Colunistas

O cotidiano épico de Zoe Strauss

Geoff Dyer Publicado em: 14 de novembro de 2013

 

Topei com a obra de Zoe Strauss por puro acidente. Fui ao International Center of  Photography, em Nova York, para ver duas exposições: um levantamento de toda a carreira de Lewis Hine e imagens do assassinato de John F. Kennedy, feitas por pessoas que assistiam à carreata. As duas mostras eram sensacionais, como era de esperar. O que eu não sabia era que havia no ICP uma terceira exposição, retrospectiva do trabalho de uma fotógrafa de quem eu nunca ouvira falar, Zoe Strauss. E de repente me vi cercado por fotos que, vigorosas quando isoladas, também apontavam para um conjunto de obra importante e coerente.

O tumulto das primeiras impressões poderia ser descrito mais ou menos assim: Fotografias de rua. Cores vibrantes. Imagens não muito grandes. Retratos de uma objetividade agressiva – rostos gastos como tapetes surrados, outros  cheios de confiança e de uma beleza intensificada por aquilo em que confiavam: que a beleza não duraria, de modo que a confiança era também matizada por resignação. (Uma versão em close-up dessa emoção era um umbigo tão inflamado por causa de um piercing que parecia prestes a se transformar numa infecção.) Letreiros e grafites, o diálogo interminável entre as promessas múltiplas de dinheiro – “CASSINO” – e de redenção – “SALVE” – e a certeza de que serão quebradas. Um letreiro que oferece “EVERYTHING” [TUDO] acaba reduzido a “- – ER – TH – – G”. Melhor que nada? Talvez, mas esse letreiro é menos enfático que a mensagem pichada numa parede: “IF YOU READING THIS FUCK YOU” [SE VOCÊ LER ISTO, FODA-SE]. Espalhados por essa paisagem social bastante povoada e muitíssimo rabiscada, surgem oásis de ângulos e linhas puras: simetrias impecáveis de paredes de concreto e de janelas. Quase sempre elas contêm algum detalhe – uma fenda no concreto, uma janela fechada com tábuas – que refutam as alegações utópicas de abstração. No entanto, nem sempre sempre: cobrindo os degraus de uma escada em Las Vegas, um tapete forma faixas horizontais de cor, de tamanha exuberância e textura que parecem cercas vivas rubras e muito bem cuidadas.

Essa imagem, verifiquei depois, foi usada na capa do primeiro livro de Zoe Strauss, América. Entretanto, ao dar com ela por acidente, eu estava travando contato com a obra de Strauss de uma forma que era, ao mesmo tempo, igual e diferente da maneira como ela foi apresentada ao público pela primeira vez. Strauss só começou a fotografar seriamente aos trinta anos, em 2000. No ano seguinte, afixou algumas fotos suas sob viadutos da rodovia interestadual 95, em Filadélfia, sua cidade natal. Quase ninguém tinha ouvido falar de Zoe Strauss – nessa época ela não era Zoe Strauss, a fotógrafa da Magnum. Ou seja, nesse sentido minha experiência assemelhou-se à dos primeiros visitantes daquelas exposições sob a I-95, que com o tempo se tornaram periódicas. Contudo, minha experiência foi diferente da experiência das pessoas do bairro que a conheciam, que iam ver as exposições porque elas ou amigos estavam entre aqueles cujas fotos eram mostradas, por pouco tempo, como cartazes de procura-se, nas gigantescas pilastras de sustentação da I-95. Essas exposições – não propriamente clandestinas, mas com certeza meio escondidas – acabaram chamando a atenção. Por fim, levaram a uma retrospectiva no Museu de Arte de Filadélfia, agora apresentada no ICP, precedida por uma campanha de divulgação pela imprensa da qual, por uma razão ou outra, não tomei conhecimento.

Fica óbvio para qualquer pessoa que visite essa exposição que Zoe Strauss é uma artista com um estilo visual todo seu. Fica igualmente óbvio que é impossível separar essa singularidade da maneira como tantos fios da história da fotografia americana parecem ter vindo dar nas formas tensas de suas imagens. A moça tatuada, com o rosto esmurrado e um olho roxo – Monique – lembra um autorretrato que Nan Goldin fez depois de ser espancada. Há nas fotos de Strauss muito de Eggleston – sobretudo uma versão em verde do famoso teto vermelho dele – e também muita coisa de Stephen Shore. E há sinais de Walker Evans – como não haveria? – por toda parte. No entanto, assim que percebe essas influências – ou presenças –, o observador se dá conta de como a relação de Strauss com a fotografia e com o mundo as amplia ou as altera. Ela nunca simplesmente “cita” Evans ou Eggleston. Pensemos em Goldin, por exemplo. As fotografias da Balada da dependência sexual são francas, íntimas, belas e profundamente narcisistas. São anúncios de um estilo de vida: uma boêmia que ansiava por ser reconhecida, um bando de gente cuja pobreza era uma forma de entrega total ao prazer, pessoas que se acreditavam artistas – mesmo se não houvesse possibilidade alguma de um dia criarem obras de arte. Só que, no final das contas, as convicções daquelas pessoas se justificavam, pois elas acabaram em obras de arte, nas fotografias de Nan Goldin. Aqui, na Filadélfia de Strauss, temos um mundo muito diferente, um mundo em que a pobreza é tão trivial quanto numa foto feita por Evans em áreas rurais do Alabama, durante a Grande Depressão. A diferença – em relação a Evans – é que Strauss não é uma estranha no ninho, conhece aquela realidade tanto quanto Nan conhecia suas ficções. E Strauss não tinha de ganhar a confiança das pessoas que fotografava, como fazia Diane Arbus; já estava inserida em seu ambiente, nas vidas que mostrava. Quando ela começou a atuar em locais mais distantes – em Las Vegas, digamos – pôde levar consigo essa familiaridade e essa confiança caseiras. E como ela diz, expressivamente, em comentários com uma amiga no Facebook (transcritos no catálogo da exposição de Filadélfia e do ICP), “Eu simplesmente sempre deixo tudo entrar e mantenho todo mundo que foi importante para mim como uma parte de mim mesma.” Ao que a amiga responde, com toda razão: “Uau!… Isso é um jeito incrível de levar a vida.”

As marcas e os precedentes encontrados na visão fotográfica de Strauss são basicamente, mas não exclusivamente, americanos. Se algumas imagens – como “Prédio azul com grama”, perto de Limerick, na Pensilvânia, ou a de uma cidade à noite – fossem maiores, poderiam ser confundidas com fotos de Gursky. Há em algumas delas até mesmo ecos de Luigi Ghirri. No entanto, digo isso com certa hesitação, consciente de que talvez só faça essa associação porque tenho pensado bastante nele. Refiro-me a certas cenas de Strauss vazias e serenas, muitas vezes com reflexos em poças d’água, nas quais o mundo se mostra como que imobilizado numa mediocridade em que tudo – o “tudo” que ela deixa entrar – é, ao mesmo tempo, reconhecido instantaneamente e quase incompreensível. É como se alguém houvesse premido não só o obturador da câmera como também o botão “mudo” de um controle remoto visual.///

Tradução de Donaldson M. Garschagen

 

A exposição “Zoe Strauss: 10 anos” fica no ICP até 19 de janeiro de 2014

 

Geoff Dyer é escritor e colunista do jornal The New York Times. Autor de O Instante contínuo (2008), além de inúmeros outros textos sobre fotografia.