Entrevistas

No cotidiano das quebradas

Allan Cunha & Lucas Veloso Publicado em: 22 de fevereiro de 2024

Foto da série Morada, de Allan Cunha.

Nascido e criado em São Miguel Paulista, bairro na zona leste da capital paulista, o olhar do fotógrafo Allan Cunha captura aqueles que habitam as margens da cidade, seja geograficamente ou devido à carência de acesso a direitos básicos, como saúde, educação, saneamento básico, lazer e cultura.

Historicamente, o bairro paulistano teve início com a Aldeia de Ururaí, constituída por indígenas guaianases. Além da presença indígena, a região, uma das mais populosas da cidade de São Paulo, também é caracterizada pela significativa quantidade de nordestinos que migraram de seus estados em busca de uma vida melhor na capital paulista.

São Miguel foi o pontapé para Allan enxergar e se interessar pelas múltiplas realidades da cidade. É nessa fusão de histórias, origens, cores e culturas presentes nas periferias que Allan se aprofunda, não para impor definições, mas para registrar as potencialidades dos territórios e dar visibilidade às imagens que a história não pode apagar.

Foto da série Trilhos, de Allan Cunha.

Como a fotografia chegou até você?

Allan Cunha: Meu primeiro contato com a fotografia foi no início da adolescência. Fiz um “bico” de office boy numa loja que revelava filmes fotográficos no centro de São Miguel Paulista, onde minha mãe trabalhava como atendente. Talvez, de alguma forma, aquilo tenha ficado no meu inconsciente. No entanto, meu real interesse surgiu aos 17 anos, quando trabalhava numa loja de instrumentos musicais no mesmo bairro. Alice, responsável pelo espaço e apaixonada por fotografar e viajar, havia me mostrado sua câmera. Jovem em busca do que fazer da vida, a fotografia me conquistou. O ano era 2010. Trabalhando no comércio, comprei minha primeira câmera, bancando meu primeiro curso, seguido pela graduação. Larguei o trabalho formal, iniciei o trabalho em ONGs e fui chamado por pessoas e instituições para dar oficinas para jovens na periferia. Paralelamente, desenvolvi meus trabalhos autorais. Aqui estou, há mais de 10 anos, atuando e pensando diariamente na fotografia.

Foto da série Morada, de Allan Cunha.

Sua fotografia retrata, com frequência, pessoas e territórios marginalizados, social e geograficamente periféricos. Qual é o seu interesse nestes espaços, com essas pessoas?

AC: Minha família é uma das que, nos anos 1990, vieram do interior da Bahia para tentar a vida em São Paulo. Se instalaram no bairro de São Miguel Paulista, lugar onde cresci e morei até os meus 25 anos de idade, quando me tornei pai. Fotografar a periferia é também fotografar a minha história, a história dos meus amigos, seus familiares, dos camaradas das ruas, das pessoas com quem me relacionei ao longo da vida. São espaços comuns para mim. Na convivência com as coletividades locais e entendendo a potência desses territórios, meu interesse se encontra no afeto e na valorização destes, seja sob um olhar poético ou documental, mas também no registro a partir da revolta diante das ausências do Estado.

Na série Trilhos, temos imagens de pessoas nos trens da CPTM, em São Paulo. O que motivou a realização dessa série?

AC: Iniciei este projeto no final de 2011 e fotografei até meados de 2017. Sendo mais um dos usuários do transporte público ferroviário, fazendo uso principalmente da linha 12 Safira da CPTM, passava bastante tempo no trem para chegar aos meus destinos. Por conta disso, tinha tempo suficiente para olhar para as pessoas ao meu redor e fazer questionamentos sobre a condição desigual que enfrentávamos coletivamente.

Pessoas que moram na periferia enfrentam maior dificuldade para acessar os espaços centrais, onde na grande maioria das vezes se deslocam para trabalhar e estudar. O tempo levado e a superlotação em horários de pico afetam diretamente a qualidade de vida dos usuários.

Iniciei fotografando na estação Brás às 18h da tarde, mas ao longo do tempo fui fotografando nas outras linhas, como a do metrô. O cansaço das pessoas diante deste sistema ao qual vivemos deixa marcas expressivas em seus rostos. A série é um documento que visa contribuir para as discussões sobre a cidade, mobilidade urbana e desigualdades. Meu grande objetivo é torná-la um fotolivro.

Foto da série Morada, de Allan Cunha.

Já em Morada, seu foco voltou-se para lares na periferia da cidade. Acredita que as periferias possuem uma identidade visual e afetiva?

AC: A paisagem periférica não se confunde. A autoconstrução [das casas], os puxadinhos, os improvisos, refletem a vida do povo brasileiro que vive nas periferias de todo o Brasil. Neste caso, foquei na periferia da zona leste de São Paulo. As pessoas constroem suas casas no tempo em que podem, como podem, e às vezes leva-se uma vida inteira para finalizar. A periferia é um território com diferentes características dentro de si. Há casas espaçosas com grandes quintais, e na mesma rua pode haver outras pequenas ou até barracos. Há também favelas dentro de periferias; são muitas as diferenças. Há desigualdades dentro do território periférico.

Neste projeto, miro em cores, na força, na esperança, no afeto, que é a minha relação de amor e admiração com o território, mirando na casa que é o maior bem para a classe trabalhadora. Além dos problemas cotidianos enfrentados pelas pessoas que vivem nestes lugares, sabemos bem de onde partem a maior parte das trabalhadoras e trabalhadores dessa cidade e de toda a força cultural que existe, como também da sua grande produção de conhecimento.

A periferia é lugar de troca. É comum ver as ruas cheias de gente conversando nas calçadas. Na rua da minha mãe, no domingo, os vizinhos se encontram, tomam cerveja, ouvem música; há relações de convivência e troca muito diferentes das que vi em territórios de classe média. Periferia também é troca, afeto e fortalecimento, e a série Morada faz parte disso.

Você já teve suas imagens expostas em trabalhos no Brasil e no exterior. De maneira geral, como se dá a recepção ao seu trabalho? O que as pessoas retornam?

AC: O objetivo do meu trabalho é falar sobre o Brasil em que vivo em São Paulo, e é assim que sou reconhecido. Sobre a recepção, depende de cada território. Em 2021, fui convidado pela Okupação Cultural Coragem para expor a série Trilhos em Itaquera. A relação das pessoas com o trem é grande, e foi muito interessante perceber o quanto as pessoas se identificavam com as figuras vistas nas fotografias. Sentiam-se à vontade para compartilhar suas histórias no transporte. Foi importante notar a identificação das pessoas que se viam representadas na exposição.

Ao mesmo tempo, muito me agrada levar meus trabalhos para lugares distantes e possibilitar que outras pessoas conheçam diferentes narrativas de outros lugares. Este ano, a curadora e pesquisadora Marly Porto levou para o México numa coletiva com outros fotógrafos brasileiros. Fico curioso para saber o que pensam nossos irmãos mexicanos, assim como os franceses, ao acessar meu livro na Biblioteca Nacional de Paris.

Foto da série Morada, de Allan Cunha.

Você também é integrante do coletivo de pesquisadores periféricos do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Guaianás (CPDOC Guaianás). Como você vê a fotografia colaborando com a memória coletiva, sobretudo de territórios com poucos registros históricos?

AC: O CPDOC Guaianás é de grande importância na minha trajetória como fotógrafo, e muito do meu trabalho deriva das ações desse coletivo. Em 2024, o CPDOC Guaianás completa 10 anos, e atuo como fotógrafo, curador e diretor audiovisual desde 2016. O coletivo surgiu com o objetivo de registrar, preservar e divulgar as histórias e memórias dos trabalhadores e trabalhadoras do extremo leste de São Paulo, sendo um espaço de referência na museologia social, contrapondo e questionando as narrativas contadas pelas classes dominantes, como ainda é comum. O coletivo é formado por pesquisadores acadêmicos, professores e artistas que cresceram no território de atuação, reforçando a importância de contar a história a partir da memória dos que vivem no local. A fotografia anda lado a lado com as pesquisas dos meus colegas, e meu papel é produzir imagens documentais sobre pessoas e lugares, levantando materiais e contribuindo nos processos históricos. ///


Lucas Veloso é jornalista audiovisual e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias, onde também colaborou com reportagens, além de outros portais, como Alma Preta e Rio On Watch. Atualmente, edita conteúdos no Expresso na Perifa, suplemento hospedado no Estadão, além de colaborações no UOL e matérias audiovisuais na TV Cultura.

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