Entrevistas

Espiral de memórias

Lindokuhle Sobekwa & Anna Ortega Publicado em: 16 de abril de 2025

Do fotolivro I carry Her photo with Me, de Lindokuhle Sobekwa, 2024. Cortesia da editora Mack

Elaborar o luto através da fotografia foi o caminho escolhido pelo artista sul-africano Lindokuhle Sobekwa (1995) para lidar com a perda de sua irmã mais velha. Ainda criança, ele viveu um fato que seria decisivo na própria história: o desaparecimento de sua irmã Ziyanda por mais de uma década no distrito de Thokoza, em Johannesburg.

A falta de notícias e pistas sobre onde e como estaria Ziyanda assombrou Lindokuhle durante toda a juventude. A falta não era apenas da presença física, mas também se dava por uma ausência de imagens, já que a irmã era avessa a câmeras e recusava qualquer tentativa de registro. Restaram a Lindokuhle duas coisas: uma única fotografia da irmã, recortada do álbum de família, e a própria imaginação.

A combinação desses dois elementos desencadeou o fotolivro I carry Her photo with Me (Carrego a foto dela comigo – MACK, 2024). A publicação é um dos desdobramentos da série fotográfica em que Lindokuhle refaz os passos da irmã, na tentativa de se aproximar do mistério que não sossegava no seu interior. Contemplado pelo programa da Fundação Magnum de incentivo à Fotografia e Justiça Social, em 2017 Lindokuhle iniciou a pesquisa que resultou no livro, finalizado em 2024.

De início, fotografava para encontrar respostas pessoais, desejava entender e retratar essa figura que era simultaneamente ausente e presente. Com o tempo, compreendeu que a história dialogava com muitas outras na África do Sul. O livro, enquanto objeto, revela os caminhos não lineares que Lindokuhle percorreu. “Entendi que o livro é um trabalho sobre a minha irmã, mas, no fundo, é muito mais sobre mim mesmo. É como se eu me deparasse com o próprio sentido de fotografar, porque — é ingênuo, claro, enxerguei a fotografia como uma forma de cura, uma maneira de me encontrar”, conta Lindokuhle.

 Na obra, a fotografia encontra a memória de forma espiralada. Ele fotografa remontando cenas antes do desaparecimento, procurando amigos de Ziyanda que a conheciam bem. A história é contada em uma espécie de zig-zag, delicado e bruto ao mesmo tempo. Em formato de scrapbook, o fotolivro lembra um caderno, em que a espiral divide os tempos, revelando a natureza fragmentária da história — e da memória.

As cenas alternam entre o íntimo e o exterior; a luz da vela e o sol à pino; o preto e branco e o colorido. Junto às imagens, e muitas vezes sobre elas, Lindokuhle escreve pequenos textos, rabisca, sinaliza ideias. É como se pudéssemos ler a sua mente. Não escreve, porém, com caneta ou lápis, mas com carvão, um material marcante, difícil de apagar. O traço robusto das palavras escritas contrasta com as fotografias generosas, de alguém que certamente pede licença para entrar. É uma jornada pessoal narrada com fotografias, muitas vezes, oníricas. Abrir o livro é como adentrar o íntimo da despedida e percorrer com o fotógrafo essa busca por uma parte que falta.

Do fotolivro I carry Her photo with Me, de Lindokuhle Sobekwa, 2024. Cortesia da editora Mack

Que tal começarmos a conversa a partir do momento em que você percebeu que a sua série fotográfica I carry Her photo with Me estava acontecendo. Como você entendeu que tinha uma história para contar, que precisava começar esse projeto?

Lindokuhle Sobekwa: O projeto I carry Her photo with Me começou quando entendi que eu realmente precisava descobrir o que havia acontecido com a minha irmã. Ela sumiu por mais de uma década, 11 anos. Depois de todo esse tempo, foi encontrada em um albergue, doente, e trazida para casa. Quando ela retornou, não podíamos conversar. Lembro de tentar forçar a conversa e minha mãe dizia para eu dar o tempo dela, porque ela não estava bem.

E, cara, eu estava tão furioso, cheio de perguntas. Ficava pensando: por que isso aconteceu? por que você me deixou lá? [a irmã de Lindokuhle desapareceu logo depois que ele, com sete anos, foi atropelado por um carro, após uma briga entre os irmãos no meio da rua].

Eu seguia muito traumatizado, não só de toda a experiência, mas de não saber que tipo de vida ela estava vivendo. Isso tudo vinha com muita raiva, óbvio, porque eu estava de frente para a irmã que esperei por anos, mas ela não era como antes. Estava doente, cabisbaixa. Eu cedi minha cama para ela, cuidei dos remédios, da comida, junto com os meus irmãos.

Mesmo com todas essas perguntas, eu ficava quieto. Eu já era fotógrafo naquela época, já tinha feito alguns trabalhos bem-sucedidos. Estudei fotografia cedo e tive professores incríveis, por isso já tinha em mente uma espécie de estrutura narrativa. Eu lembro de um dia estarmos sentados em casa. Ela estava sentada em cima da cama, e havia uma luz linda da janela brilhando em seu rosto. Eu tentei pegar a câmera, e ela me olhou de um jeito repreensivo e disse: “Se você ousar tirar essa foto, eu te mato”. Eu abaixei a câmera, claro, mas aquilo me chocou.

Minha irmã era muito durona, saca? Ela era uma garota forte, da periferia. Ninguém se metia com ela. Eu respeitava muito minha irmã, então larguei imediatamente a câmera. Infelizmente, pouco tempo depois, ela faleceu. Ela precisou ser enterrada no Cabo Oriental [localizado na costa sudeste da África do Sul], no território onde ela cresceu, porque lá é como se fosse nossa casa ancestral.

Do fotolivro I carry Her photo with Me, de Lindokuhle Sobekwa, 2024. Cortesia da editora Mack

E como você percebeu que a fotografia poderia ser uma forma de atravessar o seu luto?

LS: Isso tudo aconteceu em 2013. Passando para 2017, eu encontrei a fotografia de Ziyanda dentro da bíblia da minha mãe. Então, eu pensei: cara, eu ainda tenho tantas perguntas. A fotografia foi como uma desculpa para eu realmente ir em busca dessas respostas. Eu já tinha uma prática fotográfica sólida naquela época e decidi ir aos lugares que ela havia passado, porque queria descobrir como era a vida que ela vivia, por que ela havia voltado para casa.

Como eu disse, eu não conseguia reconhecê-la. Ela tinha cicatrizes nas costas, parecia uma irmã diferente daquela que eu amava. Então a fotografia foi minha forma de encarar essa jornada, de percorrer um caminho atrás da minha irmã, mesmo que essa fosse uma busca metafórica, de juntar as peças de um grande quebra-cabeça.

Eu me aprofundei muito nessa busca, a ponto de ficar assustador para mim. Algo que entendi com I carry Her photo with Me é que esse trabalho é sobre a minha irmã, mas, no fundo, é muito mais sobre mim mesmo. É como se eu me deparasse com o próprio sentido de fotografar, porque — é ingênuo, claro, — eu enxerguei a fotografia como uma forma de cura, uma maneira de me encontrar.

Curar o trauma e elaborar o luto é um longo caminho. Não acontece só de uma forma e também é, de algum modo, um trabalho interminável.

Do fotolivro I carry Her photo with Me, de Lindokuhle Sobekwa, 2024. Cortesia da editora Mack

Há muitas mulheres nos seus retratos, como sua mãe, sua avó também, além do seu projeto ser relacionado a sua irmã. Você é também um fotógrafo que traz olhares para o interior, para a intimidade, de forma muito delicada. De que forma essas mulheres te influenciaram na sua prática?

LS: O meu trabalho fotográfico naquela época era documentar a vida em casa, como uma espécie de autobiografia. Isso se tornou uma característica do meu trabalho e se refletiu na minha carreira. Sem perceber, passei a fotografar a vida que a minha família vivia, e a minha mãe, em especial. Como você disse, há imagens dela e da minha vó. Essas duas figuras femininas que eu fotografo me ensinaram muito sobre sensibilidade, saca? Aprendi com elas a ser gentil na forma de olhar.

Recentemente, eu estava conversando sobre isso com uma amiga, sobre o fato de eu ser um homem criado por figuras femininas, mulheres fortes, e como isso muda a forma como eu vejo o mundo. Especialmente aqui na África do Sul, é um problema comum nossos pais não estarem disponíveis na nossa vida. O que conto em I carry Her photo with Me não é uma história única.

Essa sensibilidade, provavelmente, veio da minha mãe. No meu trabalho, eu sempre tento olhar para as coisas, para as pessoas, com muito respeito e cuidado. Eu sempre me pergunto que tipo de foto eu teria tirado da minha irmã naquele momento, quando ela voltou, mas também, fico feliz por não ter tirado nenhuma foto. A minha formação em fotografia me ensinou que respeitar as outras pessoas é o cerne da prática.

Do fotolivro I carry Her photo with Me, de Lindokuhle Sobekwa, 2024. Cortesia da editora Mack

A produção das imagens do projeto aconteceu de forma espaçada no tempo. De que forma se deu o seu processo como fotógrafo, como é seu modo de fotografar?

LS: Enquanto fotografava eu também mantinha um diário com anotações sobre como eu me sentia em cada espaço; fazia gravações, filmagens, entrevistas. Eu pensava que, provavelmente, o desdobramento seria uma instalação multimídia, mas o curioso é que eu nunca usei nenhuma dessas gravações. O trabalho encontrou a forma de viver que ele realmente precisava: um fotolivro, com anotações manuscritas. Nem sempre as anotações se relacionam com as imagens, muitas vezes elas estão lá de forma autônoma. O livro é como uma espécie de jogo entre palavra, imagem e narrativa.

Eu não tinha, mesmo quando saía para fotografar, ideias preconcebidas sobre para aonde eu iria ou o que eu fotografaria. Eu sou um fotógrafo que, mesmo quando faço trabalhos comissionados e me pedem retratos e paisagens, me sinto livre para improvisar do meu modo quando eu chego no lugar. Quando eu me preparo demais para fotografar, sinto que perco a minha intuição, perco o senso de por que estou fazendo aquilo.

Eu cresci como um dançarino, em que você aprende uma sequência de movimentos, mas precisa seguir o fluxo para que as coisas bonitas apareçam. A fotografia é assim, como uma dança. Você não pode forçar, você precisa fluir.

Fica evidente para as pessoas quando elas olham um trabalho fotográfico e ele parece forçado. Um bom trabalho é vivo, autêntico. Ele não precisa de ótimas fotografias, na minha opinião, mas precisa de algum tipo de conexão humana. Você não precisa ser sul-africana, eu não preciso ser brasileiro, para ver e reconhecer um trabalho incrível. Isso não se restringe à fotografia, poderia ser sobre música, ou outra expressão artística.

Falando novamente da minha mãe, na época ela trabalhava como empregada doméstica. Na África do Sul, ela era alguém que cuidava da casa de outra família, e nós tínhamos que nos virar sozinhos, viver por conta própria, sabe. Enquanto eu fazia este projeto, eu cheguei a visitar essa casa onde ela trabalhava, porque poderia fazer alguma imagem lá, mas foi um gatilho. Eu a vi brincando com crianças brancas, depois chegando em casa cansada, tentando colocar o pão na mesa. Enfim, fui longe no pensamento agora.

Acho muito importante você compartilhar essa memória, porque é um contexto que dialoga muito com a história do Brasil também, quando pensamos no trabalho doméstico, em especial realizado por mulheres negras, e a segregação racial que estrutura a história de ambos os países. Além disso, mostra como o seu trabalho, a partir de uma história pessoal, dialoga com questões amplas tão relevantes, de forma sensível, delicada.

LS :  Sim, o livro foi uma maneira de quebrar ciclos. O projeto I carry Her photo with Me permitiu que minha família começasse a falar sobre esse assunto. E através dessas conversas, descobri que o desaparecimento na minha família era intergeracional. Já havia acontecido com o meu avô, quando ele veio para Joanesburgo da sua terra natal. Mais especificamente, naquela época, durante o Apartheid, eles não permitiam que homens negros trabalhassem com suas esposas. Na década de 1960, meu avô foi trabalhar nas minas de ouro e nunca mais voltou. Então, imagine, minha mãe é uma das muitas gerações que cresceu sem pais.

Começamos a falar mais sobre Ziyanda em si, sobre a questão do desaparecimento e como isso afeta tantas pessoas. São marcas que não estão só em mim. O projeto intensificou essas discussões. Começamos a ter essa conversa, muito sobre Ziyanda em si, mas de modo geral, sobre como o desaparecimento afeta tantas pessoas. São marcas que não são exclusivas minhas. É uma história sul-africana, sabe, talvez seja até uma história universal.

Fotografia do fotolivro I carry Her photo with Me, de Lindokuhle Sobekwa, 2024

Agora que entramos mais no livro em si, gostaria de te ouvir sobre as escolhas para publicação. O fotolivro publicado pela MACK no ano passado tem uma aparência de scrapbook, de um livro feito à mão. Em 2020, quando você exibiu a primeira versão ainda enquanto livro de artista, na exposição African Cosmologies, do Fotofest, ele também tinha esse acabamento. Por que você escolheu esse formato para a história?

LS: Eu pensei nele primeiro como um diário. A ideia do livro surgiu depois, porque comecei a mostrar para alguns amigos no momento em que me senti confortável para isso. Não é fácil se vulnerabilizar. É como se você estivesse se expondo para o mundo, mas ao mesmo tempo, é por meio da coragem que as pessoas se conectam com o seu trabalho.

Decidi que faria um fotolivro depois de uma conversa, mas até chegar no fotolivro final, eu fiz muitos bonecos, várias versões. A primeira vez que o trabalho foi exibido foi em Houston, na African Cosmologies. Depois de conversar com diferentes editoras, o Michael Mack [editor e fundador da MACK] o publicou. É interessante que se olharmos para as duas versões, a primeira e a última, elas são bem semelhantes.

Escolhi esse formato também porque sou apaixonado pelos scrapbooks japoneses. Quando estou viajando, compro vários deles. O livro ter esse acabamento significou ser fiel a mim mesmo, autêntico em relação ao pensamento original. É aquela sensação de que o scrapbook é um objeto que você pode colocar embaixo do travesseiro, rabiscar, colar fotos sobre as páginas. É um formato que me remete à liberdade, à brincadeira, a algo que não é rígido. Esse é o coração do trabalho.  Mesmo quando eu apresento as imagens em espaços expositivos, eu tento transpor a essência do fotolivro. Quando eu trabalhei com o Michael, conversávamos sobre esse poder do suporte. Eu amo muito, muito mesmo, fotolivros.

Eu gosto do fato de que um livro pode morar em uma casa. É diferente das exposições que vêm e vão. Os livros ficam. Posso olhar para uma foto minha daqui a 10 anos dentro de uma publicação e notar o quanto cresci; descobrir coisas novas nas imagens, ou pequenos detalhes que estavam ali o tempo todo, mas que eu não havia percebido. Quero dizer, eu adoro livros de fotografia, porque acho que você consegue perceber os movimentos de um fotógrafo quando olha para ele.

Quais fotolivros foram importantes para você enquanto fotógrafo? Você poderia contar sobre algum, em especial, que ecoe para você para até hoje?

LS: O Ernest Cole, tá ligada? Ele é um dos meus maiores heróis. O trabalho dele me tocou quando eu tinha 17 ou 18 anos. Um professor trouxe o livro para eu dar uma olhada, em um momento em que estávamos estudando muito sobre fotógrafos brancos. Eu sempre me perguntava onde estavam os fotógrafos negros. Então, ele começou a me contar sobre a história da fotografia na África do Sul e me disse que Ernest Cole tinha uns 20 anos quando fotografou House of Bondage.

Eu devorei o livro de madrugada, à luz de velas. Fiquei hipnotizado pela intensidade e pelo poder daquelas imagens. Era o registro íntimo da vida de comunidades negras. Algumas daquelas fotografias falavam comigo em um lugar profundo, mesmo tendo sido tiradas na década de 1960. Eu lembro de um dos capítulos que mais me tocou, chamado The Servant, sobre trabalhadoras domésticas. Eram cenas exatamente iguais às que a minha mãe vivia. Fiquei uau! Essas imagens remetem a situações que permanecem as mesmas. Claro, algumas coisas mudaram, mas não o suficiente, sabe?

Outros fotógrafos também, como David Goldblatt, porque, de certa forma, ele fez um retrato de uma cidade pequena, olhou para as diferentes facetas de um mesmo lugar. Para mim, esses livros foram muito inspiradores e até mesmo fotógrafos contemporâneos, tipo Sabelo Mlangeni e Zanele Muholi. O olhar que eles têm para África do Sul é muito interessante, sempre encontrei inspiração nessas pessoas.

Um elemento que considero bastante interessante no seu livro é a encadernação em espiral, porque ao mesmo tempo que ela une, ela também separa. As imagens, de certa forma, nunca estão completas. São esses fragmentos, que revelam essa busca. Também gostaria de destacar a sua escolha de não escrever as notas com caneta, ou lápis, mas com esse riscado que lembra um giz escolar. Como foram essas decisões que atravessam o livro?

LS: Então, na verdade, o material que eu utilizei para escrever é o carvão. O carvão é como as cinzas, provém da queima. Eu meio que gosto da ideia de escrever com esse material, me lembra a própria forma da memória. Quando você usa o carvão para escrever em algum lugar, por exemplo, em um livro, e você fecha as páginas depois, no dia seguinte pode ser que aquilo tenha desaparecido. Ou, pelo menos, estará diferente do que você deixou. A memória é assim, saca? Não é estagnada, nem linear. É um zig-zag, ela vai e vem.

A memória está sempre te traindo, porque essa é uma forma de sobrevivência. O livro é também sobre isso, porque a fotografia vem sendo uma espécie de marcador da memória para mim, um lugar em que consigo dissociar, criar outros tempos. É como quando você olha para uma foto antiga de família. Algo diferente acontece, não é? Ao mesmo tempo em que você adiciona novas memórias à imagem, há também aquelas que desaparecem.

E você poderia narrar os momentos de retrato das pessoas que conheciam a sua irmã? Algumas vezes essas pessoas nos olham de volta nas fotografias. Muitas vezes, não. Há um mistério permanente que atravessa os olhares das pessoas e as páginas.

LS: Os retratos foram feitos em lugares onde minha irmã esteve. Eu carregava a foto dela, assim como minha mãe fazia quando estava procurando por ela. Só que as pessoas viam e ficavam tipo “eu conheço essa garota”, mas diziam nomes totalmente diferentes. Foi um pouco perturbador, mas entendi que ela usava outros nomes para conseguir sobreviver na rua.

Algumas das pessoas que conheci, assim como em qualquer outro projeto, disseram que sim, poderiam ser retratadas. Outras que não. Fui encontrando a maneira adequada para cada pessoa. Tem uma fotografia que está no livro de uma mulher em cima da cama, e ela não queria que seu rosto fosse revelado — o que me lembrou imediatamente a minha irmã. Só que mesmo sem mostrar o rosto, ela concordou em ser fotografada. Claro, que eu prefiro quando alguém olha para mim. É mais justo: eu te vejo, você me vê. Há um outro tipo de intensidade na imagem. Se você me acompanhasse em uma diária, você veria que eu sou um fotógrafo bastante paciente, que leva tempo, que espera, ainda mais porque grande parte do trabalho foi feito com câmera analógica.

Do fotolivro I carry Her photo with Me, de Lindokuhle Sobekwa, 2024. Cortesia da editora Mack

Como foi o processo de edição, de costura da narrativa?

LS: Eu não queria que fosse um livro com tantos retratos, porque eu acho importante dar às pessoas espaços para respirar. Há paisagens em diferentes momentos, como quando eu estava em um carro, ou em táxi, na estrada de modo geral. Quero que as pessoas consigam me imaginar viajando para o Cabo Oriental, enquanto visito a minha avó e os lugares onde Ziyanda cresceu. A paisagem é, para mim, a raiz que sustenta o livro, porque mostra essa espécie de pausa. Eu não queria que fosse um fotolivro agitado, cansativo.

Também não queria fazer um livro espesso, sabe? Nossa capacidade de concentração hoje em dia é muito curta. Na edição, excluímos muitas fotografias que não eram tão fortes para o livro ou para mim pessoalmente, com a ideia de criar uma seleção precisa. Nesses diálogos com o editor, eu disse para ele que sentia falta de uma fotografia no projeto. No começo, pensei que talvez fosse um autorretrato, porque não há nenhum retrato meu.

Segui todos os passos, fotografei os amigos da minha irmã, a minha mãe, minha casa, meu novo lar, minha família, meu irmão, nossas mudanças de casa depois que o lugar onde morávamos pegou fogo. Foi um quebra-cabeça para entender por onde ir.

Do fotolivro I carry Her photo with Me, de Lindokuhle Sobekwa, 2024. Cortesia da editora Mack

Curioso você comentar que no final da edição sentiu falta de uma única fotografia, porque de algum modo o livro também se origina a partir de uma única imagem que desencadeia todo resto. Você descobriu a peça que faltava?

LS: Eu pensei que pudesse ser meu autorretrato, mas não me parecia certo. Eu até inclui um autorretrato, muito antigo, de quando eu recém havia começado a fotografar em 2012, um momento em que era tudo ainda muito experimental para mim ainda.

Segui com aquela dúvida, até meu irmão me perguntar: “E aí mano, você já pensou em voltar para o lugar onde o carro te atropelou?”. Eu nunca tinha pensado, por que era um lugar confuso para mim. Mas daí pensei: “É, talvez eu possa ir lá me reconciliar com a paisagem, com o espaço onde esse trauma aconteceu”.

Então, eu simplesmente fui lá e fotografei a vida como estava naquele lugar. Era 2022 ou 2023, e a vida continuava acontecendo naquela esquina. Eu voltei para casa e comecei a fazer o meu trabalho de memória, de intervenção e lembrança sobre tudo o que aconteceu naquele exato lugar. E eu, surpreendentemente, me senti muito bem fazendo aquilo. Parecia a coisa necessária para terminar o projeto.

É bonita a forma como você compreende a prática fotográfica entrelaçada com o próprio funcionamento da memória. É, de fato, como uma espiral, um zig-zag. Tanto no seu fotolivro, quanto na vida. É também o que você comentou anteriormente, como se ao produzir novas imagens, você também alterasse as anteriores. Para encerrar, como você acha que I carry Her photo with Me transformou você enquanto artista e fotógrafo? O que você leva adiante desse longo e significativo trabalho?

LS: Vou precisar pensar um pouco, tudo bem? Eu acho que esse projeto realmente me permitiu me expressar, embora essa seja uma palavra vaga. É como se eu tivesse tirado um peso das costas, um alívio. Lembro a primeira vez que apresentei este trabalho em público… Nunca fiquei tão emocionado quanto naquele dia, e era um sentimento que vinha de um lugar muito profundo.

Uma memória que ocorre agora é de quando minha irmã me ensinou a dançar. Quando eu era criança, eu dizia que não tinha nenhum talento, e ela disse que não era verdade. Então, ela me ensinou a Pantsula [dança africana conhecida nas comunidades negras da África do Sul] e foi a melhor sensação que tive na vida. Eu pensei que viraria um dançarino, mas me tornei um fotógrafo.

Quando minha irmã desapareceu, nem todos compreendiam, mas eu sempre pensava que ela devia estar passando por algo. Uma das coisas pelas quais me sinto grato de ter iniciado esse projeto foi porque, com ele, eu consegui perdoar minha irmã e me perdoar. Carregar a raiva dentro de si pode ser muito prejudicial para o corpo.

O I carry Her photo with Me moldou a minha visão de mundo e da fotografia, inclusive sobre os projetos que me interesso em trabalhar hoje ou no futuro. Mudou a forma como vejo a história da minha família, a história da África do Sul, pois há tantas histórias como essa e que, muitas vezes, ficam restritas à oralidade.

Às vezes, o que eu faço pode até parecer mais distante da prática fotográfica, mas o que eu amo é contar histórias. Meu interesse é partir de mim mesmo para então me conectar com as pessoas. Eu pesquiso como a paisagem interna reflete questões da sociedade em geral, sabe?

Quero documentar a África do Sul do meu tempo, do agora, a partir de uma perspectiva intimista – ultrapassando aquela ideia de exotismo na fotografia. Quero fotografar flores, cavalos, paisagens. Quero documentar as coisas que eu amo. ///

Anna Ortega é repórter, interessada na escuta e escrita de processos artísticos. Trabalha com jornalismo cultural e cobre temas relacionados a direitos humanos, educação e crise climática. Colabora com diversos veículos e revistas, como UOL, Nexo, Revista Select, Portal Colabora, Dialogue Earth, Nonada Jornalismo e outros. É também artista e fotógrafa.

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