Memória e resistência nas imagens de Ingrid Barros
Publicado em: 3 de outubro de 2024No dia 29 de março de 2021, a capa do Washington Post, um dos principais jornais norte-americanos, estampou uma foto da maranhense Ingrid Barros. A reportagem em destaque, com outras imagens, tratava da ameaça que as comunidades quilombolas em Alcântara (MA) enfrentam devido à expansão do Centro de Lançamento de Alcântara – CLA, espaçoporto administrado pela Agência Espacial Brasileira.
Em outro projeto, Ingrid registrou o ritual Bilibeu, celebração ancestral com elementos religiosos, culturais e políticos da comunidade indígena Akroá Gamella, também do Maranhão.
Isso revela os rastros da fotografia de Ingrid: as comunidades tradicionais maranhenses onde estão as pessoas que a inspiram na luta pelos direitos humanos, seja na defesa dos territórios em que vivem ou nas festas populares que celebram a sua cultura.
Advogada de formação, a fotógrafa entendeu na prática a usurpação de direitos das populações pobres na luta contra empresas gigantes. Nascida em Pinheiros (MA), município com história marcada pela colonização portuguesa e o estabelecimento de fazendas por capitanias, Ingrid utiliza suas lentes para mostrar que os leões também podem contar suas histórias, não somente os caçadores.
Qual a lembrança mais antiga de uma fotografia? Lembra da sua primeira foto que fez? O primeiro contato com uma máquina fotográfica?
Ingrid Barros: Minha primeira lembrança de fotografia é da infância, quando ficava horas mexendo em filmes revelados em casa, olhando para eles no sol. Na escola, ganhei minha primeira câmera digital, uma compacta branca, e comecei a tirar fotos de paisagens e fazer retratos. A partir daí, fui me apaixonando cada vez mais por fotografia e as pessoas já começavam a elogiar minhas fotos. Esse contato inicial me fez perceber que a fotografia era uma forma de me expressar.
A sua temática fotográfica está ligada a direitos humanos e comunidades tradicionais. Como essas questões influenciam a forma como você compõe suas imagens?
IB: Guiado pelo compromisso com os direitos humanos e as comunidades tradicionais, meu trabalho busca representar essas pessoas com dignidade e respeito. Evito qualquer estereótipo ou desumanização, valorizando a luta e as potencialidades dessas comunidades.
Minhas fotografias visam contar histórias que fortaleçam a autoestima e a dignidade dos retratados, adotando uma abordagem humanista e sensível às subjetividades dessas populações. Busco, sempre, promover um olhar de resistência e afeto.
Um dos maiores desafios é romper com o olhar colonizador e estereotipado, especialmente ao trabalhar com comunidades marginalizadas. As imagens devem respeitar a subjetividade e a complexidade dos retratados, sem reduzi-las à vulnerabilidade. Além disso, é fundamental garantir que essas narrativas visuais alcancem um público amplo, buscando espaços de exibição para ampliar o debate e valorizar a cultura e a resistência dessas comunidades.
Sua fotografia busca valorizar memórias de infância e referências territoriais. De que forma você enxerga isso se manifestando no seu trabalho?
IB: As memórias da infância e as referências territoriais permeiam todo o meu trabalho. Ao fotografar, busco resgatar as lembranças de vivências infantis, como as histórias e lendas ouvidas dos mais velhos, as cores da paisagem e os laços com a terra. Essas memórias pessoais, entrelaçadas com as histórias dos territórios que documento, criam uma narrativa visual rica e afetiva.
Quando fotografo territórios em disputa, minha lente busca revelar a relação íntima entre as pessoas e a terra. Para muitas comunidades, o território transcende uma questão geográfica. Ele carrega a história, a cultura e a sobrevivência dessas pessoas.
Meu objetivo é registrar essa conexão profunda e, ao mesmo tempo, evidenciar as pressões externas, como o agronegócio e os grandes empreendimentos que ameaçam essa relação. Busco mostrar a força da resistência dessas comunidades na preservação de seus espaços e tradições.
A série Bilibeu mostra a celebração e resistência da cultura indígena Akroa Gamella. Pode nos contar mais detalhes sobre a realização dessas imagens?
IB: Documentar a série Bilibeu foi um processo desafiador, principalmente por evitar olhares exotizados ou estereotipados sobre a cultura indígena. Ao mesmo tempo, foi uma experiência extremamente gratificante, pois pude testemunhar a resistência e o fortalecimento da identidade dos Akroa Gamella por meio de seus rituais.
A maior recompensa foi sentir que as imagens foram bem recebidas pela comunidade, sendo percebidas como parte do processo de resistência cultural e política, além de uma celebração de sua história.
No seu trabalho de criação e direção audiovisual, você integra as referências culturais e musicais do Maranhão na construção estética de seus projetos. Foi assim que surgiu a série Agarradinho?
IB: A dança e a música são a alma das minhas imagens. Tentei capturar a intimidade dos corpos, o movimento fluido da dança a dois e a profunda conexão com o ritmo do reggae, que transcende a simples coreografia. A essência reside na expressão de afeto e pertencimento, na forma como o som das radiolas e o calor da dança criam uma atmosfera de resistência e valorização da cultura negra maranhense. Cada foto busca refletir essa energia vital e o legado cultural do reggae no estado.
As referências culturais e musicais do Maranhão estão profundamente enraizadas no meu trabalho audiovisual. O som das radiolas, do tambor de crioula e do bumba meu boi, assim como as cores vibrantes das festas populares, são elementos que utilizo para construir uma atmosfera única.
Cada projeto é uma tentativa de retratar a riqueza cultural do estado, fundindo a musicalidade e as tradições com uma estética visual que reflete a força e a beleza dessas manifestações culturais.
Quais são suas principais referências, seja na fotografia ou no audiovisual?
IB: São pessoas como Ana Mendes, que com um olhar humanista me inspirou a trilhar esse caminho. João Ripper também é uma grande inspiração, com sua fotografia sensível e focada em retratar a dignidade e a luta das pessoas.
No audiovisual, inspiro-me muito em referências culturais do Maranhão e nas narrativas ligadas aos direitos humanos, querendo sempre contar histórias que fujam do olhar estereotipado e colonizador. Pablo Monteiro, Helen Salomão, Juh Almeida e Lucas Cordeiro são outros nomes que me influenciam, cada qual com uma abordagem única no registro de comunidades e questões sociais.
E quais projetos você está desenvolvendo no momento?
IB: Atualmente estou focada em organizar e difundir meu extenso acervo fotográfico que retrata comunidades tradicionais e questões de direitos humanos. Meu objetivo é materializar essas imagens, tirando-as do âmbito digital e levando-as para espaços públicos, como exposições e mostras.
Quero um trabalho com um impacto educativo, que contribua para a construção de novas narrativas visuais e descolonize o olhar sobre as comunidades retratadas. Estou empenhada em fazer com que essas histórias e memórias alcançarem um público cada vez mais amplo. Além disso, tenho interesse em desenvolver projetos que explorem a relação entre memória e território, além de continuar documentando o cotidiano e as práticas culturais de comunidades marginalizadas no Maranhão. ///
Lucas Veloso é jornalista audiovisual e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias. Colabora com portais da mídia brasileira, como Folha de S.Paulo, Estadão, TV Cultura, UOL e Alma Preta. Em 2023 e 2024, venceu o prêmio + Admirados jornalistas negros e negras da imprensa brasileira.