Extradisciplinar: fotografia e vídeo na 35ª Bienal de SP
Publicado em: 6 de setembro de 2023“Na lista de participantes selecionados para essa bienal, vi que boa parte vem de grupos historicamente oprimidos e trabalha com abstração ou com o próprio corpo. Como vocês pensam a fotografia e o vídeo em relação a isso?”, foi minha primeira pergunta para Grada Kilomba e Manuel Borja-Villel, que junto a Diane Lima e Hélio Menezes compartilham a curadoria da 35ª Bienal de São Paulo, sob o título Coreografias do impossível. As primeiras respostas já continham o cerne de tudo que se desenvolveu ao longo da entrevista: a proposta expográfica; as mudanças epistemológicas que comunidades subalternizadas podem promover; alternativas críticas contra as fragmentações, categorizações e violências do pensamento moderno ocidental; e, em especial, a história e as possibilidades de meios como a fotografia e o vídeo no contexto da mostra.
A entrevista foi feita online, eles na Europa, eu no Brasil, ele falando em castelhano, ela em português de Portugal. Para a transcrição da conversa decidi adaptar para o nosso contexto, facilitando a leitura do público brasileiro. Da mistura de sotaques e de vozes, surgiu uma compreensão mútua sobre extrapolar os limites das disciplinas do conhecimento como modo de operar central da mostra, alternando movimentos no espaço e no tempo em uma coreografia tão íntima quanto coletiva.
Na lista de 121 participantes selecionados, me chamou a atenção que boa parte, sejam históricos ou em atividade, vem de grupos sociais historicamente oprimidos e trabalha com pinturas, desenhos ou instalações com uma grande tônica na abstração. Também há muitos que trabalham com o próprio corpo, confrontando os códigos sociais que carregam com performances e ações nos espaços em que se apresentam. Como vocês pensam a relação entre a fotografia e o vídeo e essas questões da abstração e do corpo?
Manuel Borja-Villel: Por um lado, sabemos que há uma relação direta entre colonialismo, violência e modernidade que está associada a um tipo de abstração supostamente universal. Outro ponto é que o sistema da arte absorve toda crítica e tem mais facilidade de classificar um tipo de arte, digamos, figurativa. Considerando que há uma relação entre a arte de mercado e uma figuração afrodescendente, e que a abstração estaria ligada a uma certa modernidade, buscamos dar ênfase a alguns pontos (e há muitos pontos nessa exposição) de outras formas de entender a abstração.
Somos um grupo heterogêneo, com quatro pessoas com backgrounds muito distintos e que não são um coletivo no sentido romântico da palavra. Nunca trabalhamos juntos no passado e não necessariamente iremos trabalhar no futuro, mas trabalhamos conjuntamente como forma de aprender com os demais e cada um de nós — Grada é artista, eu sempre trabalhei em museus, Hélio e Diane são curadores independentes; nós viemos da Europa, eles são aqui do Brasil — tem questionado seus próprios dispositivos.
Nesse sentido, na exposição há fotografia, abstração, pintura, dança, mas, sobretudo, uma coreografia no sentido literal da palavra, como inscrição do corpo no espaço. Um espaço que não vem delimitado por uma regra, mas que vai gerando suas próprias relações. Dos artistas que usam a fotografia como operação, temos práticas muito distintas, desde Zumví Arquivo Afro Fotográfico até Maya Deren, para quem a câmera é uma forma de dançar. O mais importante é que há saltos de escalas, pois obras pequenas estarão junto a outras muito grandes; há saltos no espaço, pois em outras bienais a parte histórica sempre estava ao final do prédio, como uma espécie de gueto, e neste caso vai estar no centro; elementos documentais estarão junto com abstração, e o importante são essas relações e rupturas que produzem saberes insubmissos, que questionam aquele dominante.
Poderiam comentar também sobre o título dessa bienal — Coreografias do impossível —, que evoca a dança, em relação à fotografia e ao vídeo?
Grada Kilomba: O título aparece de forma quase abstrata. Falamos em coreografias, mas não é uma bienal sobre dança, no sentido literal. Usamos a ideia de coreografia para expressar vários movimentos: do corpo, políticos, narrativos e de discursos que são utilizados para nos movermos dentro da impossibilidade, que é o cenário em que estamos e que as artistas selecionadas confrontam. Quase poeticamente apareceu o termo “coreografia” dando expressão a esse movimento que é múltiplo: pode ser sutil, brusco, lento, rápido, parado, diagonal, horizontal, vertical, possibilitando dançar e atravessar o tempo e o espaço de diferentes formas para lidar com essas impossibilidades.
Nessa Bienal, nos interessa explorar a multiplicidade e a interseccionalidade e essa grande variação vai desde a fotografia, ao vídeo, à pintura, à instalação, à performance, à poesia, atravessando várias disciplinas. Ao longo do processo, Manuel usou um termo que acho muito lindo que é “extradisciplinaridade”, que é ir para além das disciplinas que conhecemos, o que acho um exercício decolonial, pois é trabalhar de uma forma interseccional, ou seja, em que tudo é importante e que o trabalho pode estar ancorado em diferentes disciplinas e pode se apresentar e se expandir para além do que compreendemos sobre o que é arte. Para nós, o mais urgente é olhar para práticas artísticas que vão além das definições e terminologias coloniais que nos foram dadas.
MBV: Tenho três exemplos que demonstram o que Grada disse. A fotografia como uma forma de mediar uma relação com algo ou alguém que não se pode representar, porque o ato de fotografar é um trabalho com o outro, e isso é o que faz Dayanita Singh quando acompanha uma pessoa trans com todos os seus processos de vida. A fotografia nesse caso é um elemento de afeto. Temos Ahlam Shibli, que segue em paralelo às ideias de Saidiya Hartman, quando faz fotografias de mártires ou terroristas e questiona como representar alguém que foi assassinado, ou suicidado, sem condená-lo eternamente a essa condição. Esse é um exercício da fotografia que vai além do documento e que gera uma tensão entre o que é o testemunho e a impossibilidade de representação. No vídeo de Maya Deren, ela se dá conta de que não podia refletir a cultura do Haiti e faz uma dança em que o único movimento que faz com a câmera é dançar com a outra pessoa, em uma relação de afeto entre a câmera, a cineasta e o bailarino. Todos esses elementos vão além da ideia modernista, muito norte-americana, greenberguiana, da técnica como um elemento fechado.
Olhar para grupos historicamente oprimidos (econômica, geográfica, racial e sexualmente) parece uma tônica na seleção dos artistas escolhidos, no entanto, há um forte deslocamento dos olhares antropológicos para uma política de autorrepresentação. Nesse sentido, há uma crítica ao viés etnográfico que dominou boa parte da história da arte. Que mudanças vocês percebem nesse deslocamento, considerando o pensamento “extradisciplinar” que comentaram?
GK: Temos que olhar para as disciplinas, seja qual for, e compreender que ciências foram criadas para objetificar e hierarquizar a humanidade e, portanto, não são neutras, mas critérios de saber que estão sempre associados à violência, ao poder e à hierarquização de quem é humano e de quem não é, de diferenciar o humano da natureza, separando a cabeça do corpo e os humanos dos menos humanos. Tanto a fotografia, que suportou todo um projeto colonial durante vários séculos, quanto o cinema, a pintura e todas as disciplinas e meios que falamos e com os quais trabalhamos têm uma história colonial, de violência e desumanização na qual está sempre em jogo quem pode representar a condição humana. Assim se definem corpos, identidades, gêneros, binaridades, raças, sexualidades, etc.
Uma das grandes contribuições de todas as artistas que estão aqui nessa lista (e muitas outras que não estão e que poderiam estar) é que há uma desobediência a essa disciplina, há um trabalho de laboratório, experimental. Como vamos usar a fotografia agora? Como vamos dançar essa dança? Como minha narrativa pode ser construída? Com que vocabulário verbal e visual vou construir essa história? Então é um momento de absoluta criatividade e de inovação que é urgente e isso é que são as coreografias do impossível: essa absoluta urgência de criar uma plataforma em que temos o dever de experimentar um novo vocabulário que vá além da forma, do vocabulário e da linguagem que essas disciplinas nos deram.
MBV: Nessa história, obviamente de violência, há uma dinâmica de poder que vai se expandindo continuamente e que a modernidade ocidental fez crer que era única e que o que não estava nela simplesmente não existia. É uma história que passou a ideia de um tempo progressivo em que o passado determinava o futuro, em um contínuo homogêneo. O que pleiteamos com essa ideia de “extradisciplinaridade” é que não há uma história única. Entendemos o passado como um elemento de onde surgem interrupções e em cada interrupção há um futuro que desconhecemos. Essas rupturas e esses saberes desconhecidos estão permanentemente presentes na exposição.
Um artista como stanley brouwn era muito conhecido, considerando os parâmetros de uma geração que trabalhava com ele na Europa, mas quando o analisamos na perspectiva não de uma linha contínua, mas das interrupções, vemos que sua obsessão de que a obra não representasse, os fatos de que não aparecia em suas próprias inaugurações ou de que não escrevesse textos sobre elas, têm a ver com a impossibilidade da representação e sobre a invisibilidade, portanto geram-se “contra-histórias” e isso implica outros saberes.
Falamos de arte, que é um termo que existe nas línguas ocidentais, mas em muitas línguas indígenas não existe a palavra arte e existem outras formas de denominar esse campo coletivo que sequer temos. Desaprender e aprender outras coisas são vontades que nos uniam e os 121 participantes são resultado disso. A grande maioria deles não é mainstream, não é ocidental, é indígena e afrodescendente, não por uma vontade de cotas ou números, mas pelo resultado de um processo de trabalho.
Na lista de artistas, também me parece haver pelo menos quatro movimentos em relação à fotografia e ao vídeo: como arquivo (Archivo de la memoria trans); como material inédito, autoral (Eustáquio Neves, Jorge Ribalta); como registro de ações, intervenções e performances (frente 3 de fevereiro, Grupo de Investigación en Arte y Politica, Inaicyra Falcão); e ainda aqueles que usam materiais de arquivo para ressignificá-los em suas obras (Aline Motta, Francisco Toledo). Como vocês pensam trânsitos e esses diferentes usos da fotografia e do vídeo, como registro e ficção, arquivo e especulação?
MBV: Assim como falamos sobre “extradisciplinaridade”, também temos um movimento para além das linguagens. No caso do Archivo de las memoria trans, digamos que elas estão criando sua própria representação, mas como se gera um arquivo a partir de coisas que deveriam estar ocultas? Como algo que é íntimo se torna público? É uma forma de pensar o arquivo que transgride como geralmente pensamos e como esteve em alta nos anos 1990 e no começo deste século. Temos também uma discussão sobre os processos de catalogação e o fetichismo pelo documento.
No caso de Jorge Ribalta, ele faz uma dupla crítica, pois é fotógrafo, mas também historiador da fotografia. Ele faz uma crítica à história colonial, pois segue as rotas do ouro e registra esses percursos 500 anos depois. Por exemplo, um lugar onde antes havia uma mina de mercúrio que usavam para extração, agora é uma quadra de tênis. Ele registra esses percursos que foram se transformando, mas, ao mesmo tempo, questiona a própria fotografia como elemento modernista e etnográfico, pois também sabemos que a fotografia era um elemento etnográfico e colonizador.
Também temos os vídeos relacionados à dança, como na obra de Ana Pi, mas esses cruzamentos entre fotografia e arquivo, fotografia popular, fotografia etnográfica e todos esses trânsitos que são as coreografias do impossível.
GK: Quando falamos de fotografia e arquivo é importante lembrar do constante conflito sobre o que é arquivo e um dos grandes conflitos para nós, artistas contemporâneos, é como contar o passado no presente sem confirmar e reafirmar a violência representada na fotografia e no filme, na pintura, etc. Essa é uma das maiores exigências atualmente. Um verdadeiro desafio em muitas das artistas que conseguem criar essas coreografias do impossível: apontar e enfatizar aquilo que já aconteceu, sem, no entanto, repeti-lo. Acho que é um exercício lindo, muito difícil, que define grandes artistas e que está muito presente nas obras dessa Bienal. Como se movimentar por entre essa impossibilidade de lembrar o que foi, mas sem afirmar aquilo que é hoje?
Olhando a lista de artistas, me pareceu que há um trânsito entre aqueles interessados em registrar e elaborar os confrontos políticos e simbólicos de uma escala macro e aqueles interessados no micro, nas narrativas pessoais, na imaginação e no desejo. Como vocês pensam essas relações por diferentes escalas de temas, digamos?
GK: Realmente não temos um tema e isso é extremamente importante. Não se chama “A bienal decolonial”. Há muitos temas “extradisciplinas” dentro da bienal e para nós já não é importante, nesse momento cronológico, da história, ter um tema específico, mas ter a interconexão e a interseccionalidade entre as coisas. Acima de tudo, é importante ver a intersecção entre as coisas e as muitas relações e identidades que estão incluídas em uma história e como essa história pode ser narrada por diferentes pontos, de uma forma mais política, mais poética ou subjetiva. Uma história pode contar e tocar uma série de temas, desde racismo ambiental, violência, opressão, direitos LGBTQ, Black Lives Matter, porque é impossível separar uma coisa da outra.
Nas últimas décadas houve uma separação de temas, lutas e de intelectualidades como se não estivessem incluídas umas nas outras e, nesse sentido, não há um tema por si só, mas manifestações e movimentos ligados a muitos temas diferentes e que não podem ser separados. Esse exercício é fascinante para nós e também vai ser para o público, de entrar na Bienal e perceber que os saberes e as identidades não podem ser separados. É tudo muito mais interseccional e mais ligado do que pensamos. Esse exercício de separação, de segregação e de fragmentação é um aspecto colonial, de opressão que cria binaridades, que cria um e o outro. O que nos interessa é olhar para essa acumulação de saber em uma mesma obra.
Quando fizemos nossas discussões sobre quais artistas participariam, percebemos que artistas que nem imaginávamos, na verdade, têm algo muito íntimo em comum, estão em geopolíticas completamente diferentes, mas têm práticas próximas. Descobrir isso é extremamente belo e isso acabou desenhando a expografia, que tem uma continuidade que não é esperada, com trânsitos entre tamanhos e movimentos, em um diálogo constante.
Nos interessa desmantelar a fragmentação do saber e ir além dessas disciplinas e temas dados, e expectativas sobre como algo deve ser lido e olhado. Um dos exercícios que mais nos interessa é criar uma Bienal que crie questões e permita ao público levantar perguntas que talvez não estivessem lá antes, pois esses são momentos de grande criatividade e é aí que se cria o futuro: no momento do reconhecimento, quando se reconhece e formula uma nova questão.
MBV: Quando divulgamos a lista, falamos de participantes, não apenas artistas, porque temos a Cozinha Ocupação 9 de Julho, que vai usar a parte do restaurante, ou o Grupo de Investigación en Arte y Política, que trabalha com os zapatistas. Ligando isso à fotografia, ao vídeo, há um elemento que para nós é muito importante: a exposição será muito comprometida, mas não há nada nela que seja literal. Ela é muito comprometida politicamente, considerando nosso background e sabendo sobre a época terrível em que vivemos, com uma espécie de guerra civil em curso e com a ascensão da extrema direita em vários lugares.
A Bienal terá enigma, questionará continuamente e produzirá novos sentidos históricos, como, na relação entre Ana Pi, Katherine Dunham e Maya Deren. Teremos o cinema Yanomami e, ao lado deles, um outro cineasta indígena, das Filipinas, Kidlat Tahimik, que diz há tempos que gosta de fazer cinema porque encontra impossibilidades. Ele fez uma câmera de madeira que não tem filme e, no entanto, gera um vídeo que acaba sendo um relato feito com elementos que ele esculpe e que seus colegas da aldeia lhe oferecem. Vai haver movimentos e condensações de saber, como o retrato de Juan van der Hamen que representa Dona Catalina de Erauso, junto a um retrato de Xica Maniconga quando chegou ao Brasil e que foi queimada por ser trans. Catalina também era trans e saiu da Espanha, mas ajudou a conquistar o território Mapuche e ganhou um estatuto social, sendo pintada por um retratista oficial. Portanto, temos momentos que vão além de temas e elementos formais, mas entrelaçam relatos não homogêneos e não classificáveis. Esses são elementos que vão além da técnica, das formas e do conhecimento moderno.
Há uma série de coreografias que o espectador pode escolher por onde percorrer. Será uma exposição complexa e, possivelmente, trará cada vez uma leitura nova, que é o que nos interessa no mundo da arte: ser irredutível aos meros algoritmos, às fake news e a muitas das coisas que ocorrem no mundo político. Talvez por isso a extrema direita, quando chega ao poder, cria uma obsessão com a cultura, porque é um mundo que tem algo de irredutível. ///
Leandro Muniz (1993) atua como artista e curador e é mestrando em História, Teoria e Crítica de Arte pela ECA-USP.