Aparências ou aparições: o filósofo Georges Didi-Huberman comenta a exposição Levantes, em cartaz em São Paulo
Publicado em: 28 de novembro de 2017O filósofo e historiador das imagens francês Georges Didi-Huberman, em entrevista à pesquisadora Lúcia Monteiro, comenta suas escolhas para a exposição Levantes, em cartaz até janeiro no Sesc Pinheiros.
Estudioso do historiador da arte alemão Aby Warburg, Didi-Huberman explicita, aqui, seu método curatorial de, através da montagem de imagens, observar a permanência e a ressurgência de gestos formais que são ao mesmo tempo políticos. O título desta entrevista, Aparências ou aparições?, foi dado pelo próprio filósofo, com o objetivo de ressaltar a diferença entre esses dois aspectos tão atuais das manifestações populares. Resta-nos saber distinguir, depois de Guy Débord e de movimentos políticos organizados por meio das redes sociais e para elas, entre aparência – “enganadora, falsa, ela supõe o simulacro” e aparição – “evento autêntico, impossível de ser reduzido”. Didi-Huberman não dá falsas esperanças: “não tenho a receita”.
A exposição Levantes foi inaugurada em Paris, no museu do Jeu de Paume, no fim de 2016, e está agora em São Paulo, no Sesc Pinheiros, depois de uma escala em Buenos Aires. Você poderia falar das mudanças sofridas em relação à mostra original?
Georges Didi-Huberman: A versão original dessa exposição, exibida em Paris, compreendia inúmeras obras raras ou importantes, como os grandes quadros de Sigmar Polke, que têm seguro e custo de transporte muito altos, infelizmente. Em razão disso, a exposição que viaja constitui cerca de três quartos da original. Mas em vez de encarar isso como uma privação, um defeito, vejo nessa situação uma vantagem: parte considerável da mostra deve ser encontrada in loco, ou seja, de acordo com a história dos levantes – e com as imagens de levantes – específica de cada país. Para mim, é entusiasmante descobrir novos artistas a cada nova cidade por onde a exposição passa. Cada local, em um momento ou noutro, torna-se a capital dos levantes. Em São Paulo há, por exemplo, grandes “clássicos”, como o Manifesto antropofágico, Glauber Rocha, Paulo Freire, além de artistas que me surpreenderam – e que boas surpresas! É o caso de Eduardo Viveiros de Castro (cuja obra teórica eu já conhecia), Clara Ianni, Nuno Ramos e Rafael RG.
A figura do Atlas, que carrega o peso do mundo sobre seus ombros, de braços erguidos, funciona como uma imagem subliminar da montagem que você cria em Levantes, oferecendo uma ligação entre a exposição atual e sua predecessora, Atlas – como levar o mundo nas costas?,inaugurada no Museu Reina Sofía, em Madri, em 2010. O gesto de Atlas é um gesto de levante?
GDH: Atlas é um titã que quis erguer-se contra o imperialismo dos deuses do Olimpo, creio que posso me expressar dessa maneira. Seu irmão é Prometeu, que rouba o segredo do fogo para oferecê-lo aos humanos. Os dois recebem um castigo quando o levante que empreendem fracassa. Atlas deve então carregar a abóboda celeste sobre seus ombros. É uma figura sábia, melancólica e infeliz, que inspirou o grande historiador das imagens que foi Aby Warburg. Depois de ter dedicado uma exposição a essa figura – por meio da prática dos atlas de imagens – no Centro de Arte Reina Sofía, em Madri, imaginei que Atlas um belo dia decide arremessar seu fardo por cima de seus ombros… É daí que surge a própria figura do levante.
A montagem exposta no Sesc Pinheiros nos convida a pensar no estado atual do planeta – da Europa, onde refugiados enfrentam situações terríveis, e do Brasil. Qual foi o principal disparador dessa exposição? Haveria um objetivo primordial de demonstrar visualmente a força das manifestações populares de insurgência e resistência?
GDH: É, é isso. E eu tomo o que você diz ao pé da letra: não se trata de mostrar uma série, tão completa quanto possível, de manifestações populares. Isso seria, aliás, impossível, posto que há levantes por toda parte, o tempo todo. Além do que, o resultado seria provavelmente repetitivo. Trata-se, isso sim, de mostrar, por montagens de imagens, essa “força” que você evoca, a que chamo simplesmente de desejo. Ele se deixa ver em gestos corriqueiros, erguer os braços, por exemplo, e é por isso que a exposição confere muita importância aos gestos humanos que ressurgem aqui e acolá, no espaço e no tempo.
As quatro fotografias tomadas clandestinamente em Auschwitz-Birkenau acompanham seu trabalho há bastante tempo, e em Levantes elas são exibidas com uma força impressionante. Estariam elas na origem desse projeto?
GDH: Não, elas não estavam na origem do projeto, até porque o que elas mostram é um extermínio em massa, e, ali, toda revolta estaria destinada ao fracasso. Mas eu também poderia responder “sim”, na medida em que meu trabalho sobre essas imagens (que já tem dezessete anos, se não me falha a memória) marcou uma inflexão mais diretamente política em meu trabalho de historiador das imagens. Por outro lado, essas imagens falam sim de um levante, ainda que o mais desesperado que tenha existido: o projeto de revolta conduzido por esses prisioneiros judeus que, ao mesmo tempo, quiseram fazer essas fotografias para testemunhar para além de sua própria morte. Aqui, são as imagens que se insurgem e que sobrevivem…
São surpreendentes as relações de equivalência visual entre movimentos tão díspares quanto as greves operárias de Limoges em 1905, os movimentos revolucionários vistos em Berlim em 1919 (em imagens de Willy Römer), os republicanos em Barcelona, em fotos de Agustí Centelles de 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, e as barricadas em Atenas, durante a Guerra Civil, em 1944 (por Voula Papaioannou). Você enxerga diferenças visuais entre manifestações de esquerda e de direita? Ou entre levantes contra formas de opressão e revoltas a favor de projetos coletivos, sejam eles utópicos ou não?
GDH: A cólera invade a todos, pessoas de direita e de esquerda. A questão política torna-se, portanto, a seguinte: para onde exatamente vai essa cólera? Que forma ela toma em cada caso? Já fui criticado por não ter incluído nessa exposição levantes fascistas, que existem, e além do mais são populares. É o caso da Marcha sobre Roma de Mussolini, por exemplo… Mas tenho procurado evitar cuidadosamente os amálgamas. Um punho erguido comunista pode se parecer com um braço levantado fascista, mas não é, de modo algum, a mesma coisa. Para responder bem a sua pergunta, seria interessante comparar a maneira de filmar as massas de Leni Riefensthal (que era nazista e filmava sobretudo do alto) e de Sergei Eisenstein (que era comunista e filmava de muitos pontos de vista ao mesmo tempo).
Aby Warburg criou seu Atlas Mnemosyne trabalhando com reproduções. Na exposição Levantes, há livros, cartazes, filmes, vídeos, fotografias, ou seja, diversas obras liberadas da ideia de “originalidade” ou de “aura”, obras em si reprodutíveis tecnicamente. Tal posição curatorial ganhou algumas críticas. Como você as recebeu?
GDH: Trata-se simplesmente de uma diferença de atitude no desejo de mostrar uma imagem ao público. Digamos que você queira mostrar uma imagem fotográfica: alguns curadores farão questão do vintage, uma tiragem de época, um objeto valorizado ao máximo. Se uma tiragem mais recente não tiver desfigurado a imagem, não vejo problema algum em mostrá-la, pois o que me interessa é a maneira como essa imagem, colocada ao lado de outra, faz sentido para o espectador. Outro exemplo: se eu quero dizer que os poetas são atores essenciais de certos levantes, me interessa muito que o original de Oswald de Andrade possa encontrar-se a poucos metros de obras de Antonin Artaud, Victor Hugo ou Baudelaire. Mas a Biblioteca Nacional da França não quer emprestar os originais de Hugo ou Baudelaire, e eu entendo. Mas ao mesmo tempo faço questão dessa “genealogia poética”. Devo recorrer, portanto, a fac-símiles – sem dissimulá-los, evidentemente.
Levantes apresenta imagens de revolta em um momento em que o choque, a hesitação e a apatia parecem ganhar terreno em detrimento da capacidade de organização. Em suas publicações, você desenvolve a ideia segundo a qual as imagens também nos olham. O que dizem de nós as imagens que você escolheu para a mostra, quando elas nos olham?
GDH: É uma questão ampla demais para que eu possa respondê-la aqui da maneira como ela merece. O que as imagens “diriam de nós quando elas nos olham”? Bem, elas falam de nós aquilo que nós não ousávamos dizer de nossos desejos mais fundamentais, mais potentes, mais escondidos. As imagens nos olham “até o fundo” de nós, claro que com a condição de que saibamos por nossa parte olhá-las. Não se trata de apatia, mas do contrário: é o levantar do desejo, o desejo que se levanta ou se reergue. Não é incompatível com a organização, mas trata-se de um momento que precisa ser considerado sem que se procure organizá-lo ou hierarquizá-lo de imediato. Dito de outro modo: trabalhar sobre os levantes não significa ainda ser capaz de dar a receita organizacional das revoluções.
Fala-se de espetacularização dos movimentos populares na era das redes sociais e de manifestações organizadas quase exclusivamente pela internet. Levantes inclui algumas imagens de manifestações recentes, como as da Praça Tahir, no Cairo, em 2011, em que as redes sociais desempenharam um papel fundamental. Em sua opinião, há semelhanças entre as imagens de levantes antes e depois da internet? A dimensão de espetáculo está sempre presente nos levantes?
GDH: Filosoficamente, uma diferença enorme deve ser estabelecida entre “aparição” e “aparência”. A aparência é enganadora, falsa, ela supõe o simulacro. Já a aparição é um evento autêntico, impossível de ser reduzido: é um raio que corta o céu. A palavra “espetáculo”, sobretudo depois do pensador francês Guy Débord, tende a reduzir toda dimensão visual a uma simples aparência, enganadora ou alienada. De minha parte, acredito que, nos levantes, trata-se em primeiro lugar de aparições. Para que exista política, é preciso que haja uma encarnação, que algo seja posto no corpo e no movimento: uma dimensão sensível (em todos os sentidos da palavra). É preciso que tudo na política se torne visível a todo mundo. De agora em diante, a questão, evidentemente, é saber como produzir aparições e não aparências. Desculpe-me: não tenho a receita. Observo, porém, que em uma mesma manifestação popular pode haver aparências e aparições. Posso me decepcionar com o trabalho das aparências. Mas nada é mais precioso que um evento de aparição.///
A edição impressa da revista ZUM #13 traz uma entrevista com Georges Didi-Huberman feita pelo artista Arno Gisinger sobre as contribuições teóricas, práticas e metodológicas da fotografia em sua obra. Saiba mais sobre a ZUM #13 aqui.
Georges Didi-Huberman (1953) é um filósofo, curador, historiador da arte e professor-conferencista na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais em Paris. Já publicou dezenas de livros sobre filosofia e história da arte, como O que vemos, O que nos olha, Diante da imagem e Invenção da histeria, entre outras. A exposição Levantes está em cartaz no Sesc Pinheiros até janeiro de 2018.
Lúcia Ramos Monteiro é doutora em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3 e pela Universidade de São Paulo. Atualmente, realiza pesquisa de pós-doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP e seus trabalhos envolvem a relação entre cinema e arte contemporânea, filmes de longa duração e cinema expandido.
Tags: Entrevista, exposição, Filosofia, filosofia da imagem