Entrevista: Mauricio Lima fala sobre a experiência de fotografar conflitos sociais e guerras pelo mundo
Publicado em: 10 de maio de 2017Durante 29 dias, o fotógrafo brasileiro Mauricio Lima percorreu a pé o trecho final da longa jornada de uma família síria entre a Sérvia e a Suécia, seu destino final. Ao acompanhar os Majid, Lima mostra o drama da fuga dos sírios para a Europa. Cerca de cinco milhões de pessoas já abandonaram o país desde o começo da guerra, em 2011. O resultado pode ser visto na exposição Farida, um conto sírio, no MIS-SP até o dia 28 de maio.
A intimidade conquistada por ele junto à família – com a qual se comunicava por gestos, olhares e algumas palavras cordiais em árabe –, fica evidente em imagens como a de Jamilah, adormecida momentos depois do nascimento da filha Farida, já na Suécia. Grávida de seis meses no começo da viagem, o nome do bebê inspirou o título da exposição.
Desde 2003, o fotógrafo registra a situação dos refugiados no Oriente Médio e na Europa, trabalhando em zonas de conflito armado como Afeganistão, Iraque, Líbia e Ucrânia. Em 2016, dividiu com outros três fotógrafos o prestigiado prêmio Pulitzer pela cobertura da crise dos migrantes na Europa. No entanto, ele garante que não está interessado em prêmios: “Eu nem imaginava. Não fotografo pra isso. Meu trabalho desde o começo apresenta uma busca pessoal, não procuro me enaltecer.”
Em conversa com a ZUM, Lima conta mais detalhes sobre a jornada com os Majid, o papel do fotógrafo em situações extremas e os conflitos geopolíticos entre o Oriente Médio, Europa e as grandes potências mundiais.
O primeiro país em conflito que você registrou foi o Iraque, em 2003, depois da invasão americana. O que te fez querer voltar e continuar?
O meu inconformismo com aquilo. E o fato de ter feito um trabalho com um menino, o Ayad, que gerou um resultado positivo para ele (uma família americana que leu a reportagem publicada no Washington Post levou o menino para se tratar nos Estados Unidos). Ayad foi ferido por um bombardeio norte-americano, perdeu a visão de um olho e teve o outro danificado. Eu o vi na zona verde de Bagdá, pedindo ajuda com o pai para comprar remédio. Parei e me apresentei, com o apoio do motorista que falava inglês. Fui atrás da família, fiquei dois ou três dias com eles. Foi uma honra ser aceito por aquela família. Você é um estranho, não é iraquiano, nem muçulmano e me receberam no mesmo quarto deles. Foi um momento de transição, de entender mesmo o outro. Por que essa generosidade comigo, sendo que meu único objetivo era contar a história deles através de fotografias?
Você sempre se interessou mais pelo aspecto dos refugiados e deslocados do que pelo confronto?
É importante mostrar o confronto, mas tem também o outro lado, que muitas vezes passa despercebido. E o que me interessa é mostrar o lado humano disso. Enquanto trabalhava para a agência France-Press (AFP) busquei ficar longe de temas superficiais que não me interessavam, como coletivas de imprensa e locais de ataques sem vida.
Fotografar os refugiados não é algo pontual pra mim, de 2015 apenas. Durante o ano passado fiquei focado em outro aspecto do trabalho, o dos refugiados nas cidades europeias. Estive no interior da Itália e da Alemanha para acompanhar dois diferentes grupos e tentar estabelecer uma relação, uma conexão entre essas duas realidades.
A Alemanha está tratando melhor os refugiados do que a Itália?
Sim, você vê uma diferença. E acho que não é apenas pelo aspecto econômico, mas pela forma de ser do alemão, algo cultural. Na realidade, a coisa é bem equilibrada: da mesma forma que há pessoas dispostas a absorvê-los, há o outro lado que não quer nem saber e enxerga o refugiado como mecanismo de dominação religiosa, para fincar a bandeira do islã na Europa. Essa é a mentalidade que muitos têm por lá.
Como foi viabilizar a vinda da família Majid a São Paulo para participar de uma conversa no MIS durante a sua exposição?
Fizemos uma parceria com a Human Rights Watch e a embaixada da Suécia. E dessa maneira conseguimos viabilizar a vinda de algumas pessoas da família. Originalmente são 13 pessoas, e cinco estão vindo: dois adultos e três crianças. Vão ficar uns seis dias. Estamos tentando fazer uma conexão com alguns sírios que estão vivendo aqui.
Na prática, como foi acompanhar a família? Você ficou o tempo todo – 29 dias – com eles, dormindo na rua?
Boa parte do tempo, sim. Quando eles chegaram na Alemanha conseguiram dormir em um albergue. Antes disso, era sempre na rua, em estações de trem ou em fazendas.
E como você fazia com o equipamento? Como carregava baterias nessa rotina de dormir na rua?
Eu sempre carrego baterias extras comigo, mas trabalho de forma simples. Procuro ter a simplicidade como princípio de vida. Trabalho com uma câmera, uma lente e nada mais.
E você faz muitos cliques ou prefere esperar o momento certo?
Depende muito. Acho que é uma combinação entre intuição, a energia ao redor e o seu envolvimento com aquilo. Outros fatores também interferem: a luz, a emoção, a situação em si. Para mim é um eterno exercício, uma constante prática de paciência e de observação. É algo que me motiva muito. A busca por um momento me dá muito prazer. Procuro manter viva essa coisa do [Henri-Cartier] Bresson, do momento decisivo. Sou capaz de ficar três ou quatro horas parado num lugar esperando por uma foto, como fiz em muitos momentos aqui. Mas não tenho saco pra ficar dez minutos em uma rede social.
Fale de alguma foto da exposição em que você tenha ficado muito tempo esperando.
A da cerca [imagem acima]. Fiquei o dia inteiro nesse local da fronteira, observando eles construírem a cerca, até ficar pronta. Mesmo que seja intuitivo, você prevê algumas situações quando chega no lugar e começa a perceber e analisar o contexto do que tem na sua frente. Trabalho dessa forma, presto atenção onde o sol nasce e onde vai se pôr e começo a conectar os elementos que vão fazer parte da mensagem que quero transmitir. Também ando muito. Esse foi um trabalho de andar muito, conversar com as pessoas, observar e esperar. Sempre existe um momento de pausa, certas horas em que não tem foto. Ela até está presente, mas não é o momento, ainda vai acontecer. Aí vai de cada um, da motivação e da capacidade de concentração. Nessa situação eu tinha ideia do que havia ao meu redor. Onde havia pessoas dormindo, onde havia fronteira, onde era o limite, o fluxo e o movimento. E quando você passa por um lugar, isso fica armazenado na memória, você pensa: vou voltar aqui mais tarde porque pode ter algo interessante.
Essa foto da mulher amamentando no meio do grupo teve essa espera também?
É um grupo de yazidis [imagem acima], eles têm um tom de pele distinto. Naquele dia o vento levantava muita poeira e areia, estava nublado, com muita variação de luz, até que aconteceu essa situação. A dramaticidade do céu me fascina, presto muita atenção nele como elemento de contraponto na imagem.
Nessas situações você estava sozinho ou havia um fixer [ajudante local] ou intérprete?
Estava sozinho. Em basicamente 95% desse trabalho também. Na Síria e no Iraque tinha intérprete. Pessoalmente não gosto da palavra fixer, porque ninguém arruma nada para a gente. A gente que vai atrás daquilo que busca.
Você costuma procurar os mesmos intérpretes quando retorna?
Sim, mas não procuro só quando volto para trabalhar. Mantenho o contato enquanto não estou trabalhando. O trabalho com os fixers e intérpretes é fundamental e precisa ser respeitado. Porque estão expondo a vida deles pela causa individual de um estranho, alguém que não pertence à realidade deles e que interpreta as situações sob um outro aspecto. Claro, a gente consegue estabelecer um limite diante de uma situação vulnerável ou de um risco para nós mesmos. Mas estou levando outras, então tenho que tomar um certo cuidado para que a minha necessidade, a minha motivação não se sobressaia à vida do outro. E também o meu nível de risco é diferente do nível de risco deles, que pode ser maior ou menor. Com o passar do tempo você vai conseguir interpretar isso.
Falando em risco, você acha que o acesso ao trabalho de fotógrafo de guerra ficou mais simples, tem mais gente cobrindo os conflitos?
Acho que tudo começou com a chamada Primavera Árabe. A partir daí o número de fotógrafos aumentou. Mas cada um por sua própria motivação e razão.
Esse aumento seria em decorrência da crise do jornalismo? Que leva mais gente a querer produzir reportagens em zonas de conflito, como uma maneira de conseguir mais espaço na mídia?
Acho que pode ser, pode levar a essa saída. Há diversos motivos, pessoas que abrem mão de certas coisas da vida para fazer esse tipo de trabalho. Imagino que se eu fosse casado e com filhos não iria (talvez, não posso afirmar, é fácil julgar no condicional), mas acho que não iria expor a minha integridade tendo família em casa. É um ambiente hostil. Mesmo que esteja trabalhando, você não está ali para fazer parte daquilo. E quando você faz algo de forma propositiva, eu acho que isso cria um escudo, te protege de alguma forma.
Como assim?
Existe a iminência do risco, mas raramente algo pode acontecer com você. Você se propõe a isso por algo positivo.
Então você não pensa no risco quando está trabalhando?
Raramente.
Alguma vez já pensou “não deveria estar aqui, nesse lugar”?
Várias!
E tentou sair o mais rápido possível?
Tento respirar um pouco mais profundamente. E passa de uma forma muito veloz pela cabeça o porquê de estar ali naquele momento. Mas isso é fugaz, depois a situação volta ao normal. É intuitivo demais o ato de reagir com uma câmera na mão. É basicamente como a gente funciona. Só que diante de tanta situação cruel vivenciada nesses últimos tempos, a câmera também tem o seu momento de pausa. E aí, quando há situação de risco e não há gente mais capacitada para fazer algo, eu acredito que, como humano, devemos reagir. Não sou diferente, funciono assim.
Mais capacitado para ajudar?
Sim. Do que médicos, por exemplo.
Já parou de fotografar para ajudar alguém?
Já, acredito que seja algo natural da nossa espécie. Mas tenho uma certa cautela em falar sobre as minhas situações. Eu utilizo a fotografia para falar sobre os outros. A gente precisa de menos ufanismo e mais conscientização. Por isso, nesses momentos que supostamente seriam de destaque pessoal, eu recuo.
Em mais de uma situação você pôde comprovar o poder de uma imagem influenciar o destino de uma pessoa. Em 2014, na Ucrânia, você fotografou uma mulher sendo atacada e humilhada publicamente na rua. [Irina Dovgan, de 53 anos, havia sido acusada pelos separatistas russos de ajudar o exército ucraniano, atuando como observadora de atiradores. Clique para ver a foto.]
Sim, depois tive a chance de me encontrar com ela e ouvir a sua reação diante daquilo.
Você estava passando e viu a cena?
Isso. Estava passando por acaso, vi de dentro do carro e pedi para o motorista voltar.
E saiu no dia seguinte no jornal?
No mesmo dia a foto foi publicada no The New York Times, gerou um impacto imediato. No dia seguinte, numa negociação da qual o repórter e eu também participamos, ela foi libertada.
Enquanto você estava fotografando, teve vontade de agir, de fazer alguma coisa?
É óbvio. Foi por isso que eu voltei. Achei que era uma questão humana, e não partidária no conflito. Ninguém pode ficar numa situação daquelas sendo humilhado no meio da rua. Independente que seja pró-Ucrânia ou pró-Rússia, a minha reação teria sido a mesma. Porque ali havia uma mulher sendo humilhada. Foi curioso, porque eu pedi desculpas a ela depois, por tê-la exposto, fotografado numa situação humilhante. Mas aquilo tinha me causado uma reação de inconformismo. Ela começou a chorar e, quando conseguiu falar alguma coisa, disse: “Você era uma pessoa neutra para mim, naquele momento. Eu não me senti amedrontada com você ali.” Mesmo estando muito próximo dela [para fazer a foto], foi novamente a situação de espera e observação, com a câmera quieta. Mas como sabia o que queria, o momento do contato entre alguém e ela, consegui isso nesses pequenos segundos de levantar a câmera, fazer a foto e baixar de novo. Fiz umas dez fotos até alguém aparecer e pedir pra eu ir embora.
O que você considera o maior desafio hoje em dia para um fotógrafo?
Acho que o desafio de tentar estabelecer um conjunto visual que represente algo para o outro. Tentar contar uma história visualmente que faça sentido – ou que não tenha um sentido, mas que desperte algo no outro. Comigo, a partir do momento que decido fazer uma imagem é porque naquele momento senti algo por aquilo. Então, se você está diante dessa fotografia, muito provavelmente vai sentir algo, porque senti algo na hora que fiz. Isso precisa causar uma reação e gerar questionamentos. Acho que quando você chega nesse ponto, começa a ir pelo caminho da descoberta ou do mistério de algo mais subliminar do que simplesmente homens de uniforme camuflado levantando uma cerca no meio do mato. Porque o seu repertório é diferente do meu, que é diferente de uma terceira pessoa. Cada um tem o seu repertório, a sua formação e a sua cultura. As pessoas reagem de maneira diferente, mas o importante é que reajam.
E qual o caminho para conseguir causar essa emoção nas pessoas?
Eu não vejo diferença entre o ser fotógrafo e o ser humano. Porque a gente precisa ter algumas perspectivas na vida. E acho que na imagem não pode ser diferente. Quando vejo uma imagem que não tenha profundidade, me sinto incomodado porque não vai me causar questionamento. A não ser que seja uma situação assim, [foto de pessoas dormindo no chão] mas essas pessoas todas sabiam que eu fazia parte do cotidiano delas para mostrar uma situação assim. Ou como aquela [bebê Farida dormindo na maternidade com a mãe]. Essas são situações muito íntimas de alguém. E para você estabelecer esse tipo de confiança depende de vários fatores, mas o mais importante é o respeito que você demonstra. Não por um interesse que supostamente você tenha. Mas pela sua forma de ser, simplesmente pela sua forma de ser.
Quando você se depara com situações que apelam para a sentimentalidade ou o drama, você evita fotografar?
A cada ano procuro ser mais criterioso com as minhas atitudes ou reações. A partir do momento que sinto que vou extrair algo de alguém que tende a ser algo que possa ser visto como exploração, eu recuo.
Foi ganhando essa experiência ao ver seu trabalho publicado?
Não, acho que o convívio com diferentes culturas começou a me lapidar nesse sentido. O fato de lidar constantemente com diferentes pessoas no seu cotidiano fez com que eu percebesse melhor as nuances do viver – e é isso que tento transmitir nas imagens que faço. Se você olhar bem, vai perceber os detalhes. Por exemplo, ali você vê que o menino está carregando os carrinhos de brincar na mão [foto das mulheres da família andando na linha do trem]. Essa delicadeza, que pode ser imperceptível para grande parte das pessoas, tem um significado de fato. É o mesmo menino que está aqui [outra foto da família andando na linha do trem]. Mas se você reparar bem, vai ver que aquele rosto não tem a expressão de uma criança. Repare na maneira como ele olha.
Um negócio que me fascina é a espontaneidade ao meu redor. As pessoas reagirem de forma espontânea e você tentar capturar aquela essência. Numa situação como essa, se você me pedisse para fazer um ensaio numa dessas fronteiras, eu iria super motivado. Agora, se você me pedisse para fazer um retrato de alguém – aí começa o bloqueio. Porque a minha forma de fazer um retrato é mostrar uma situação do cotidiano da pessoa. Eu não vou chegar para você e te pedir: fica assim, vira a sua cabeça pra cá, o corpo assim.
Você não dirige [a cena fotografada]?
A partir do momento que faço isso, acredito que vou te manipular para obter aquilo que alguém quer. E esse alguém não sou eu. Como vou fazer um retrato seu, porque um retrato também é íntimo, se nunca te vi? No meu trabalho no Afeganistão, tem uma parte que está concentrada nos retratos, mas ainda não consegui desenvolver isso de uma forma que eu imagino. Por conta da minha própria natureza. Pelo bloqueio que tenho em dizer para as pessoas o que elas precisam fazer. Não sou desse jeito. Eu trabalho de outra forma.
Você pretende voltar esse ano para a Síria e o Iraque?
Em algum momento, sim.
Qual sua opinião sobre a intervenção dos Estados Unidos no Iraque e, mais recentemente, na Síria?
Meus amigos iraquianos em Bagdá com frequência me dizem: “Mauricio, antes da invasão de 2003 nunca tínhamos ouvido falar em carro-bomba, em atentado suicida, em decapitação de estrangeiros”. Todos esses elementos foram incorporados na vida do iraquiano.
É o seguinte: se chego na sua casa, preciso respeitar o seu modo de vida, o seu modo de ser. A partir do momento em que você me dá uma certa abertura, me sinto um pouco mais confortável, mas sempre com respeito. É a mesma coisa nesses países. Por que precisam ir lá meter o dedo para mudar uma situação? Eu não estou justificando o Saddam [Hussein], não estou justificando o [Muammar] Kadhafi e nem outro cidadão. Mas olha a quantidade de ditadores que tem na África: por que os americanos não estão lá, guerreando contra eles? O [Robert] Mugabe, por exemplo, por que não vão lá estabelecer a democracia e a liberdade, já que é essa a propaganda da guerra?
São os interesses. Geopolítica, recursos naturais, a ganância do homem. Mistura isso aí, põe no liquidificador e vê se dá pra descer goela abaixo. Curioso, a gente acha que tem um maluco na Rússia. Mas que tipo de notícia você costuma ter da Rússia? E que tipo de notícia você costuma ter dos Estados Unidos?
É delicado. É o sistema em que a gente vive. O interesse geopolítico que predomina dentro do modo capitalista em que estamos inseridos. Belicista. Coreia do Norte agora.
Você tem vontade de ir para a Coreia do Norte?
Sim, gostaria de ir para a Coreia do Norte para fotografar a vida lá. Seria curioso, no mínimo. Quando olho as imagens de lá, lembro um pouco da minha infância no Brasil nos anos 1980. De uma vida mais calma, mais tranquila. Menos gente na rua. Quando vejo fotos da Coréia do Norte tenho a impressão que estou vendo um álbum de família que ficou anos guardado na gaveta.
Você não tem uma sensação de infelicidade ao ver as pessoas?
Não. Costumo ver majoritariamente as coisas pelo aspecto positivo.
Então você acha que talvez, assim como da Rússia, a gente não tenha um relato acurado da vida na Coreia do Norte?
Acho que não. Nem da China, de Cuba ou do Irã. De nenhum desses países que não fazem parte do sistema. Ou que o questionem de certa forma. Acho que é muito do interesse político manter a hegemonia de dominação estabelecida depois da Segunda Guerra. Em que um país determina quem são seus aliados e trabalha para fazer com que tudo funcione no eixo, desde que sob o controle deles. Acho que vai por aí, vejo por esse caminho.
Mas você colabora com o maior jornal americano.
Então. Para tentar passar um pouco da contradição, não só minha, mas do que eles têm feito no mundo. E aí eu nem diria que colaboro com um jornal americano, mas é a minha afinidade e meu respeito pelo David Furst, editor internacional de fotografia lá, que acredita e vê algo interessante na minha pessoa, no meu trabalho. Conheci o David no Iraque em 2004. Ele era fotógrafo também, ambos trabalhamos no mesmo momento para a AFP. Nos reencontramos em 2007, e, quando decidi sair da agência em 2011, foi uma das pessoas que procurei. Tenho um carinho por ele, que é recíproco.
E não sou fotógrafo deles, sou fotógrafo independente. Não me considero fotojornalista, não quero ter a minha imagem atrelada ao poder. E essa coisa de fotógrafo de guerra também. Esses rótulos que criam, tô fora. Não faço parte disso, não preciso da guerra para justificar a minha existência. Ou talvez sim, vou saber no futuro. Mas isso faz parte do subconsciente de cada um. Procuro não ser mais um nessa toada de reações arbitrárias e não benevolentes em relação à situação que eu fotografo. A partir do momento que você se dá conta de que obtém algo só para si diante do outro, é um negócio que me incomoda. E sempre foi assim, acho que pelo fato de sempre questionar e tentar compreender as situações com um pouco mais de complexidade.
Depende do seu ponto de vista ser o menos incoerente possível ou ser o mais coerente possível. Aí vai longe, porque se a gente for entender como foi estabelecida a imprensa no Brasil, desde a época do Assis Chateaubriand. E a influência dos Estados Unidos na região, não apenas no Brasil, mas na América Latina em geral, na América Central, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, com regimes opressores. É difícil entender por que a gente precisa de mais do que já tem demais, que é essa a forma de viver alimentada pela indústria bélica. É complicado, não sai disso. Quando eu amanheci e soube que o Trump tinha sido eleito me senti um inútil. Como pode?
Você sentiu que tudo o que faz foi em vão?
É. Foi em vão. É delicado.
É uma questão de falar para os convertidos? As opiniões das pessoas não mudam? A complexidade de um país como o Iraque, por exemplo, com todas as etnias e religiões, todos cheios de preconceito uns contra os outros?
É. Traga isso para a América Latina. Aqui o aspecto que existe é o da desigualdade social. Você troca o aspecto religioso pelo aspecto cultural, de ser um país colonizado e não um país colonizador. E tem a desigualdade social.
Temos a polarização social aqui. Mas não somos belicistas.
Ainda não.
É a incapacidade de compreender o outro?
A questão é: será que realmente queremos compreender o outro? Ou será que fingimos que queremos, mas arrumamos mecanismos para que isso não aconteça? Eu não sei. Talvez pela própria experiência de vida, sei que não vou te convencer de algo. Tem que partir de você querer mudar a sua atitude diante de algumas coisas. E para você querer mudar o seu comportamento, precisa de inspiração, ou, talvez, de exemplos. Porque se te forço ou imponho uma mudança de comportamento, isso é uma forma de colonizar a pessoa. E não é por aí o caminho. O Saramago tem essa frase: “Aprendi a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é uma falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro.” Não precisa ter um exército para fazer isso, uma milícia ou o que seja. Basta uma conversa numa mesa de um café que isso pode acontecer de uma forma muito sutil.
Falando em exemplos e inspiração, a lição que aprendi com essa família, de perseverança e de resiliência, foi algo que não me lembro de ter visto até hoje, de ninguém. Uma mulher grávida de sete meses passar 51 dias em uma situação dessas. O nome da exposição tem esse significado: a resiliência desse bebê invisível diante dessa nossa incapacidade de entender o outro. Porque migrações sempre fizeram parte da história humana, só que boa parte delas movida por guerras. E as guerras a gente sabe que têm uma embalagem humana, mas com conteúdo bem mais sólido e visceral em relação aos interesses de um pequeno grupo. Sempre em torno de recursos naturais. No Oriente Médio não é diferente, pois é a região mais fértil em petróleo do planeta. Isso precisa ser dito, precisa ficar claro para as pessoas. Você invadir uma nação sob o pretexto de liberdade e democracia. Acho que a gente precisa trocar o conto na hora de dormir.///
Mauricio Lima é fotógrafo independente. Em 2016 tornou-se o primeiro brasileiro a receber o Prêmio Pulitzer de fotografia pelo seu ensaio sobre os refugiados em busca de asilo na Europa. Foi eleito fotógrafo do ano pela Fotos do Ano América Latina (2015) e pela revista Time (2010).
Cris Veit é editora independente de fotografia e consultora para projetos documentais.
Tags: crise dos refugiados, fotografia, migração