Entrevistas

Cabelo é memória

Meneson Conceição & André Santos-Bispo Publicado em: 20 de fevereiro de 2025
Da série Corte de potência, de Meneson Conceição, 2004

O conceito de “afrografias da memória”, cunhado pela pensadora carioca Leda Maria Martins, defende o corpo como um arquivo vivo, no qual as oralituras das memórias são afrografadas a partir de experiências ontológicas de pessoas negras em seus contextos socioculturais. Ou seja, a epiderme é uma das camadas que “no corpo o tempo bailarina”, vitalizando as oralituras circunscritas nas memórias e nos gestos – isto é, nas performances existenciais em que as sabenças ancestrais se manifestam em pleno ato potência, reatualizando-se no corpo da pessoa negra.

O jovem fotógrafo soteropolitano Meneson Conceição, nascido e ainda vivendo na Cidade Baixa de Salvador, utiliza a câmera fotográfica como um instrumento de reimaginação, fabulação e construção de narrativas visuais sobre afrografias negras.

Em sua série Corte de potência, Conceição não apenas investiga, em fotografias guardadas em álbuns de seus familiares, os contextos comportamentais decorrentes de imposições estéticos racistas sobre os corpos e subjetividades de pessoas negras, como também busca resgatar as afrografias de si e de outros homens negros.

Meneson Conceição, ao mergulhar nesses arquivos fotográficos, além de criar novos imaginários com sua câmera, propõe um educar para a reimaginação e para o direito à memória crítica, política e simbólica.


Da série Corte de potência, de Meneson Conceição, 2003

Você nasceu e vive na Cidade Baixa de Salvador. Qual é a sua primeira memória de uma referência fotográfica? Você se lembra de quando sentiu, pela primeira vez, o peso de uma câmera fotográfica em suas mãos?

Meneson Conceição: A minha primeira memória de referência fotográfica vem de âmbitos familiares e territoriais. Acho que o fato de morar na Cidade Baixa contribuiu muito para essa construção da minha visualidade, da minha visão sobre o meu povo. Lá, minha memória é marcada por imagens de pessoas negras em momentos de lazer, vivendo o ócio. Minha família sempre teve o hábito de assistir a programas sensacionalistas.  A mídia de massa me bombardeava com imagens de pessoas negras em situações de extrema pobreza, vulnerabilidade, subalternidade ou violência. No entanto, o que eu via no cotidiano do meu território era o oposto. Claro que havia exceções, mas na maior parte do tempo, eu enxergava pessoas negras em momentos de descontração. Sempre enxerguei a beleza do ordinário na Cidade Baixa. A Cidade Baixa, onde fui criado, é uma região banhada pelo mar, repleta de praias, pontes e praças. Minha família frequenta esses espaços, e eu via pessoas negras felizes, crianças pulando da ponte para o mar, muitos sorrisos e diversão. Havia beleza naquilo. Desde pequeno, eu queria mostrar essa realidade para o mundo, levar essa visão além do meu bairro. Uma visão pouco discutida dentro da minha realidade, pouco realçada e valorizada. O ócio e a beleza não chegavam para mim na mesma proporção que a violência e a subalternização. Esse ordinário da Cidade Baixa tornou-se uma referência fotográfica para mim. Consigo imaginar uma fábula onde pessoas negras ocupam lugares que, historicamente, não lhes foram atribuídos: autoestima, poder, felicidade e não-violência. Meu território influenciou muito minha produção, deslocando a população negra dos estigmas da violência e da subalternidade para outros espaços, de empoderamento, autoestima, humanidade, poder.

Minha família também foi uma referência, mas em um sentido mais afetivo. Sempre convivi com mulheres vaidosas, cuidadosas com seus cabelos, unhas, maquiagem e pele. Eram sete irmãs e sete irmãos, e essas mulheres tinham um cuidado mútuo admirável. Minha avó, que era como uma mãe para todos, reunia a família em sua casa, especialmente na cozinha, onde esquentava o ferro para alisar os cabelos das filhas e netas. Independentemente de tudo, existia uma vaidade. Esse espaço era cheio de afeto, beleza e autocuidado, um ponto de encontro repleto de amor e imagens poderosas de mulheres fortes e vaidosas. Esse lugar da vaidade dentro de casa me balança muito, eu realmente admiro a beleza da minha mãe, da minha avó e minhas tias, o núcleo feminino dentro de casa. E, para além de uma referência, é uma herança imaterial que sempre me foi passada, de que por ser “neguinho” eu sempre tinha que andar arrumado e cheiroso. Minha avó e suas joias, minha mãe e seus cabelos, esses detalhes sempre estiveram na minha mira, desde pequeno.

Além do território e da família, há também a influência da fotografia em si. Meu pai biológico era fotógrafo, e desde pequeno eu tinha contato com negativos, mesmo sem entender seu significado. Ficava fascinado com o contraste de luz e sombra, como uma imagem aparecia quando exposta à luz. Eu brincava com a câmera e a filmadora que ele tinha, encantado com o que aqueles equipamentos podiam criar. Mais tarde, entendi o poder dessas ferramentas como instrumentos de comunicação na minha vida. Desde criança, eu era atraído pela fotografia. Minha avó, amante dessa arte, sempre teve uma câmera digital em casa. Eu adorava aparecer nas fotos e criar performances para registrar. Mais do que documentar a rotina, eu gostava de encenar e capturar momentos que eu mesmo criava, sempre me sentindo um pequeno artista. 

A Cidade Baixa também me influenciou pelas cores e elementos que ela oferece. Vejo o verde das plantas, o azul do céu e do mar, o amarelo e o branco do reflexo na areia, o vermelho nos carros e nas placas, e as cores vibrantes e ao mesmo tempo frias das feiras. Os elementos presentes principalmente na praia me fascinavam.

Algo que sempre me chamou a atenção foi o tom de pele das pessoas, especialmente da comunidade pesqueira e dos ambulantes que passam o dia expostos ao sol. Esse tom retinto, uma pele fosca e brilhosa, é algo único. E acredito que carrego essa visualidade do tom de pele desses corpos para a minha fotografia hoje.


Fale sobre o significado do nome da série Corte de potência e como esta produção foi desenvolvida a partir da pesquisa em arquivos fotográficos presentes em álbuns de sua família.

MC: O nome Corte de potência é objetivo e genuíno, refletindo uma percepção pessoal profunda. A escolha desse título vem da ideia de que, ao não cultivar meu cabelo, eu negava minha própria identidade, minhas origens e minha centralidade, que acredito ser uma das coisas mais valiosas do ser humano. Esse ato representava um medo do novo, das possibilidades e, sobretudo, do enfrentamento do mundo. 

Na minha família, o cabelo sempre foi visto como um símbolo de poder, especialmente entre as mulheres. Minha mãe valorizava cabelos longos, frequentemente usando megahair, enquanto minha avó mantinha cachos bem cuidados ou seu cabelo alisado. No entanto, para os homens, o hábito era cortar o cabelo, seguindo uma norma que parecia natural, mas que, com o tempo, percebi estar ligada a um contexto histórico mais amplo. 

Estudando a história do Brasil e a formação do sujeito afro-brasileiro, compreendi como o cabelo crespo foi, durante séculos, alvo de discriminação na visão eugenista dos colonizadores europeus. Contudo, o cabelo também era – e ainda é – um instrumento de proteção, estratégia de sobrevivência e resistência política. A prática de cortar o cabelo ganhou para mim outro significado: comecei a me perguntar se, ao fazê-lo, eu estava colaborando com essa narrativa histórica de apagamento.

Mesmo na infância, esses questionamentos, embora imaturos, eram transparentes. Sempre senti uma estranheza ao não cultivar meu cabelo e me perguntava como eu seria com ele. Essa ausência gerava uma dor e uma inquietação que só entendi melhor na adolescência. 

O nome e o projeto, Corte de potência, representam muitas coisas. De forma objetiva, trata-se da percepção do cabelo como um elemento poderoso na construção da identidade afro-brasileira. De forma subjetiva, reflete um processo de apropriação da minha própria narrativa e a luta para superar o hábito familiar de cortar o cabelo entre os homens. 

Assim, o título da série foi escolhido de uma forma que conseguisse brincar com a força simbólica do cabelo crespo como elemento de resistência, identidade e poder, além de expor a ausência dele como algo que provoca reflexões e ressignificações profundas em mim.

O principal motivador da intervenção no acervo da minha família foi uma pergunta central, quase motora, para o meu projeto: Eu realmente não tenho nenhuma memória do meu cabelo grande, ou isso é apenas algo que inventei? Será que nunca tive cabelo grande, ou não consigo lembrar por conta das circunstâncias da vida? 

Essa dúvida, tão forte quanto a aparente certeza de nunca ter tido cabelo grande, tornou-se o eixo que me levou a explorar meu passado. A tensão entre essas incertezas e certezas, ambas igualmente intensas, foi o que me impulsionou a buscar respostas nos arquivos familiares, pois a imagem tem o poder de marcar e congelar o tempo. Minha estratégia, então, foi mergulhar nas fotografias da família, na tentativa de resolver esse conflito interno. 

O processo de acessar os arquivos de imagem foi assustador. O medo de não encontrar nenhuma foto com meu cabelo grande gerava em mim uma angústia profunda. A ausência de registros seria uma confirmação de uma história que me assombrou por anos.  Esse mergulho no acervo trouxe à tona memórias do meu processo de alfabetização racial, que ocorreu na mesma época em que eu não tinha autonomia para deixar meu cabelo crescer. Minha mãe dizia que só poderia decidir sobre isso após os 18 anos, quando eu teria, como dizemos na família, o “direito de seguir meus próprios caminhos”. 

Essa restrição gerava uma dor dupla: enquanto eu adquiria consciência racial, aprendendo sobre as questões sociais e culturais que envolvem o cabelo crespo, eu ainda vivia sob uma imposição estética. Essa imposição não era culpa da minha família em si, mas uma manifestação de padrões estéticos racistas profundamente enraizados na cultura brasileira. 

O processo era ainda mais desafiador porque, naquela época, eu não tinha condições de confrontar minha família diretamente. Essa impossibilidade de enfrentar a situação me colocou em um lugar de reflexão sobre como essas imposições moldaram minha trajetória e identidade. Procurando entender essa trajetória cada vez mais.

A produção da série começou em um laboratório de fotografia, onde fui provocado a explorar o poder do autorretrato como ferramenta de representação. Esse desafio coincidiu com o momento em que eu ganhava coragem para deixar meu cabelo crescer. Durante esse processo, revisitei os álbuns fotográficos da minha família, buscando registros que validassem minha memória — ou ausência dela — de ter cabelo grande em alguma fase da vida. 

Ao investigar as imagens familiares, confirmei que minha infância, adolescência e juventude foram marcadas pela ausência de registros com cabelo grande. Essa constatação gerou a base inicial para a produção da série. Deixei algumas fotos separadas por um tempo enquanto me dedicava à criação dos autorretratos, onde selecionei objetos simbólicos, como a tesoura e o pente garfo, para representar visualmente minha narrativa. 

Na performance fotográfica, explorei elementos simbólicos para comunicar minhas ideias. A tesoura, combinada com a venda sobre os olhos, representava a dor e o apagamento ligados ao corte do cabelo. O pente garfo, por sua vez, simbolizava a celebração da identidade e do cabelo crespo. Essas escolhas visuais foram fundamentais para construir a narrativa do projeto, que inicialmente resultou em uma série de quatro autorretratos. 

Após criar esses autorretratos, tive um insight: usar a simbologia criada para mapear as fotos de família. Adotei um método de intervenção nas imagens: as fotos em que estou com cabelo curto ou ausente de registros de cabelo grande foram marcadas com a simbologia da venda e da tesoura. Por outro lado, a única foto que encontrei até agora onde eu tinha cabelo grande foi marcada com o pente garfo – Uma imagem com poucos anos de vida.

Essa abordagem tornou-se uma forma de explorar a ausência de memória e tentar compreender as razões culturais e históricas por trás da prática, comum na minha família, de manter os homens com cabelos curtos. Além disso, iniciei diálogos com familiares para reconstruir essa história, buscando entender em que momento e por qual razão essa prática se intensificou. Converso com meus tios, meu pai biológico e outros parentes, enquanto investigo registros de gerações anteriores, como os de meu avô, para identificar possíveis mudanças na relação com o cabelo ao longo do tempo. 

O contexto histórico também é relevante para essa pesquisa. Descobri que parte do acervo familiar foi perdido devido a enchentes que ocorreram em nossa casa, o que tornou o trabalho ainda mais desafiador. Apesar disso, continuo marcando e documentando as imagens disponíveis, enquanto desenvolvo novas colagens digitais com o material encontrado. 

Esse processo de intervenção no acervo familiar tornou-se o segundo estágio do projeto Corte de potência. Ele se desdobra em investigações que relacionam o passado ao presente, explorando não apenas a memória visual, mas também o impacto psicológico e cultural da ausência ou presença do cabelo na minha trajetória. Paralelamente, sigo auto-observando, criando autorretratos que retratam a transformação do meu cabelo e registram como isso influencia minha autoestima e identidade nos dias atuais. 

A pesquisa permanece em andamento, com o objetivo de entender as conexões entre minha história pessoal, a cultura familiar e os atravessamentos sociais que moldaram a relação com meu cabelo ao longo da vida.


Da série Corte de potência, de Meneson Conceição, 2003

Em diversas tradições afro-brasileiras, orí (cabeça) é o fundamento do corpo. Você compreende Corte de Potência como um educar emancipatório para o orí da população negra?

MC: Eu entendo que o conceito de orí nas tradições afro-brasileiras vai além do significado físico da cabeça, representando o núcleo espiritual, a conexão com a essência e o destino de cada indivíduo. Pensar o orí é, portanto, pensar em identidade, pertencimento e autonomia. É nesse sentido, que Corte de potência surge como um ato de reeducação emancipatória, ele é destinado a fortalecer essa identidade. O projeto dá o caminho para população negra, que historicamente negou seu cabelo natural, devido às condições que já conhecemos, a possibilidade olhar para o seu orí com olhos de cuidado.

O projeto ressignifica o ato de cortar ou cultivar o cabelo, conectando-o à resistência e à consciência racial. No Brasil, os padrões estéticos eurocêntricos foram impostos por séculos, o cabelo crespo e afro se tornou alvo de racismo estrutural. O “corte” simboliza, então, não apenas um gesto físico, mas também um processo político e cultural. Ele questiona as imposições estéticas que aprisionam o orí, ao mesmo tempo que propõe um caminho de reconexão com as raízes ancestrais e com a própria verdade de cada sujeito.

Nessa investigação, que ao mesmo tempo é individual e coletiva, utilizando autorretratos e intervenções em acervos fotográficos familiares, o projeto abre caminhos para que o indivíduo negro se veja de forma completa: como herdeiro de uma história de força, e não apenas como produto de um sistema opressor. Ele educa para o autoconhecimento e o reconhecimento das potências que existem no orí, libertando-o de narrativas coloniais.

Pessoalmente, o processo de revisitar arquivos é um movimento de cura para mim e certeza que é um processo semelhante para o coletivo.


O conceito de fabulação crítica, desenvolvido pela escritora Saidiya Hartman, é notório em alguns de seus trabalhos. Na condição de retratista, como você dirige este imaginário fabulativo, interseccionando territórios, infâncias e juventudes negras de Salvador?

MC: Minha criação, dentro desse imaginário fabulativo, busca redesenhar os históricos e os olhares construídos sobre a população negra no Brasil, pós escravidão. Sobretudo no que diz respeito à alteridade negativa que foi imposta a esses sujeitos ao longo do tempo. É um espaço para reconstruir identidades negras, especialmente da juventude, enquanto resgato e celebro a ancestralidade e a estética desses sujeitos, desvinculada de estereótipos. Construo um espaço para uma juventude se ver como protagonista de sua própria narrativa, ultrapassar o trauma histórico e se reapropriar de símbolos para reimaginar o que significa ser negro no presente e no futuro. Procuro sair de um contexto de resistência, e representá-los em uma posição de poder e transcendência, criando uma visualidade que é, ao mesmo tempo, um espelho e uma promessa.

Então, tento construir ou reconstruir uma identidade que foi apagada, que foi interrompida, numa construção mais performativa. O lugar da minha fabulação é me apropriar dessas histórias do passado, interpretá-las para o presente, para que se criem e se plantem novos horizontes para o futuro. É muito atrelado a construir, com a fotografia, imagens ficcionais que tratam, apesar de serem ficcionais, de uma relação muito direta com o cotidiano, com o real. Até porque é um emaranhado de referências reais que fazem nascer minha imagem.

Enxergo uma necessidade da construção de novos ícones para uma juventude se espelhar, novas visualidades que sejam possíveis de questionar e de se entender no mundo, imagens que sirvam de combustível e de despertar debates. É necessário construir ícones de beleza para que possamos nos enxergar e valorizar nossos traços, ícones que debatam o lugar da masculinidade negra na nossa sociedade, ícones que retratam afeto e família. Meu trabalho vem numa corrente de construir novos imaginários e representações para o meu povo. Tenho esperança na minha juventude, e minhas imagens representam, ao mesmo tempo que transcendem, o lugar presente dessa juventude. É deslocar a população negra dos estereótipos negativos, trazer discussões sobre beleza, poder da imagem, sobre postura e imposição.

Salvador, com sua centralidade cultural e espiritual, desempenha um papel fundamental na minha narrativa visual. É uma cidade marcada por símbolos e signos afro-brasileiros e histórias que alimentam minha fotografia. A minha cidade, ao mesmo tempo em que foi palco da opressão e exploração colonial, também se tornou um dos maiores centros de resistência cultural, espiritual e social afro-brasileira. A cidade guarda memórias de luta e reinvenção. Uma cidade que transborda elementos ancestrais, e eu bebo disso para produzir narrativas emancipatórias. Minha abordagem também explora inquietações pessoais, como questões de masculinidade, sobretudo na infância e juventude.


Raynara, da série Profecias, de Meneson Conceição

Você está imerso em algum projeto atualmente? Fale um pouco sobre ele.

MC: Estou imerso num projeto fotográfico e audiovisual chamado Profecias. O projeto propõe uma crítica às expectativas limitantes que a sociedade impõe sobre crianças e jovens negros de territórios periféricos, frequentemente restringindo seus futuros a narrativas pré-determinadas. Através de um contraste entre cenários oníricos e a dureza do espaço ao redor, o trabalho desafia essas projeções, sugerindo uma ruptura com destinos predestinados. A fabulação surge como uma ferramenta para imaginar futuros mais amplos, libertos das limitações impostas pela realidade do entorno. É um trabalho sobre futuridade, carreira, sonhos e possibilidades de vida. O trabalho é uma intervenção urbana.

Além do registro fotográfico dessa intervenção urbana, inclui também a produção de um documentário que apresenta os relatos das famílias e dos jovens protagonistas. O projeto, ao integrar elementos de fábula, moda e narrativas pessoais, transcende os limites do espaço físico e propõe uma visão esperançosa e transformadora para as infâncias e juventudes negras. No projeto, moda e fábula se misturam: a moda atua como um vetor simbólico muito importante que materializa a imaginação dos jovens para seus sonhos de futuridade. Através da moda, ressignificar as possibilidades e afirmo a beleza e o potencial de cada criança. 

O projeto surge de uma experiência pessoal: quando criança, observei como muitos amigos de infância, devido à falta de estrutura familiar e social – herança do período colonial –, não conseguiam imaginar um futuro além do que seu território te apresentava.

Diferentemente deles, tive uma base familiar que estimulava o acesso à arte, cultura e educação, o que ampliou minha visão de mundo. Este contraste foi o gatilho para desenvolver Profecias.

Minha inspiração para esse projeto, especialmente o Profecias, vem de referências como Seydou Keita e Oumar Ka, que retratam o cotidiano com estúdios a céu aberto, colocando em evidência a dignidade dos sujeitos.


Da série Sob o véu dourado, de Meneson Conceição

Você é um jovem fotógrafo com produção simbolicamente poderosa, norteada não apenas para a população negra, mas também para o Brasil. Compartilhe um sonho e fale sobre o que tem lhe provocado como artista visual.

MC: Algo que tem me provocado muito é o direito à memória. A pesquisa sobre o meu próprio passado, a construção da minha identidade como artista e a investigação da história da minha família têm sido fundamentais nesse processo. A arte se tornou uma forma de descobrir quem sou, quem são os meus, e isso tem sido profundamente revelador. A pesquisa sobre a história da população negra, especialmente a partir de materiais tão próximos e reais, tem sido um processo transformador e potente. Encarar o direito à memória como uma ferramenta de superação de um trauma, e um projeto de futuro com garantias de direitos.

Trabalhar com a memória me leva a deslocar-me para novos lugares e a fazer movimentos diferentes nas minhas produções. O direito à memória tem sido um tema que tem me provocado constantemente. O direito à memória, para mim, é um espaço de emancipação, um lugar de reflexão que tem me inspirado profundamente. Esse direito, ao dar voz às histórias esquecidas e silenciadas, permite uma reconstrução da identidade.

Um sonho em que as profecias dos jovens, que eu falei anteriormente, florescem. Que as pessoas saibam que acreditar nos seus sonhos é se fortalecer de uma imagem que já lhe pertence em outros planos. ///

André Santos-Bispo é graduado em filosofia e atua há 14 anos como educador-artista em programas de educação em museus e instituições culturais. Atualmente, trabalha na Área de Educação do Instituto Moreira Salles (SP) e integra o coletivo Ebó de palavras.