Entrevistas

Remixar lugares

Marcus Deusdedit & Gabryella Roque Publicado em: 4 de setembro de 2025

minha irmã brincando com outras crianças, da série Territórios Artificiais, de Marcus Deusdedit, 2024. Fotografia analógica editada com IA.

O trabalho do artista mineiro Marcus Deusdedit acontece na interseção entre imagem, raça e espaço construído. Nascido na região metropolitana de Belo Horizonte, Deusdedit é formado em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG e atualmente é mestrando na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Sua trajetória acadêmica teve papel fundamental na construção de sua obra. A vivência de seu corpo racializado em ambientes universitários, a percepção das segregações físicas e subjetivas imbricadas na construção da arquitetura e da cidade, além do distanciamento sociocultural em relação aos objetos clássicos do design, foram decisivas para impulsionar suas experimentações com imagem.

Deusdedit foi artista residente na 8ª edição da Bolsa Pampulha e na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), além de ter sido premiado no 4º Prêmio Décio Noviello de Artes Visuais. Participou também de exposições de grande relevância, como o 38º Panorama das Artes Brasileiras e a 14ª Bienal do Mercosul.

A cada nova série, o artista explora diferentes suportes de representação, passando por instalação, fotografia, vídeo, colagem, inteligência artificial, entre outros, revelando principalmente a sua habilidade de enxergar a técnica como ferramenta de expressão.

Em conversa com Gabryella Roque, Marcus Deusdedit compartilha os processos internos e externos que atravessam sua criação.


Mole, Sérgio Rodrigues, da série Edição Limitada, de Marcus Deusdedit, 2022. Objeto multimídia. Foto: Mario Grisolli

Quais foram as suas primeiras experiências envolvendo produções audiovisuais  e fotografia?

Marcus Deusdedit: Minha primeira experiência com fotografia foi na faculdade, fotografando seminários, visitas de campo, levantamentos de casas. Usava essas ocasiões como oportunidades para pegar as câmeras digitais dos laboratórios da faculdade ou de amigos e aprender a usá-las. Mas antes mesmo de fotografar eu já editava imagens, acho que por isso sempre estou partindo do gesto de edição, seja de objetos, vídeos, sons ou espaços. No geral, o exercício de edição sempre me instigou mais do que o da captura.  Por volta dos 11, 12 anos, tinha uma espécie de brincadeira digital chamada virtual tuning que era basicamente pegar fotos de carros na internet, rebaixa-los, colocar neon, trocar as rodas, pinturas, aplicar adesivos. Enfim, tunar o carro a partir de uma imagem. Acho que desde então entendi, mesmo antes de elaborar, o potencial de fabulação que a edição tem. Hoje percebo o quanto essa experiência me formou, foi a partir daí que tive meu primeiro contato com softwares de edição. Nesta mesma época passava horas assistindo clipes na TV e no Youtube, baixando jogos e músicas via torrent, comprando DVDs e jogos piratas no camelô do bairro nos finais de semana. Todas essas experiências, de certa forma, serviram de introdução ao consumo e à produção audiovisual.


minha mãe com amigos em festa em casa, da série Territórios Artificiais, de Marcus Deusdedit, 2024. Fotografia analógica editada com IA.

De que forma a graduação na faculdade de arquitetura e urbanismo contribuiu para o desenvolvimento de sua obra?

MD: Meu trabalho é, antes de tudo, uma discussão sobre arquitetura e imagem. Ele existe por conta das fricções entre minhas subjetividades e minha formação como arquiteto. E, principalmente, por como essas fricções apontam tensionamentos estruturais ao campo quando atravessado por questões socioeconômicas e raciais. Ainda assim, o desenvolvimento dos meus trabalhos tem muito dos procedimentos que aprendi na prática como arquiteto projetista. Em resumo, posso dizer que a minha formação como arquiteto me deu um incômodo, mas também assunto e instrumental para projetar a partir dele.


minhas tias, minha mãe e minha avó em festa de família, da série Territórios Artificiais, de Marcus Deusdedit, 2024. Fotografia analógica editada com IA.

Na série Territórios Artificiais há um contraste entre as imagens geradas por inteligência artificial e as fotografias do seu acervo familiar. De que forma as memórias da sua infância em Contagem (MG) dialogam com a estética da arquitetura moderna?

MD: A formação de arquitetxs projetistas pelas escolas de arquitetura do Brasil é completamente ancorada nas experiências da arquitetura moderna. Que,no contexto brasileiro, são experiências de exceção. Isso quer dizer que, se você pertence a imensa parcela da população proveniente de famílias pobres ou de classe média baixa, é muito provável que o que aprenda a desenhar na escola de arquitetura esteja completamente distante da sua habitação familiar ou da sua vizinhança. Nesse sentido, as memórias pessoais do espaço habitado tornam-se quase um ruído, uma distorção frente a essa estética moderna cultuada pela minha formação como arquiteto.


Em Edição Limitada você aborda o afastamento de corpos racializados dos objetos de luxo, como cadeiras assinadas por renomados arquitetos e designers. Como se deu a concepção criativa e o processo de produção das imagens que compõem essa série?

MD: Quando concebi esse trabalho., era residente da 8º Bolsa Pampulha. E pensar obras para uma exposição em espaço físico era algo completamente novo para mim. Já havia decidido que como estratégia para lidar com a limitação de orçamento, iria reduzir a escala da discussão que me interessava na arquitetura ao design de mobiliário, entendendo que o consumo desses campos se espelha, de alguma forma, em contextos domésticos. Na época da residência, estava bastante interessado em discutir quão legítima é essa imagem que construímos a partir da ideia de arquitetura e design brasileiros, considerando que a maioria da população e dos corpos que a compõem simplesmente não acessam os produtos desses campos. Por outro lado, a apropriação e reelaboração de marcas gringas por sujeitos negros e periféricos é algo que encontramos em qualquer lugar do Brasil, nas ruas, ônibus, metrôs, nos shoppings populares, sendo esse um comportamento reproduzido por mim mesmo e por meus amigos. Desse conflito, surgiram duas séries:P.M.R. meets Nike e Edição Limitada. Ambas tiveram muito a ver com a mobilização de procedimentos da arquitetura. A dificuldade de Edição Limitada foi pensar o desenho de cada estrutura para posicionar as telas em relação a móveis que não estavam disponíveis para mim durante o processo de projeto. Depois, a questão era como captar as imagens que ficariam nessas telas, tendo somente a projeção de onde estariam no final. Fazer o projeto em 3D foi bem importante nesse caso, porque só consegui os móveis no dia anterior à gravação. Para as imagens, tive muita ajuda, assim como em todos meus trabalhos. Todos os corpos são de amigos que conheci na faculdade, as roupas e acessórios eram coisas que tínhamos, alguns itens emprestados, alguns garimpos de um amigo dono de brechó, o pessoal do Viaduto das Artes me ajudou a levar tudo de van para economizar o carreto, o dono do estúdio emprestou um corta vento da Oakley, enfim… muito corre de muita gente que botou fé no trabalho.


b41L3, de Marcus Deusdedit, 2023. Instalação multimídia. Foto: Arthur Souza

Na instalação b41L3 você “remixa” referências audiovisuais e musicais distintas. Como surgem para você essas possibilidades de cruzamentos de diferentes mídias e estéticas?  

MD: Quando estou no processo de composição de novos trabalhos, tendo a explorar muito a ideia de livre associação, o que torna natural essas aproximações de códigos inicialmente distantes, que passam a ser naturais. No caso de b41l3, me interessava justamente olhar para estéticas, sujeitos e corporeidades outras em relação às que estavam sugeridas no contexto da Casa do Baile – espaço historicamente ocupado por famílias da elite sudestina, e que receberia a exposição para a qual o trabalho foi comissionado. Para mim, é impossível a palavra “baile” não remeter a baile funk, e isso estalava toda vez que pensava no nome daquele lugar. A partir daí coube à instalação, assim como em outros trabalhos, compor com essas influências de lugares distintos e suas tensões.


Quais são as suas principais referências e inspirações visuais?

MD: Minhas referências vêm de lugares múltiplos, mas, muito do audiovisual e quase tudo que cabe dentro disto. Ultimamente, tenho olhado com muita atenção para produções que poderiam ser enquadradas no que chamam de afrossurrealimo. Mas sempre vi muitos filmes, animes, clipes e tive minha formação cultural vinculada ao movimento hip hop de modo geral. Esses dias fui ver um documentário sobre o Swamp Dogg numa mostra na cinemateca nacional e só então reparei que o título do meu último trabalho Ouvindo Muito Trap Enquanto Faço Interiores provavelmente vem do penúltimo álbum dele I Need A Job…So I Can Buy More Auto-Tune. Gosto muito da visualidade que ele constrói enquanto artista e lembro de ter adorado como esse título soava, acho que isso ficou na minha cabeça.


E quais projetos você está desenvolvendo no momento?

No momento estou desenvolvendo minha pesquisa de mestrado e interessado em estudar trabalhos instalativos de artistas negrxs. Paralelo a isso, estou tentando tirar da gaveta projetos de vídeos e instalações multimídias que desenvolvi nos últimos anos e que dependiam de um tempo de aprofundamento que não poderia dedicar enquanto trabalhava em outras produções. Acho que a 14ª Bienal do Mercosul amarrou uma fase da minha produção e que agora inicio outra. ///


Gabryella Roque (2001, São Paulo, SP) é designer, pesquisadora e graduanda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.  Em 2025 passou a integrar a equipe da Revista ZUM como estagiária.

Tags: , ,