Entrevistas

Deserto do real

Laura Rago Publicado em: 18 de novembro de 2022
Tela da obra Liminal Space, de Egle Saka, 2022. Parte do projeto 10 Desertos de Erros, de Leo Caobelli.

Vivemos numa pandemia de imagens forjadas por uma sociedade descartável, cujo efeito é o esquecimento. Por este ângulo, o excesso de informação e a velocidade com que nos são mostradas no presente imediato minam qualquer possibilidade de experiência. Desse modo, a temporalidade do nosso agora, em que tudo é fugaz e permanente, altera as formas de recepção e da memória, visto que cada acontecimento é imediatamente substituído por outro, sem deixar rastro.

No ecossistema da cultura digital, a imagem ultrapassou o lugar de representação. Ela é o grande campo que ocupamos, onde operam os afetos, a comunicação, a produção de linguagens, as relações interpessoais. Pode-se, afinal, dizer que nossas formas de pensar, existir e agir são mediadas pelas imagens.

Ora, se estamos inseridos em maneiras determinadas do viver que, por si mesmas, são inimigas da durabilidade, a imagem é afetada pela prática de consumo imposta pela obsolescência planejada, que vai da degradação dos dispositivos tecnológicos até o acesso a dados, sites e programas.

Nessa metamorfose de percepção, resultado do processo de virtualização e digitalização da vida cotidiana, uma nova cultura da memória se instala a partir de processos de emulação e de novas possibilidades de reflexão do real.

O artista gaúcho Leo Caobelli levanta essas e outras questões na sua pesquisa intitulada Algum pequeno oásis de fatalidade perdido num deserto de erros, que originou o trabalho colaborativo 8 Desertos de Erros, desenvolvido por meio da arqueologia de mídias obsoletas a partir de imagens coletadas de HDs descartados como lixo eletrônico. “Acredito que os HDs e as mídias obsoletas me interessam justamente por serem parte desses escombros, as sobras de um futuro que vira passado muito rapidamente e que, ao serem retiradas desse seu fluxo de descarte e superação, tentam se constituir ou requisitar seu espaço de ruína, algo que ainda valha ser mantido, e não sobreposto”, comenta Caobelli.

E completa: “Os HDs são parte de um processo político de apagamento. Não temos mais controle sobre o que produzimos; acreditamos que a nuvem guarda o que é nosso, quando ela é um servidor físico de alguém, recebendo energia e cruzando oceanos por cabos submarinos. Coletar esses desertos de erros da obsolescência é uma forma de apontar para uma cadeia de vigilância maior e saber que, como me ensinou o professor Maurício Lissovsky, um grande benjaminiano: ‘Renovar o mundo velho – eis o impulso mais enraizado no colecionador ao adquirir algo novo’ (Benjamin, 1987). O afeto desse renovar o mundo velho é minha forma de ética do sujeito, em um mundo tão mediado pela ética das grandes corporações”.

Tela da obra Efeito eclipse, de Romy Pocztaruk, 2022. Parte do projeto 10 Desertos de Erros, de Leo Caobelli.

No Buraco da Fechadura

O projeto se desdobrou em uma versão ampliada batizada de 10 Desertos de Erros, lançada em setembro deste ano numa plataforma digital. A publicação virtual de net art funciona como um fanzine digital e interativo, contando com 10 trabalhos criados por artistas convidados, a saber, Romy Pocztaruk, Fernanda Medeiros, Gabriel Pessoto, Nicole Kouts, Thomas Kuijpers, Paulo Fehlauer, Joana Burd, Carine Wallauer, Egle Saka e Diego Vidart.

É fato que nossa imersão na hipercultura transformou a forma pela qual produzimos, criamos, nos relacionamos e nos comportamos, assim como comunicamos e absorvemos a informação. E, nesse sentido, a internet é o ponto fundamental para a realização dos 10 Desertos. “Isso se dá por várias razões. Primeiro, porque podemos pensar na disponibilização dos arquivos para artistas espalhados pelo mundo. Poder colocar os arquivos em rede e disponibilizá-los a distância é parte fundamental do processo. Segundo, diria também que a internet, essa rede que possibilitou a circulação de imagens de forma tão intensa como nunca antes, é também parte do pensamento do projeto. Imagens que circulam, que se trocam, que se sobrepõem, que criam pontes entre umas e outras é central para o trabalho. Pensar a imagem não só em sua feitura, mas nas suas formas de circular. E, por fim, a internet é necessária para que essas imagens sejam acessadas novamente, nos zines, agora ressignificadas por um grupo maior de artistas”, comenta Caobelli.

A ideia é que a exposição assuma uma outra forma no ambiente físico e ocupe outros espaços, além do virtual, com ações educativas e oficinas para o público. 

Segundo Leo Caobelli, “no 8 Desertos, o procedimento operatório principal foi o de delegar um HD por artista participante. Queria entender o que cada pessoa encontrava em HDs que eu já conhecia tão bem. Como o universo de imagens de cada artista estava reduzido ao disco de alguém, queria especialmente entender o quanto poderíamos trabalhar narrativas x anonimato. O que era universal tocava a todos nós como representação em um HD qualquer e passava a dar pistas de seu antigo dono ou dona, mas sem nunca explicitar quem teria sido essa pessoa. Já quando pensei no argumento dos 10 Desertos, queria embaralhar as imagens, criar um processo no qual fosse mais possível se perder em uma rede de imagens maior, sem saber ao certo de onde cada imagem vinha. Se tivesse algo de norteador a destacar como diferença [entre um e outro], seria o seguinte: no 8 Desertos, a navegação, mesmo à deriva, se dava em um oceano finito e mapeado, enquanto no 10 [Desertos], esse deslocamento se dava em um deserto em expansão, onde mais imagens podiam ir sendo descobertas quanto mais se navegasse nas dezenas de HDs com imagens embaralhadas”, conta.

Se a arte tem a capacidade intrínseca de registrar e captar a sensibilidade de seu tempo e despertar pela via sensível a percepção tantas vezes encoberta pelo senso comum, o projeto colaborativo 10 Desertos de Erros aponta caminhos que estão à altura dos debates de uma nova ordem social pautada pelo contexto pós-digital, em que a vida conecta físico e virtual.

A curadora e jornalista de arte Laura Rago conversou com três artistas que participaram do projeto 10 Desertos de Erros: Nicole Kouts, Gabriel Pessoto e Romy Pocztaruk. Leia abaixo.


A Anunciação dos Anjos Digitais, de Nicole Kouts

Tela da obra A Anunciação dos Anjos Digitais, de Nicole Kouts, 2022. Parte do projeto 10 Desertos de Erros, de Leo Caobelli.

A coleção de imagens e a memória são alguns dos sentidos que abastecem as obras expostas em 10 Desertos dos Erros. Para a criação de A Anunciação dos Anjos Digitais, você parte de um hábito antigo de colecionar imagens recolhidas em sebos, delimitando uma temática nos recortes e transportando-os para um caderno (físico). Ao mesmo tempo que traz esse comportamento para sua obra, você assume também a ótica do voyeurismo digital, quando é estimulada pelo íntimo alheio, e se questiona sobre a invasão de uma privacidade descartada. Como foi esse processo e como esses debates aparecem nesse trabalho?


Nicole Kouts: O convite para integrar o Deserto de Erros e criar um trabalho a partir de conteúdos de HDs descartados foi estimulante e provocativo, por ser um modo de buscar imagens que é muito próximo do meu processo de pesquisa, garimpando revistas em sebos, materiais gráficos e álbuns de fotos do século passado, e também em arquivos fugazes de uma camada anterior da internet que já está em ruínas. Apesar das diferenças entre materialidades analógicas e digitais, o sentido é o mesmo: trabalhar com memórias recuperadas, restauradas, reeditadas. Essa proposta aponta para infinitas combinações e recombinações no que diz respeito à criação de materiais visuais. O colecionismo de imagens e o voyeurismo, mesmo que de forma involuntária, são hábitos cotidianos não exclusivos de uma prática artística. São reflexo de uma existência permeada pelos meios digitais, e, ainda que não sejam fruto desses meios, atualmente são parte integrante de seu funcionamento. É intrigante pensar que a existência hoje implica a produção automática de matéria digital e memória visual.

As imagens dos HDs foram compartilhadas pelo sistema de computação em nuvem. Isso despertou uma pergunta que você já se fazia há um tempo: “Se existissem anjos nas nuvens digitais, quais seriam as suas formas?”. Além disso, analisando as imagens, você notou que as pessoas, em geral, guardam momentos de celebração em seus arquivos digitais. Isso fez com que você partisse dessa temática para selecionar elementos que compõem a imagem de sua obra. Como esses resgates aparecem conceitualmente na produção?

NK: A metáfora da nuvem como espaço de armazenamento me parece muito misteriosa. Nuvens são elementos da natureza que pairam acima, transitórios, impermanentes. Narrativas milenares associam as nuvens ao sagrado. São a morada de deuses, de anjos. São formas ambíguas entre o mundo celeste e o mundo terreno. Penso, então, em uma correspondência com as nuvens computacionais, às quais confiamos a função de abrigo seguro, apesar de invisível e intangível, para nossos mais valiosos registros e dados: uma confiança de fé, como se vê em muitos sistemas de crenças. A disponibilização dos materiais dos HDs através de um serviço de nuvem evidenciou essa questão. Recordações preservadas como informação, salvas, imagens “iluminadas” de situações que, em sua diversidade, apontam recorrências. Os registros de momentos de celebração que encontrei provaram-se as imagens mais divinas e divinatórias para refletir sobre esse tema. Há, também, uma discrepância paradoxal entre a materialidade de um computador antigo, inutilizado e impotente à beira do lixo e a imaterialidade reluzente e potencial de seus arquivos. É um encadeamento complexo de caminhos e acessos daquilo que não se vê, mas se sabe que existe. É possível pensar nesses HDs como protonuvens, espaços informacionais ainda localizados ao nosso alcance, na própria máquina, offline, ao contrário dos dados que habitam servidores distantes, cuja localização no tempo-espaço é imprecisa. Se deuses e anjos habitam as nuvens no céu, o que reside nas nuvens computacionais?

É um desafio vencer a estética do feed das redes sociais – com sua rolagem vertical, de cima para baixo – e a velocidade imposta por essas estruturas, que tem como efeito colateral o esquecimento. Você escapou dessa lógica padronizada ao propor uma leitura horizontal, em que a visualização é mais ampla, e insere outra camada na obra a partir da ferramenta de lupa, permitindo uma relação diferente do espectador com a obra e possibilitando outro tempo de contemplação. Fale um pouco sobre isso.


NK: O escape da lógica de visualização das redes sociais começa com o próprio website do Deserto de Erros, onde o trabalho está hospedado. O site foi programado de modo a comportar e articular diferentes propostas artísticas, o que estabelece um microuniverso de navegação diferente do convencional. Desse modo, pude pensar A Anunciação dos Anjos Digitais (2022) como um painel digital horizontal feito com fusões de mais de 50 imagens, sem me preocupar se estaria apropriado para postar em um feed pré-formatado. É um espaço vasto de possibilidades em termos de visualização, navegação e interação. Uma das principais referências para pensar na construção da imagem foram os antigos painéis de arte sacra feitos sob encomenda para catedrais. São narrativas de grandes proporções, que propiciam diferentes modos de visualização ao preencherem o espaço físico disponível. São desafios semelhantes de uma relação entre tempo e espaço. Nesse caso, propus uma leitura horizontal, a partir do movimento lateral do painel, que em nenhum momento aparece por completo na tela. O elemento da lupa, que amplifica os detalhes dentro de um pequeno círculo, confere a quem está navegando a autonomia de perscrutar a imagem.

Tela da obra A Anunciação dos Anjos Digitais, de Nicole Kouts, 2022. Parte do projeto 10 Desertos de Erros, de Leo Caobelli.

Você utilizou a linguagem do programa Photoshop para desenvolver a colagem digital, uma vez que o considera mais “rústico”, artesanal e controlado se comparado, por exemplo, ao uso de sistemas de inteligência artificial para a produção de obras de arte. O que muda nessa abordagem de linguagem nos seus processos de criação?

NK: Usei o termo “rústico” sem querer, mas vou aproveitar para aprofundar o raciocínio. A escolha do programa se deu por hábito, familiaridade, e por oferecer as ferramentas necessárias para realizar uma fusão manual-digital entre as imagens que compõem A Anunciação dos Anjos Digitais (2022). É curioso pensar em métodos “artesanais” de trabalhar com um programa de computador, que por si só já é repleto de mecanismos inteligentes e automatizados. Os sistemas de IA em desenvolvimento hoje em dia, com atualizações intermináveis e modos de operação ocultos, ganham os holofotes e provocam um deslumbramento que me desperta dúvidas. Há incontáveis sistemas digitais que em pouco tempo caíram em desuso, uma série de mídias, programas e procedimentos que não tiveram tempo suficiente de existir e de gerar reflexão. Essas lacunas são uma questão filosófica importante para mim e isso repercute em meu trabalho. Parece que há algo errado quando percebo que websites, jogos e conteúdos que compuseram o imaginário da minha infância no início dos anos 2000 estão sendo apagados rápida e silenciosamente, sem deixar registros. É um efeito de percepção que torna o passado recente mais distante e o futuro próximo mais presente.

Estamos imersos em bolhas algorítmicas, que acabam modelando nossos padrões estéticos e de comportamento, entre outros. De que forma isso se reflete na sua produção?

NK: Isso se dá em forma de inquietação e substrato para pesquisa. As chaves possíveis para decodificar esse fenômeno são diversas; eu me interesso especialmente pela ideia da imagem digital como meio de transporte de crenças ancestrais para tecnologias contemporâneas. O tráfego dessas imagens, dentro de limites impostos ou escapando deles, é parte dessa reflexão. Nesse emaranhado de tensões entre fantasmas e avatares, memórias e dados, encontro muitas questões em aberto.

O contexto e o conteúdo da net art convive com variáveis que alteram as formas de recepção, percepção e experiência, reconfigurando os ambientes expositivos tradicionais e o acesso à arte. Como você avalia os projetos artísticos virtuais?

NK: Há uma complexidade inerente à circulação de informações, que é própria dos meios digitais e que faz parte, também, da net art. Cada espaço escolhido para abrigar um trabalho estabelece um sistema específico de navegação e interação. Atualmente, a navegação online confunde-se com a navegação pelas redes sociais. Escapar da lógica desses ecossistemas passa por escapar desses ecossistemas em si, ocupando espaços não (mais) hegemônicos, tais como websites particulares. Nesse sentido, a net art assume papel fundamental ao permitir experimentações com essas alternativas. Para circular pelas redes sociais, por exemplo, como forma de divulgação, o trabalho A Anunciação dos Anjos Digitais (2022) teria que ser adaptado para isso. É uma problemática conceitual e formal que se apresenta como uma negociação constante: ocupar circuitos mais acessados, estabelecendo um diálogo mais amplo com as pessoas e públicos que participam deles, ou contornar esses circuitos para escapar da lógica predominante e explorar caminhos menos percorridos?

Nicole Kouts (São Paulo, 1997) é artista multimídia. Investiga a multidisciplinaridade das imagens como meio de transporte de crenças ancestrais para tecnologias contemporâneas. É graduada em Artes Visuais e pós-graduada em Cenografia e Figurino (Centro Universitário Belas Artes de São Paulo). Integrou exposições, in loco e online, em mais de 20 países.


Efeito Eclipse, de Romy Pocztaruk

Tela da obra Efeito eclipse, de Romy Pocztaruk, 2022. Parte do projeto 10 Desertos de Erros, de Leo Caobelli.


A fotógrafa gaúcha apresenta o fanzine Efeito Eclipse, com uma série de imagens que vão do universo espacial da Nasa até arquivos ufológicos, além de um vídeo manipulado.

Faz tempo que você vem coletando imagens da Nasa, buscando imagens das missões e seus bastidores. Essa pesquisa foi o pontapé inicial para a obra Efeito Eclipse, que cruzou o seu banco de imagens com as dos HDs descartáveis de Caobelli. Como se deu esse processo?

Romy Pocztaruk: Quando o Leo me convidou para o projeto, logo decidimos trabalhar com imagens do espaço por ser uma pesquisa que já venho desenvolvendo há alguns anos e chegamos a um fato curioso, que foi o Projeto Eclipse, a missão da Nasa que lançou 14 foguetes de uma base montada na praia do Cassino no litoral gaúcho. Esse fato abriu caminho para trabalharmos com um cruzamento entre nossas pesquisas através de materiais coletados de diversas missões espaciais. A estratégia de expografia partiu do desejo de pensar as imagens num formato de fanzine digital, revelando os bastidores dessas missões como um gabinete de curiosidades. É certo que muitas das imagens contemporâneas, sobretudo as digitais, têm se aproximado da estética de ficção científica, representando a ausência de autenticidade do real dos nossos tempos.


Na pesquisa de Efeito Eclipse, pode-se dizer que há uma busca de uma construção de narrativas imagéticas que nos leva para outro mundo, como se a verdade estivesse lá fora?

RP: Esse fetiche relativo ao que “está lá fora”, no desconhecido, é o motor da ficção científica, que imagina novas possibilidades de futuro através de especulações criativas para dar conta da nossa necessidade de prever o futuro. Mas acho que, no caso do Projeto Eclipse, a construção narrativa acaba nos trazendo para o nosso mundo com a pergunta: Por que investir na construção de outros mundos enquanto temos este aqui com tantas possibilidades?


Como a arte digital pode mover os afetos, fazer aflorar os sentimentos e provocar estados de alerta se vivemos numa profunda desigualdade digital em que muitas pessoas têm dificuldades de compreender e utilizar recursos da tecnologia no ambiente virtual?

RP: Estava lendo uma pesquisa que apresentou um dado curioso: mais de 30% da população brasileira não tem acesso à internet. É um número muito alto considerando que acreditamos viver numa realidade cada vez mais sobreposta pelo mundo digital. Então a rede que parece ser uma possibilidade de inclusão também é uma exclusão para aqueles que não têm acesso a ela ou não dominam todas as suas ferramentas. Acredito que a arte digital opera nessa mesma lógica, de inclusão daqueles que têm acesso e dominam sua lógica e de exclusão dos que não participam desse universo.

Tela da obra Efeito eclipse, de Romy Pocztaruk, 2022. Parte do projeto 10 Desertos de Erros, de Leo Caobelli.


Vivemos numa sociedade de excesso de imagens, em que tantas delas se tornam descartáveis (e manipuláveis). Como você enxerga a relação que estabelecemos com as imagens hoje e, neste sentido, com a memória?

RP: Se por um lado vivemos um cotidiano marcado pelo excesso de imagens em velocidade vertiginosa que nos anestesiam e produzem subjetividades hegemônicas, também cada vez mais temos a necessidade de retomar o passado, revisitar a memória para produzir diferenças em meio ao colapso de informações que nos bombardeiam todos os dias. Vejo, então, que as imagens hoje têm essa ambiguidade e também são formas de construir processos de singularização em meio à overdose.

No contexto da pós-fotografia, o que mudou no seu processo e na forma como você vê a fotografia?

RP: Vivemos na era dos pós-tudo, e isso muda radicalmente a maneira como nos relacionamos com as imagens, com as informações e com o mundo. Nesse lugar onde tudo é “dúvida” também temos que duvidar do que entendemos como fotografia e como verdade. Por que produzir mais imagens em meio ao excesso em que vivemos? Qual o sentido das imagens? Em meio à dissolução de tantas certezas que experimentamos na contemporaneidade, acredito que temos de reaprender a olhar. Vejo, então, a fotografia dentro do meu processo criativo, como uma possibilidade de pôr ordem no visível, organizar a experiência e trazer o mundo entre nós.

Para terminar, gostaria de saber se você tem algum novo projeto no horizonte.

RP: Estou trabalhando no roteiro de um novo filme para completar uma trilogia que se iniciou em 2018, com o curta experimental Safira. A ideia do projeto é criar universos visuais e sonoros onde artistas convidados possam habitar. A criação parte da imaginação de processos de “fim do mundo”; associados a teorias queer e decoloniais, projetando futuros possíveis nos quais a arte é um dos rastros deixados pela humanidade. O projeto conta com uma série de colaboradores, entre eles Caio Amon, Daniel Galera, Marcelo Cabral, Filipe Catto e Valéria Barcellos. Além dos filmes, o projeto traz um álbum com as músicas originais criadas em parceria com o compositor Caio Amon, que está online no link: https://www.blue-echos.com/.

Romy Pocztaruk (Porto Alegre, 1983) é mestre em Poéticas Visuais pela UFRGS. Apresenta proposições poéticas que partem do cruzamento entre diferentes disciplinas, como ciências e história, com o campo das artes visuais e do cinema.



Questões de Estilo, de Gabriel Pessoto

Tela da obra Questões de estilo, de Gabriel Pessoto, 2022. Parte do projeto 10 Desertos de Erros, de Leo Caobelli.

Em Questões de Estilo, o artista foca seu olhar nas texturas, ilustrações e elementos gráficos presentes nas imagens dos HDs, servindo de ferramenta para pensar sobre questões de gênero, classe, tecnologias têxteis e influências estrangeiras.

Observando os HDs, você deteve seu olhar nas manifestações estéticas de objetos decorativos e roupas, entre os anos 2005 e 2012. Se a estética é uma construção histórico-social, ela se orienta, portanto, a partir das práticas culturais do seu momento presente. Nesse sentido, como a cultura visual contemporânea, norteada pela produção de imagens nas redes, serviu de referência para a produção da obra Questões de estilo?

Gabriel Pessoto: Questões de estilo é um trabalho que lida com a seguinte contingência: desenvolver uma proposta a partir de um montante de imagens enorme, mas limitado a alguns HDs de uso doméstico do começo dos anos 2000. O recorte temporal evidencia uma estética que já não é mais vigente, embora pouco distante. Ao observar o resultado da proposta, penso que fui muito sugestionado pela lembrança daquele momento, daquele estado de coisas que também vivi, para encontrar o formato de apresentação do trabalho – uma espécie de jogo que permite a interação, a movimentação de algumas imagens, para a criação de uma composição particular. Essa dinâmica remete a uma internet anterior a esta que vivenciamos hoje, em que os jogos online operavam a partir de poucos recursos. Muitos dos jogos, naquele contexto, se baseavam na escolha da jogadora ou do jogador como principal fim: como o avatar se parece? Quais as cores? Quais os elementos de estilo? Como essa figura se veste? Assim, o trabalho transita por esses cruzamentos temporais. Por um lado, parafraseia uma estética e uma lógica de um passado recente. Por outro, só tem seu sentido completo graças a esse pequeno distanciamento no tempo. Esse deslocamento nos faz perceber a forma e também ressalta o que mudou em termos de estética e gosto – ou, ainda, o que permanece.

Quando falamos de estética, quase sempre nos referimos ao belo ou ao gosto. No entanto, mais do que isso, estética é manifestação das aparências, do comportamento e das experiências históricas. Na obra, você evidencia um repertório estético de um passado recente, que nos possibilita pensar o lugar da fotografia na sociedade atual. O que mudou de lá para cá?

GP: Fazer essa imersão nesses HDs domésticos, de 10, 20 anos atrás, evidenciou empiricamente um dado já sabido: nossa relação com a produção de imagens mudou muito. Isso tem a ver com os dispositivos disponíveis para a criação de imagens, mas também com as dinâmicas e as utilidades dessas imagens em plataformas e também na construção de cultura e na participação de uma experiência coletiva online. Noto que, no momento em que foram criados os arquivos com os quais trabalhamos, as fotografias eram tiradas em situações mais específicas. Mesmo já sendo possível fotografar digitalmente, os eventos especiais eram privilegiados: viagens, aniversários, festas de família e encontros de amigos ou de familiares. Era um momento em que as redes sociais ainda não tinham a presença que têm hoje, ou seja, além da questão técnica, o escoamento e a finalidade dessas fotografias eram diversos. Um único dispositivo criador de imagens circulava por diferentes mãos, a mesma câmera cumpria diferentes funções de registro e expressão. Destaco também que um volume expressivo de imagens encontradas nesse acervo já é fruto da navegação online, ou seja, a coleção de dados visuais nem sempre era produzida de forma autoral e recebia também itens anexados e colecionados. Penso que, em parte, esse cenário se manteve consistente de lá pra cá, mas em uma escala muito ampliada. Além dos dispositivos móveis, com câmeras que permitem que qualquer instante seja registrado, rompendo um pouco do privilégio da imagem em eventos pontuais, podemos pensar do ponto de vista da composição dessas imagens. Um exemplo disso são as selfies, tão comuns ao nosso tempo, mas que há bem pouco tempo eram raras.

Tela da obra Questões de estilo, de Gabriel Pessoto, 2022. Parte do projeto 10 Desertos de Erros, de Leo Caobelli.

Sua pesquisa artística se dá, muitas vezes, pela relação entre as mídias obsoletas e a tecnologia, e também pelo diálogo entre o universo analógico e o digital. Poderia me contar um pouco mais sobre o que o levou a estudar essas relações?


GP: Penso que esse interesse tem bastante a ver com o recorte histórico no qual cresci e aquele em que nos encontramos. Sempre gostei muito de olhar imagens, dos objetos decorativos de casa e ilustrações dos livros infantis até as imagens em movimento das telas digitais. Crescer ao longo dos anos 1990 e início dos 2000 permitiu que eu observasse um processo muito acelerado de digitalização da cultura, tal como o trânsito das imagens por diferentes mídias e suportes. Vi o mesmo filme sendo transmitido na TV, em VHS, em DVD, em diferentes formatos de arquivo digital e, por fim, em streaming. Da mesma forma, a mídia impressa e a fotografia caminharam para formatos digitalizados e, nesses fluxos, as imagens vão se transformando em visualidade e materialidade, assim como nossa relação e nossa interação com elas variam de acordo com a interface.

Outro ponto que me parece pertinente salientar é o recorte de repertório visual ao qual recorro para pensar nessas relações: imagens mundanas, que nos atravessam em situações cotidianas, objetos estéticos que não estão necessariamente agenciados no campo da arte. Essa escolha se dá por conta da minha experiência pessoal – em que a relação com a história da arte oficial só se deu mais tarde, mas sobretudo pela crença no poder dessas visualidades na construção de subjetividades, memórias, afetos, desejos e valores.

O glitch das imagens encontradas nos HDs aparece na obra como um tecido digital, contrapondo-se aos padrões de estilos das figuras presentes na obra e ressaltando dicotomias entre passado e presente, feio e belo. Como surgiu a ideia de criar essa camada de fundo?

GP: É interessante notar a relação entre padrões têxteis e a composição das imagens digitais, pois ambos se valem de pontos, de estruturas menores tramadas e articuladas a partir de uma determinada programação. A conservação dos arquivos digitais, diferentemente daquela das mídias físicas e tradicionais, demonstra ser bastante delicada, pois grande parte do material já apresenta sinais de corrompimento ou dificuldade de leitura. Embora eu já imaginasse que o trabalho tenderia a discutir questões de gosto, da experiência doméstica mediada pela tecnologia (sobretudo pela natureza das imagens com as quais lidamos, que são fotografias digitalizadas), da construção de memória e subjetividade a partir de objetos estéticos cotidianos, eu não tinha ideia do tipo de material que encontraria. Tive a sorte de deparar com um conjunto de imagens danificadas em que grandes áreas já não passavam de ruído digital, de glitch. Pareceu-me que essa trama de pixels funcionaria bem como um suporte, uma superfície que remete a um tecido sobre o qual esses itens decorativos do trabalho poderiam ser articulados e compostos. Questões de estilo investiga essa negociação entre elementos estéticos e decorativos, entre a mídia física e digital, pois existem contaminações: uma cultura visual tradicional informa o design das interfaces eletrônicas, e vice-versa. Portanto, não pude deixar de usar esse material tão precioso, esse tecido virtual.

Falando nisso, a interface do jogo é uma camada intermediária utilizada como ferramenta para interação do público com as figuras isoladas por você. Você acha que a arte é um objeto que pede para ser experimentado esteticamente?

GP: Essa foi uma das minhas primeiras experiências desenvolvendo um trabalho que se dá exclusivamente online, então resolvi explorar as potencialidades desse formato. Um encontro com os trabalhos do 10 Desertos de erros é mediado, necessariamente, por uma navegação online. Sou um entusiasta da imagem, do prazer retiniano. Então, não penso que a interação é um valor em si; ela pode ser o trabalho, tal como uma porção de outras experiências diversas de abordagem no fazer artístico. Questões de estilo aposta nessas duas frentes. Existe a experiência de contemplação da coleção de imagens propostas, mas convida à seleção, à escolha, ao rearranjo, como é típico das questões de gosto. Dessa forma, o sentido do trabalho é experimentado a partir da ação de cada visitante.

Na obra há uma leitura crítica da iconografia circunscrita naquele recorte de tempo, o que, por si só, traz um repertório de intenções e características de uma época. Os elementos retirados das imagens são testemunhos que contribuem para entendermos algumas questões, como gênero, classe, tecnologias têxteis e influências estrangeiras. Fale um pouco sobre isso.


GP: A coleção de texturas, ilustrações e elementos gráficos presentes nesses itens cotidianos serve como uma ferramenta para pensarmos as questões que você destaca. Um exemplo bastante nítido tem a ver justamente com gênero, pois as imagens atreladas ao masculino e ao feminino explicitam o entendimento da performance dessas identidades. De um lado, laços cor-de-rosa, figuras idílicas, flores; de outro, menções a esportes radicais e dragões. No entanto, apesar dessas inferências possíveis, só nos resta a especulação. O recorte de elementos visuais descolados do contexto original e destacado no trabalho opera de forma dialética e convoca não só à interação mecânica, mas aos processos íntimos de entendimento e de leitura dessas imagens, dessas histórias.

Gabriel Pessoto (Jundiaí, 1993) é graduado em Produção Audiovisual (PUCRS) e pesquisa o trânsito de imagens entre mídias digitais e analógicas, do têxtil ao GIF, observando como visualidades cotidianas incidem sobre a intimidade no processo de construção de desejos e memórias. ///



Leo Caobelli (Pelotas, 1983) é artista visual e trabalha principalmente nas áreas da fotografia, vídeo e instalação. Graduado em Jornalismo (2003), pós-graduado em Fotografia (2012), mestre (2017) e doutorando em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS.


Laura Rago (São Paulo, 1984) é pesquisadora, curadora independente e jornalista de arte graduada em história e pós-graduada em Jornalismo Cultural e em Arte: Crítica e Curadoria.