais fundamentais (que fazem parte da pesquisa New City). Ultimamente estou mais próximo de Obrigação, que é feito justamente nas eleições. Recentemente, revelei os filmes e tive essa oportunidade de ver as imagens depois de muito tempo que as fotografei. Nesse ponto da série, consegui localizar uma simetria política sobre as imagens. Pude ver como se dava, por exemplo, a relação da escola com meu bairro e como a obrigatoriedade se apresenta nesses contextos (estrutura da escola, eleição, etc.). Eu tenho um olhar um pouco naturalista. Vou estabelecendo vínculo entre as coisas. O nome da escola que voto, por exemplo, é Princesa Isabel. Quando se observa a escola, a percebemos como um espaço que se assemelha a um presídio. Ao mesmo tempo, durante a votação, as pessoas criam um ambiente de produção cívica que se contrapõe com uma certa desobediência, que é justamente ocupar as ruas com o consumo de bebida, com o paredão de pagode e tirando disso uma diversão. Essa contraposição de atividades é lida pela sociedade como ausência de produção política, né? Como se aquelas pessoas só pudessem exercer uma coisa ou outra. Então, a votação é um dia que a gente vê Salvador muito num lugar dicotômico, entre o sagrado e o profano, que emerge justamente desse contexto de exercer o livre-arbítrio. Também tenho tido encontros muito interessantes. Tem esse homem que está numa das fotos (Mano 10, da série Obrigação), numa moto, com uma máscara. Nos dois dias das eleições ele estava fazendo propaganda política. O que é muito interessante é que em um dia ele estava panfletando pra um partido e, no outro, estava panfletando pro partido rival. Consegui fazer um registro dele enquanto personagem, como uma figura do bairro que me instiga. Neste dia, capturei outras cenas, a partir do mesmo lugar dessa pessoa (do mano na moto) … dessa expressão natural, sabe?
Outra série, que também engloba New City é Cidade viva, que eu venho produzindo muito a partir da ideia de vida e morte,por conta da proximidade da Cidade Nova com o cemitério. Se você der um Google: Cidade Nova, Salvador, você vai ver notícias de confrontos de tráfico e questões que envolvem episódios de crimes e violência. Mas quando fotografo, enxergo o oposto. Eu vejo pessoas em movimento. Quando retrato as pessoas, penso no registro como uma criação de memória em vida. E tem esse aspecto consciente de criar imagens que não reincidam a violência. Entender esse cotidiano usufruindo do tempo que emerge do território é muito importante, sabe? Porque a Cidade Nova é um bairro em que as pessoas ainda se sentam na porta de casa e ficam ali. Isso é uma coisa que acho muito pouco valorizada. E, de alguma forma, é um hábito que vai se perdendo.
Já sobre o New City, como um todo, acabei sentindo a necessidade de subdividir o projeto como forma de entender a unidade da pesquisa em relação à unidade de composições de cada foto. Olhar pro trabalho, a partir das divisões que tenho feito, tem sido um exercício também para a produção de um fotolivro. Existe uma proposta de que a pesquisa pra New City, em algum momento, vire um livro. Seja a partir do projeto de mestrado, seja a partir de um exercício independente, contínuo, de ver essas imagens e trabalhá-las para que se transformem em material editorial. Nesse movimento de dar unidade a New City, são várias as ligações que têm se construído. São várias as escritas poéticas que eu tenho desenvolvido. Por exemplo, o nome da rua que nasci e sempre morei, e em que tenho muitas fotos, é Rua das Almas… Essas pequenas conexões revelam que o espaço que estou investigando acontece num limiar entre o visível (território do bairro em si) e o invisível (como eu percebo a Cidade Nova).
Para encerrar, gostaria de trazer um pouco sobre Amiúde, o curta que você lançou recentemente. Para além dos diálogos com o espaço urbano, existe uma camada de nexo que você estabelece com o território familiar, que é muito presente nas séries de New City, mas que em Amiúde grita. Pode contar como se deu o processo de produção do curta?
RR: Comecei o projeto fotografando no interior, na cidade de minha mãe. Falando um pouco mais sobre essa origem, minha mãe é de Tiquaruçu (distrito de Feira do Santana). É uma região rural que fica no início da Caatinga. Então é muito seco e muito ausente de infraestrutura pública. A família do meu pai é de Iaçu, ali no início da Chapada. Eu tenho a família de meu pai negra e a de minha mãe tá num lugar complexo, de uma dificuldade muito grande de se racializar. Tanto pelas influências brancas, quanto pelas indígenas e, também, pelas negras. Eu sempre tive mais proximidade com o lado materno. E, por ser mais próximo, sempre ia pra roça, né? Sempre foi um lugar afetivo muito forte, de criação de subsistência mesmo. É uma família muito grande, uma família matriarcal, marcada pela distinção entre o sertão e quem vai pra cidade.
Antes de Amiúde eu fotografava bastante, mas bastante mesmo. Tirava foto com o celular, apesar de não ter tanto o costume de registrar meus familiares, como memória, por uma falta de conexão nesse lugar racial. Quando passo a criar imagens lá, produzir se torna uma busca por me entender naquele espaço. Passo a entender como é relevante e como são bonitos esses meus enlaces familiares. Minha avó se chama Palmira, mas com o apelido de Miúda. Ela é uma pessoa marcada pelas histórias que ela conta. Uma matriarca que teve dez filhos, todos criados no mesmo teto. É uma casa muito antiga, sabe? A sensação afetiva sempre foi a de que tudo carregava muitas histórias. E o curta começou assim, comigo fotografando minha avó com mais intensidade, sentindo a necessidade de registrar, em memória, a vida dela. Logo no princípio da investigação com o filme analógico passei a fazer fotos da família, sempre em eventos e feriados. Poeticamente, foi fotografando os objetos da casa de minha avó que construí linguagem. Eram objetos antigos, como um pilão de farinha, ou a própria casa de farinha que existia lá. Enfim, foi captando esses artefatos que elaborei uma noção de imaginário. Na escrita poética eu dizia que era o imaginário afetivo de minha avó Miúda e de sua casa. Eu observava todas as formas de como ela produziu beleza numa casa com precariedade, naquele lugar árido, sabe? Desde a colcha de retalho até a delicadeza com que ela costura a própria roupa. Desse imaginário sempre pensei em fazer um filme.
Aí, na pandemia, a Seiva (produtora de São Paulo) me abordou com um projeto chamado Bruta, que era basicamente um Super-8 que passeava por quatro estados do Brasil, com quatro diretores diferentes. Cada um teve a liberdade para fazer um filme, com temas variados, mas que versasse sobre ancestralidade. A partir disso, decidi falar sobre minha avó, mas também sobre minha família nesse lugar ancestral.Amiúde é um filme, é um ensaio sobre o tempo de minha avó Miúda e sobre a forma dela de contar suas histórias. É sobre o tempo desse lugar, dessa casa, e sobre todo o imaginário que eu já produzia em still.
Tenho outras fotografias que são anteriores ao filme. E é engraçado porque minha avó fumava charuto, né? Fumava fumo de corda. Ela mesma plantava o tabaco, ela mesma triturava, fazia e fumava. E isso sempre foi um elemento da personalidade dela. Ela fumou até os 90 e pouquinhos, até antes d’eu gravar o filme. Então tenho fotos dela fumando. Aí, nesses ensaios, tanto no articulado pelo filme quanto nas fotos que o antecederam, eu registro o tabaco. Ela não consome mais, mas ele continua sendo plantado. Ela usa como pesticida. E, no processo de criação, me vejo capturando essas transformações naturais, tanto da minha vó enquanto pessoa quanto do espaço.
Antigamente, minha avó não era tão aberta a fotos. Ser capturada é uma coisa que tem uma profundidade. Foi um processo criar esse vínculo pela imagem, por isso que comecei pela voz. Eu colocava o gravador do lado e a gente ficava conversando por horas, sem muita pretensão. Depois desse momento maior de escuta foi que comecei a fotografar, esperando o tempo dela. Amiúde foi um filme muito interessante de fazer, porque fiz sozinho. Em tese, o que marca o cinema é fazer em coletivo, mas em Amiúde, como esse lugar de filme ensaio, consegui explorar, como diretor, muita interdisciplinaridade. Eu editei, fiz a captação de som e a trilha. Fiz um desenho de som enquanto produtor. Todo o som foi feito lá; toquei, gravei e produzi. Foi muito bom poder experimentar nesse sentido. ///
Rafael Ramos (1996, Salvador, Bahia) é fotógrafo, artista visual e diretor. É graduado em design pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Em 2024 integrou a mostra coletiva Raízes: Começo, meio e começo, exibida pelo Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira. Atualmente, como mestrando em Artes Visuais na UFBA, se dedica à continuidade das séries que englobam a pesquisa New City (2018-).
Luara Macari (1999, Ribeirão Preto, SP) é artista visual, escritora e curadora em formação, graduanda na PUC-SP. Em 2024, foi contemplada pelo Edital de Exposições Temporárias MAC USP 2024/2025 com o projeto de exposição individual Tudo que Nasce Vermelho. Entre 2022 e 2024, integrou, como estagiária, a equipe de curadoria da Fotografia Contemporânea do IMS.
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