A fotógrafa Mayco Naing fala sobre política, gênero e liberdade na recém-democratizada Myanmar
Publicado em: 28 de março de 2017
No início dos anos 2000, a fotógrafa Mayco Naing trabalhava em um pequeno estúdio em Yangon, antiga capital de Myanmar, produzindo retratos e adesivos fotográficos personalizados que os mais jovens usavam para criar sua “rede social” de imagens fora da internet. Depois de quase 50 anos de ditadura militar, golpes de estado e sangrentas disputas pelo poder, só recentemente a democracia e os smartphones chegaram ao país. Eleições gerais ocorreram em novembro de 2015, com vitória ampla da Liga Nacional pela Democracia, partido da ganhadora do prêmio Nobel da Paz e atual Conselheira de Estado, Aung San Suu Kyi. No entanto, os cidadãos sabem que o processo de transição democrática ainda está em curso, apenas o começo de uma nova realidade e uma longa reforma que precisa ser colocada em prática. A presença dos militares no comando de alguns dos principais ministérios do país e em 25% dos assentos no parlamento não pode ser ignorada. Trabalhando no próprio estúdio desde 2010, a fotógrafa coloca em discussão, por meio de seu trabalho, questões políticas e sociais. Em entrevista exclusiva para a ZUM, Mayco conversou com a jornalista Marina Yamaoka sobre fotografia, liberdade e igualdade de gênero em uma sociedade que só em 2017 fez seu primeiro login oficial na internet.
Marina Yamaoka: Gostaria que você me contasse um pouco da sua trajetória. Como você se tornou fotógrafa?
Mayco Naing: Nasci em uma cidade a seis horas de Yangon, onde a minha família tem até hoje um pequeno comércio. Quando terminei o Ensino Médio, aos 16 anos, tive que esperar dois anos para entrar na universidade. Naquela época, não era fácil estudar: os militares fechavam as universidades e não sabíamos se e quando teríamos acesso a elas.
Enquanto esperava, encontrei trabalho em um estúdio de fotografia, onde permaneci por nove anos. Afinal das contas, tudo que eu sabia era ser fotógrafa. Ali, eu fazia retratos e stickers, fotos personalizadas de jovens e estudantes que podem ser comparadas às selfies de hoje. Naquela época não tínhamos celulares. Com esse trabalho, fui juntando dinheiro para comprar minha própria câmera e, em 2010, abri meu estúdio. Esse passo foi muito significativo para mim, pois ganhei independência para realizar meus projetos pessoais, sem ter que pedir permissão a nenhum chefe. Naquele momento, precisava explorar minhas próprias ideias.
MY: O ano de 2010, momento em que você abre seu próprio estúdio, é marcado pelo começo da abertura do regime militar em Myanmar. De que forma isso se refletiu no seu trabalho?
MN: A vontade de começar a fazer as coisas sozinha veio um pouco antes. Em 2007, tivemos a Revolução Açafrão [série de protestos contra o governo em agosto daquele ano, com violenta repressão da polícia, várias mortes e centenas de detenções. O nome açafrão é uma referência à cor das vestes dos monges budistas que participaram das manifestações], na qual muitos artistas e jornalistas se engajaram e muitos arriscaram suas vidas para documentar o que estava acontecendo. Foi nesse momento que o Instituto Francês em Myanmar desenvolveu um programa para treinar e educar fotógrafos locais, criando o Festival de Fotografia de Yangon.
Eu me inscrevi no workshop, mesmo sem saber ao certo o que faria. Usei o que havia aprendido por conta própria e a minha experiência com retratos para produzir a série Velocidade solitária, retrato do que era a minha vida naquele momento, quando trabalhava cerca de 18 horas por dia em meu estúdio recém aberto. Com esse projeto, ganhei uma bolsa de estudos em Arles, na França, e passei quatro meses estudando na Escola Nacional Superior de Fotografia. Quando voltei para Yangon, após o intercâmbio, percebi que desde o começo da abertura política de 2010 já vivíamos com mais liberdade, mas ainda com medo. A “liberdade de não ter medo” [a expressão vem de Freedom from fear, em inglês, título da coletânea de ensaios escritos por Aung San Suu Kyi sobre abusos de direitos humanos em Myanmar] ainda era apenas um sonho para a maioria das pessoas.
Queria retratar a minha geração por meio da fotografia, jovens de 20 a 30 anos, que cresceram com valores conservadores, baixos níveis de educação e controlados por uma ditadura. Isso foi antes mesmo das eleições gerais de novembro de 2015. Queria alertar o público sobre como era difícil respirar na sociedade em que vivíamos.
MY: Nessa época, entre 2014 e 2015, você desenvolve a série Liberdade do medo, sobre liberdade de expressão. Como foi o processo de fotografar e documentar esse trabalho?
MN: Percebi que os sonhos de todos estavam relacionados ao resultado das eleições gerais de 2015 e que as pessoas pareciam mais à vontade para se expressar. Ao mesmo tempo, sentia que era difícil respirar, era como se estivéssemos submersos. Liberdade do medo é uma série de 26 retratos de 12 jovens e um autorretrato feitos embaixo d’águaentro de uma banheira. A questão para mim era: “Será que vamos conseguir respirar profundamente?”.
Após fotografar, perguntava às pessoas como elas tinham se sentido, o que a experiência havia significado para elas. As respostas traziam frustrações, histórias de como se dedicaram durante anos aos estudos e estavam desempregadas, o fato de que muitas vezes era necessário deixar o país para conseguir algum tipo de êxito, e a dificuldade de precisar viver calado e evitar falar verdades.
E ao fazer meu autorretrato, achei curioso que mesmo de olhos abertos embaixo d’água não era possível enxergar nada. Para mim, isso significa que, mesmo que não consigamos respirar direito, temos que seguir vivendo. Mesmo com a nossa visão embaçada, precisamos nos manter determinados.
MY: Sua outra série Humanidade, identidade & nudez aborda a objetificação do corpo feminino. Como a arte e a fotografia podem fazer parte das transformações pelas quais Myanmar está passando hoje?
MN: Com frequência o corpo feminino ainda é sinônimo de sujeira ou de pecado na sociedade myanmarense. Somos ensinadas a sentir vergonha e passamos a recear sermos diferentes, quando, na verdade, se um corpo tem curvas bonitas ou não, nunca será uma coisa suja. Não gosto da ideia de que a nudez seja algo sujo. Quero que as pessoas passem a ver olhos, peitos, bunda, braços, mãos, como apenas partes diferentes do mesmo corpo humano.
Além dessa série, uso o meu trabalho comercial de retratos para ajudar mulheres jovens a ganharem confiança. Muitas se acham feias e busco uma forma de ressaltar suas individualidades quando as fotografo. Elas acabam se tornando amigas, pois me aproximo bastante delas, troco ideias e converso até que se sintam confortáveis para serem clicadas. É possível mostrar que todo mundo pode ser o que quiser ser. Também estou interessada em buscar formas de expressar os desafios que essa nova geração de mulheres independentes enfrenta em uma sociedade tradicional que ainda acredita que temos que abandonar nossos sonhos e carreiras a partir do momento em que nos casamos.
Hoje, como professora no Festival de Fotografia de Yangon, tento ensinar meus alunos que é possível abordar assuntos pesados como estupro, por exemplo, por meio da arte. Usando a luz certa e um determinado enquadramento é possível criar a atmosfera que se busca, o conceito que se quer apresentar e até cheiros. Você não precisa necessariamente mostrar o rosto de uma mulher que sofreu violência para contar a história dela. É aí que entra o papel da arte.
MY: Depois de ter participado do workshop do festival e estudado em Arles, você passou a dar aulas. Qual a importância de formar uma nova geração de fotógrafos em Myanmar?
MN: Os jovens que hoje querem participar dos cursos são exatamente como eu. Não há formação ou estudo de fotografia em Myanmar e esta é uma oportunidade que eles têm de produzir ensaios fotográficos com orientação profissional. Talvez eles não sigam carreira como fotógrafos, mas alguns podem ter a vida transformada por um workshop e eu quero ajudar a abrir portas, assim como aconteceu comigo.
Além disso, eles têm muito para compartilhar e documentar a atual transição democrática com poderosos ensaios fotográficos sobre questões sociais, culturais e ambientais. O nosso objetivo é apresentar, de forma eficiente, novas ferramentas aos jovens para que eles sejam capazes de contar histórias com a fotografia. Mais de 500 pessoas já passaram pelos workshops e puderam chamar a atenção para o que acontece em suas realidades. A ideia é chegarmos a todos os cantos do país.
MY: Como você enxerga o papel da fotografia em uma sociedade efervescente que vive uma transição democrática?
MN: Antes de 2005, praticamente só tínhamos fotografia de paisagem em Myanmar. Não havia fotojornalismo porque o país ainda estava muito fechado e tudo era controlado, as imagens produzidas não podiam ter contraste, composição, cor, desfoque, nitidez, nada. Eram simplesmente apagadas.
Com o novo governo fomos capazes de falar cada vez mais sobre os problemas no país e contar histórias por meio da fotografia. Dessa forma, a sociedade é melhor informada sobre o que acontece, sobre quais são as questões sociais para podermos buscar soluções juntos. De certa forma, ao tratar de temas importantes e sobre os quais não falávamos antes, a fotografia tem um papel educativo.
Além disso, fotografia não é apenas sobre imagem. É sobre comunicação também. Em primeiro lugar porque para ser um bom fotógrafo é preciso conversar com as pessoas, criar empatia. Técnica, conceitos e ideias não são suficientes, é necessário ser capaz de se relacionar com o assunto que você quer retratar.
Nos ensaios fotográficos que fazemos, procuramos temas fortes e relevantes, como questões de gênero, violência, tráfico de drogas, imigração e formas de comunicá-los. Algumas vezes usamos um ângulo mais alegre, um personagem. Mas, nos textos que acompanham as fotos, as pessoas vão ler duas ou três frases contextualizando a realidade em um campo de refugiados, por exemplo. Os assuntos fortes estarão sempre presentes, só que às vezes nos bastidores.
MY: Educação é um tema recorrente em seu trabalho e em seu discurso. Você inclusive menciona em Velocidade solitária que quando estava em Arles ficou surpresa porque os professores exigiam que os alunos refletissem. Como fotografia e educação se relacionam?
MN: Graças aos trabalhos importantes que são realizados nos workshops e depois apresentados no Festival de Fotografia de Yangon, as pessoas têm se conscientizado e sensibilizado quanto aos nossos problemas sociais e ambientais.
Pessoalmente, quando estava em Arles, passei por momentos difíceis. Os professores eram exigentes e eu estava acostumada a ter que aprender tudo sozinha com três livros, inclusive no ensino médio e na universidade. Lá, os livros ficavam nas bibliotecas e os professores queriam usar o momento da aula para debater. Lembro de um dia perguntar a um professor: “O que é fotografia contemporânea?”, e ele me olhar como se eu estivesse maluca e devolver: “O que você quer dizer exatamente?”.
Não temos livros ou estudos sobre fotografia em Myanmar, vivíamos em uma ditadura e começamos a aprender aos poucos. Também precisamos de museus que todos possam frequentar, pois hoje as exposições são feitas apenas em galerias. O atual governo é muito importante para nós e quanto mais ele conseguir avançar, melhor será o nível de educação no país.///
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