As vozes da luta pela terra
Publicado em: 1 de setembro de 2022Há pouco mais de uma década, os artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca vêm realizando, juntos, uma das mais singulares produções artísticas do cenário contemporâneo brasileiro. Wagner e de Burca – ela brasiliense radicada no Recife e ele irlandês radicado na Alemanha – conheceram-se em 2010, quando Bárbara cursava um programa de mestrado em artes visuais na Holanda e Benjamin trabalhava em um centro cultural em Berlim.
Após alguns trabalhos realizados em parceria, na cidade do Recife (após a mudança de Benjamin para esta banda dos trópicos) seria apenas em 2007 que o primeiro trabalho audiovisual da dupla ganharia vida, em parceria também com José Pedro Sotero, diretor de fotografia de cinema, conhecido por assinar longas como O som ao redor e Bacurau, ambos de Kléber Mendonça Filho, por exemplo.
À época, Bárbara e Benjamin pareciam tatear um terreno absolutamente novo, no início do desenvolvimento de uma metodologia fílmica que buscaria falar não mais sobre o outro, mas com o outro. Nasceram, assim, de processos radicalmente diferente e igualmente frutíferos, curtas-metragens como Faz que vai (2015), Estás vendo coisas (2016), Terremoto santo (2017) e Swinguerra (2019), este último ocupando o Pavilhão Brasileiro da Bienal de Veneza daquele ano, recebendo críticas um tanto calorosas e receptivas por lá.
“A pergunta que nós nos fizemos é o que faríamos sobre o Brasil de 2022, em situação de pandemia e em um contexto político caótico em que nos encontramos tanto em relação ao território quanto relativo a um projeto de nação. Então, que luta é essa da qual estávamos falando? O argumento deste corpo em luta tornou-se claro para nós quando entendemos que ele estava presente no MST. Foi que ali começou nossa pesquisa”, afirma Bárbara.
O filme inédito Fala da terra, é então o que fecha o quinteto de filmes apresentados em 5x Times Brazil, mostra panorâmica dedicada à produção da dupla, em exibição no New Museum, em Nova York, com curadoria do brasileiro Bernardo Mosqueira e da norte-americana Margot Norton. No Brasil, Fala da terra, estreia hoje no MASP, onde fica em exibição até o dia 13 de novembro.
O jornalista e curador Victor Gorgulho conversou com Bárbara Wagner, Benjamin de Burca e o fotógrafo de cinema José Pedro Sotero sobre o processo criativo, os desafios para a produção de Fala da terra e diferentes perspectivas na luta pela reforma agrária no Brasil.
Todos os filmes de vocês partem de um encontro. Ou encontros, claro. No caso do Fala da terra,estamos falando de um encontro que se deu com o Coletivo Banzeiros, uma espécie de frente artística do Movimento Sem Terra, dedicada ao teatro, à educação, à poesia e outras atividades, no Sudeste do Pará. Começando pelo início: Como se deu esse encontro com o coletivo?
Bárbara Wagner: A gente vem trabalhando em uma pesquisa ao longo dos últimos sete anos que resultou nessa série de filmes que realizamos no Recife e em seu entorno. Ela vai numa linha dos retratos de manifestações em produção musical de uma certa geração que começa a trabalhar com arte. Então o Faz que vai, Estás a ver coisa e Terremoto santo estão carregados de elementos de pesquisa que nos levaram a fazer o Swinguerra. Quando a gente chega em Swinguerra, um filme que desenvolvemos para o pavilhão brasileiro em Veneza, em 2019, estamos num front de disputa não só do poder, do protagonismo, mas da própria imagem. A imagem que a gente vê no Swinguerra é a imagem do corpo em guerra. A luta já estava simbolicamente no Faz que vai, na forma marcial do frevo, na prática artística dos cantores e MC’s do brega. Terremoto santo é sobre a propagação do poder. A ideia da luta já está presente em todos os filmes. Mas no Swinguerra essa imagem da luta vai para o corpo coreografado. Então esse era o ponto de partida para o próximo filme.
A pergunta que nos fizemos era “que luta é essa que travamos no Brasil em 2022, depois de uma pandemia e nessa situação caótica de território e de projeto de nação?” Estava muito claro que dentro desse argumento do corpo em luta, o MST era o assunto. A imagem do corpo em luta, em resistência, nesses últimos dois anos, está muito atrelada à imagem do Movimento dos Sem Terra. Queríamos entender como abordar essa imagem, que não fosse pelo jeito como é mais difundido da ocupação da terra, mas pela questão da arte. A importância da arte na organização do movimento partiu dessa primeira ideia de questionar o corpo em luta no Brasil de 2022. Daí, chegamos ao MST, que é um movimento nacional de 40 anos e que possui uma nova geração. Foi quando chegamos na mística. A mística é essa prática da experiência de algo que se divide em presença, em uma expressão artística que chama uma sensibilidade coletiva para entender o porquê da luta. Isso pode se dar em uma peça de teatro, em um protesto, em uma leitura de poesia, em uma música. Pelo o que entendi, isso vem de uma herança da ligação do MST com a Pastoral da Terra. Porque tem uma questão ritualística, de congregação. Algo de partilha de um momento que é muito bonito. Vivenciamos isso em basicamente todos os nossos filmes. Acredito que tem a ver com práticas coletivas.
Benjamin de Burca: Em Swinguerra, RISE e agora o Fala da terra, essas comunidades já se formam com uma ideia muito clara entre si. São diferentes entre elas, como filmes e propostas, mas compartilham essa espécie de espaço seguro comunitário para práticas artísticas. Seja teatro, poesia, dança. É tudo coletivo.
Entendo que esse foi o dispositivo – o disparador criativo – que conduziu a pesquisa de vocês do Swinguerra ao Fala da terra. Mas como, literalmente, vocês chegaram a este universo? Como abordaram o Coletivo Banzeiros de modo a iniciar um processo de aproximação, de fato?
BB: Isso é uma prática de pesquisa e de conversa. Desde o Swinguerra a gente já trabalhava com a Eduarda Lemos, que já estava envolvida. Mas cada um desses grupos é completamente diferente. De cada grupo sai um filme diferente. É um retrato desse grupo, dessas pessoas com quem conversamos. Com o MST tinha muito diálogo. Foram vários Zooms, conversas coletivas, em que dialogamos com várias pessoas em várias frentes dentro do movimento. Em muitos sentidos a gente adapta mais a produção cinemática para a estratégia dos grupos do que o contrário. Esse é o nosso propósito: como fazer um retrato do grupo por meio das questões políticas que eles carregam.
BW: A gente parte da ideia do MST, do corpo em luta, da mística ou do Teatro do Oprimido de Augusto Boal. O Teatro do Oprimido tem uma importância central para a organicidade do movimento e para as novas gerações. Entramos em contato com a Brigada Nacional de Teatro Patativa do Assaré, em que o Douglas Estevão é um dos coordenadores. Ele foi uma das primeiras pessoas com quem entramos em contato, em outubro de 2021. O Douglas recebeu a ideia da pesquisa super bem. São pessoas que utilizam muito a prática da colaboração de maneira estratégica. Ele entendeu a nossa proposta e sugeriu duas possibilidades. Uma delas era a gente conhecer o Coletivo Banzeiros, que é uma prática no sudeste do Pará, onde ocorreu o massacre do Eldorado dos Carajás, em 1996. Desde 2003, o MST possui um acampamento nesse lugar, que acabou se tornando o centro da iniciação da juventude do MST do Pará. Em 2016, se forma o Coletivo Banzeiros, que tem o Alan Leite, que é uma liderança LGBT no estado do Pará, à frente. Hoje em dia o coletivo tem em torno de 10 membros. Em 2021 eles fizeram um projeto para a lei Aldir Blanc e conseguiram apoio para desenvolver uma peça que eles apresentaram em duas escolas em assentamentos do MST – a Salete Morena, que é no Assentamento Palmares II, um dos assentamentos mais antigos da região; e no IALA, o Instituto de Agroecologia Latino-americana Amazônico. A peça, chamada Por esses santos latifúndios, tem como texto uma adaptação de uma peça de 1975 do Guilherme Maldonado Pérez, um escritor colombiano. O texto é adaptado para a região amazônica e para a realidade política e econômica do Brasil dos últimos anos. O que a gente fez foi entrar em contato com eles a partir de uma postagem do Instagram que era o cartaz de divulgação dessa peça. A gente vai para essa região do Pará entre fevereiro e março para começar a pesquisa.
Todo filme tem suas especificidades. Em relação ao que vocês precisam, ao tempo que é despendido, à estrutura necessária. Do ponto de vista fílmico, quais foram as especificidades em jogo na produção e filmagem do Fala da terra?
José Pedro Sotero: A Bárbara e o Benjamin são a única dupla de artistas com quem eu trabalho. Eu tenho um foco maior na prática cinematográfica. Como estou nesse lugar de diretor de fotografia para produzir essas imagens desses grupos, sempre tem, com a dupla, um trabalho de pré-produção muito longo. Eu me envolvo desde o começo em um momento de contato muito longo com o grupo. Isso é muito diferente da prática normal do cinema, onde o contato com os atores se dá no set ou nas vésperas da filmagem, o que torna tudo muito objetivo. O que Bárbara e Benjamin fazem é me levar em todos esses projetos para um processo de pesquisa. Para conhecer essas pessoas e passar muito tempo observando a prática delas. Isso é o que de fato guia como a imagem vai ser produzida.
No Swinguerra a gente começou a frequentar todos os ensaios na Companhia Extremo. Quem guiou a gente foi a Eduarda Lemos, que está lá no Faz que vai e meio que levou a gente para esse mundo desses ensaios coletivos. Nesses ensaios as apresentações já existiam. Não existe uma criação de roteiro de uma prática que eles já fazem. Na verdade, os roteiros nunca são uma invenção ou uma ideia nossa. O ensaio do Extremo tem uma hora. A gente observa a apresentação e tenta perceber como adaptar aquilo ali para o audiovisual. E claro, sempre existe uma conversa com o grupo depois da prática. As imagens começam a serem construídas a partir daí. A gente sempre chega na filmagem muito certo do que vai filmar por conta desse tempo longo de pré-produção. Nesse processo longo podemos até tirar fotos, fazer algum vídeo, mas nunca produzimos imagens definitivas que vão entrar nos filmes. É sempre só um estudo, uma pesquisa. Sobre os corpos em movimento, sobre os espaços que vão virando as locações.
Durante esse processo tem uma coisa do Benjamin que é muito bonita. Ele começa a fazer desenhos dessas práticas e daí formam-se algumas imagens na nossa cabeça. Esses desenhos vão virando quase que um guia para o nosso estudo, que mais para frente vem a ser o nosso roteiro. Em cima da apresentação que eles fazem, rola o debate de como adaptar aquilo para um filme curto, de duração entre 15 e 20 minutos, como no mundo do audiovisual. Então a gente pensa no que é importante para o teatro, mas não é tão importante para o cinema, por exemplo. Como sintetizar em uma cena. Quando vai chegando perto da filmagem, decidimos fazer um storyboard do que a gente vai filmar, cena a cena. O set de filmagem é uma etapa muito mais curta sempre. Dura alguns dias, uma semana. Tem que ser muito objetivo no que queremos fazer para gravar o filme nesse período curto. É o momento em que chega, de fato, toda uma equipe de cinema. Fotografia, som, elétrica, maquiagem, figurino. E até nessas ocasiões a equipe chega um pouco antes, porque é necessário dialogar e se enturmar com os grupos, entender quem é cada um e entender como eles querem ser representados. No fundo, é uma prática que já existe e tem que haver muito respeito com o que eles já estão fazendo.
Os storyboards facilitam muito o que queremos fazer em termos de imagem. Quando partimos desse desenho com o grupo as coisas já estão muito amadurecidas. Então começamos a entender como a câmera deve se mexer, como queremos observar determinado momento da apresentação. Quando vai chegando perto da filmagem as coisas conseguem ser bem objetivas, apesar de no set ainda ter muito tempo de conversa. O processo de filmagem no Fala da terra foi super complexo. Estávamos no sudeste do Pará, numa região de deslocamento difícil. E super violenta por conta da extração de minério, pelo próprio massacre dos Carajás. É um lugar do Brasil muito hostil, de difícil acesso. Foi um filme de logística difícil, mas no fim rolou super bem.
Eu fico sempre buscando um comparativo com outro filme para ir vendo como é cada caso. O Swinguerra tem essa dinâmica dos corpos, do videoclipe, da dança. É um grupo de dança. Uma performance de um grupo coreografado. A gente entendia que a câmera tinha que se mexer junto com esses corpos nesse espaço com a força e a dinâmica que eles tinham. É um filme com muito movimento de câmera. Já o Fala da terra é uma peça de teatro. Entendemos que era algo que deveria ser respeitado, esse “ver a peça” como um espectador. Nesse filme a câmera ficaria mais parada, quase como um espectador de teatro. Obviamente, tem alguns momentos em que damos um toque mais cinemático na imagem, mas na essência é um filme mais teatral. A câmera enquadra o palco.
Vocês vêm de uma leva de filmes que podemos classificar como “documentários musicais”. A música sempre esteve muito presente. E ela segue presente no Fala da terra. Há momentos musicais, mas ele é majoritariamente um filme de teatro. A performance que está em jogo ali é teatral. Eu queria ouvir de vocês sobre essa diferença, de lidar com a performance teatral. Quer dizer, também é ligado ao corpo, também é uma coreografia, mas é de outra ordem.
BB: No caso do Fala da terra, não é uma escola de teatro. É um coletivo. Ou seja, eles são autodidatas. Eles estão usando o teatro para ensinar. Usando arte para ensinar, basicamente. Nesse caso, quando chegamos lá, também estamos aprendendo muito com eles. E eles com a gente. Tem uma colaboração. Não existe essa hierarquia, estamos no mesmo nível que eles. Eu e Bárbara também não fomos para uma escola de filmes. A gente não é exatamente diretor de cinema, nós somos artistas. E jornalistas. É um espaço muito neutro entre nós e eles.
BW: Queria chamar atenção para um elemento musical da peça Por esses tantos latifúndios, que foi incorporada ao roteiro do Fala da terra. A música do Chico Buarque, Funeral do lavrador, inicia a peça do coletivo. De certa forma ela também é uma música tema desenvolvida para o Fala da terra pelo Carlos Sá, produtor musical do Recife, com quem trabalhamos em Estás a ver coisas. O Funeral do lavrador já é, em sua origem, um texto poético do João Cabral que foi musicado pelo Chico no fim dos anos 60. Essa música está no início do filme, tal qual na peça do coletivo. Bem no primeiro ato da peça, que é a segunda cena do filme. No prólogo temos a Canção da terra sagrada, que também está roteirizada dentro da peça dos Banzeiros. Então há esse elemento musical sem sombra de dúvida. Da palavra cantada mesmo, mas cantada em coro. Esse elemento da canção em coro é muito interessante no Fala da terra porque já possui muito um fundamento da voz coletiva. Toda vez que os camponeses falam no filme, ou eles cantam em coro, ou eles denunciam e protestam. E isso está no filme de maneira muito intuitiva. Esse processo de escuta, de observação do próprio material e da própria obra artística, nós destrinchamos com eles na construção do storyboard. Qual é o tipo de música que a gente já conhecia? A que existe dentro do repertório do próprio MST. Então aproveitamos alguns elementos daí. Alguns outros tivemos que desenvolver pela primeira vez. Foi o caso da Cobrança, que é uma cena muito bonita, desenvolvida com eles numa espécie de momento fora da peça, que é o “Camarim”, em que a gente percebe quem são os atores e educadores do filme e do próprio movimento. É uma coisa meio metalinguística. Entendemos que estamos falando na verdade dos atores dessa militância, que são atores de uma peça de teatro. Essa canção chamada Cobrança não tinha gravação existente. Desenvolvemos juntos com eles e com o Carlos Sá.
Para além da questão musical e suas variações, existem os textos cantados e a musicalidade das palavras. É muito bonito como a gente conseguiu aproveitar tudo o que tinha aprendido nos filmes no Brasil e fora dele. O One hundred steps é um filme todo pautado em tradições da cultura irlandesa e o quanto essa cultura é forjada a partir de elementos da cultura norte-africana. Teve muito som direto que utilizamos nas gravações musicais e cantadas à capela no One hundred steps. É engraçado que nos outros filmes usamos muito playback e canções pré-existentes, que são do repertório dos coletivos com os quais a gente trabalha, reproduzidos em set para que os atores dancem ou cantem em dublagem. Só na pós-produção que adicionamos os elementos de trilha sonora do Carlos Sá. É um trabalho de design de som, com um aspecto híbrido muito presente entre o que é som direto, o que é som ambiente e o que já é parte de um repertório musical de uma cena ou de uma indústria musical. No caso do Fala da terra, tivemos que entender as semelhanças e diferenças de um repertório de canções populares e sertanejas que é diferente do nordeste para o norte. Aprendemos muito isso com eles. No sudeste do Pará, o que temos ali é uma confluência muito grande de gente do Brasil inteiro. Foi ali que se forjou um “Eldorado”. Um lugar onde você pode de repente mudar completamente a sua vida. Não só Eldorado dos Carajás, que é explorada pela Vale desde os anos 70, mas também Serra Pelada, que faz parte dessa paisagem. Hoje essa mina, que tinha 150m de profundidade, está toda coberta por água. Um lago artificial contaminado por mercúrio.
O sudeste do Pará é povoado de gente que foi para lá em busca de trabalho. Tem muito nordestino lá. Tem gente do sudeste. É um Brasil que a gente não conhecia. Tivemos que entender um novo repertório. Para além do texto, ter uma intenção de ser, nos personagens, uma atualização dessa história de exploração, de violência, de miscigenação forçada e de destruição. É uma história que está atualizada, por exemplo, na Tuíra, a indígena que desafia a companhia que estava instalando Belo Monte. O texto tem um tom levemente arcaico. Os personagens falam de um Brasil que é um Brasil dos sem-terra e que pode ser o Brasil para o retirante nordestino dos anos 1950. Da época das ligas camponesas, um pouco antes do MST se estruturar no esteio dos movimentos sindicais. Existe uma luta histórica pela terra no Brasil. Os anos 1950 e o próprio Morte e vida Severina como essa paisagem audiovisual no teatro brasileiro estão ali marcados no texto. Essa musicalidade era nova para nós, apesar de, ao entrarmos no sudeste do Pará, encontrarmos também muita gente que tem aproximação com a cultura nordestina. Por exemplo, tem um momento do filme que tem uma música do Edson Gomes, que sai de um protesto na voz de Maria Raimunda. Aquilo ali é algo que vem da nossa experiência no sudeste do Pará e não tem uma pessoa no MST que não conheça o Edson Gomes. É muito bonito como vamos de Chico Buarque a Edson Gomes, e ao mesmo tempo passa por Carlinhos Sá. O filme procura também no som, na voz, na canção, essa ideia de uma identidade muito complexa, que não se rende a uma explicação fácil.
Na primeira vez em que eu assisti o Fala, quando o filme corta para a cena final que se inicia com um plano aéreo, em que um drone sobrevoa, rodeia, a Estátua da Liberdade da loja da Havan – um símbolo muito forte do bolsonarismo, sabemos – torna-se definitivamente explícita a disputa narrativa que está em jogo ali. A disputa estética, imagética, política. É um ponto de inflexão que encaminha o filme para o seu encerramento, o que me faz lembrar da cena final de outros filmes de vocês.
No Swinguerra, por exemplo, vocês terminam com aquela sequência que é filmada no Campo dos Guararapes. Essa cena me veio na cabeça. O Pedro falou sobre o fato de não ter o roteiro, mas ter uma espécie de guia, que vai se desenvolvendo ao longo do processo, quase que como uma negociação. Isso me faz pensar que, pelo menos nesses dois casos, do Swinguerra e do Fala da terra, nas cenas finais o que está em jogo é o ápice da negociação que está ocorrendo nessas duas esferas: vocês e o grupo. Ou seja, é a performance deles que ainda está em jogo, mas são cenas finais que parecem ter uma visão muito forte de vocês. Queria ouvir de vocês como essas cenas finais são fruto desse ápice da relação que vocês vão criando com esses grupos. Quando acontece uma espécie de fusão.
BB: Uma coisa que é muito importante para lembrar é que no caso dos dois filmes nós já sabíamos os contextos das mostras onde os filmes seriam exibidos. No Brasil as pessoas conhecem bem a estátua da Havan. Mas exibimos o filme em Nova York. Lá é a origem desse conceito. Na minha cabeça, é uma imagem extremamente poluída pelo neoliberalismo. Sempre foi muito importante para a luta da reforma agrária no Brasil e como está completamente ligado ao lugar em que estamos mostrando. Mesma coisa com o Swinguerra, que foi exibido na Bienal de Veneza representando o Brasil, usando uma certa linguagem de luta, de guerra. Essas coisas geram essa reflexão sobre o encontro original dessas peças e onde são mostradas. As pessoas em Nova York falavam: “Nossa, que louco o que essa estátua representa lá. Aqui nos EUA ela representa outra coisa completamente diferente.” Mas eu sempre dizia: “Não, na verdade ela representa a mesma coisa! É, infelizmente, uma imagem que foi cooptada e utilizada pelo neoliberalismo”. Tem pessoas que se apegam a essa estátua e realmente acham que o que ela oferece é liberdade. Mas essa liberdade implica na destruição da terra, basicamente. E umas poucas pessoas ganham tudo e as outras se lascam. Quando a gente chegou em Marabá, o primeiro símbolo que está na nossa frente é a Estátua da Liberdade da Havan. É muito contraditório.
BW: Em todo processo da pesquisa visitamos esse território, que foi uma coisa colocada para nós pelo próprio MST. Eles diziam: “Vocês precisam fazer um reconhecimento do território onde a gente está.” Fizemos uns trajetos de entendimento do que era o espaço entre a cidade de Marabá e Parauapebas, uma BR federal e uma via estadual que se conectam ali, com a extensão de mais ou menos 200 km, em que todo território, em suas adjacências, está ocupada pelo movimento. E são as terras em que percebemos de fato o trabalho de sustentabilidade, de agrofloresta, de educação. Todo esse reconhecimento nos levou em conjunto a identificar o que seria o nosso cenário, os palcos, as paisagens do filme. Uma coisa muito marcante é como aquela cratera gigantesca da mina de Carajás é algo muito complexo como imagem. Serra Pelada e a própria BR são muito complexos como imagem. O que é a Amazônia como imagem? Essa foi a nossa questão. Como pode ainda termos que falar da luta pela terra ainda hoje? Essa questão da reforma agrária, que para muitos pode ser anacrônica, a gente sempre volta nela. E aí estamos na Amazônia, tentando dar conta de falar do Teatro do Oprimido, a partir dessa juventude do MST, nessa Amazônia que não tem mata, não tem floresta. Que não seja a floresta reflorestada pelo MST. Essas imagens finais, essas imagens sintéticas, nós começamos a desenvolver já com um pouco mais de liberdade nossa em estarmos juntos ali com os artistas que a gente retrata. Mas as nossas sugestões vêm da nossa experiência do lugar.
Quando estávamos em Marabá, fazendo nossa pesquisa e conhecendo os assentamentos, encontramos aquele anfiteatro na floresta. Esses espaços estão ali. Eles são os espaços ocupados pelos artistas com quem trabalhamos. São espaços familiares. A Estátua da Liberdade vem como uma imagem de recepção de quem chega pelo aeroporto de Marabá, mas também sintetiza essa violência do projeto liberal. Pode ser a mina, a rodovia, as represas, a ferrovia que está rasgando a terra do sudeste do Pará até São Luís do Maranhão, com trens de 3 km de extensão, passando mais de três vezes por dia, carregando ferro para exportação. A Estátua da Liberdade daHavan era para nós, muito claramente, a materialização desse projeto. Por mais banal que seja, por mais feia que ela seja, é muito importante que ela esteja ali no filme, porque contextualiza onde é que está acontecendo essa disputa hoje no Brasil. Na verdade, é uma sequência de momentos muito particulares. O arquivo de áudio do massacre dos Carajás, que é um arquivo da Rede Globo da época, foi televisionado, por isso teve tanta repercussão. Há muitos massacres que não são televisionados.
O áudio do massacre em uma tela preta é seguida dessa imagem da Estátua da Liberdade com a voz da Maria Raimunda recitando o poema “Fala da terra”, que dá nome ao filme, um poema do Pedro Terra. É uma figura muito especial para o MST, como intelectual, militante e poeta. O “Fala da terra” também é declamado no acampamento pedagógico como chamada na mística para se lembrar do massacre de Eldorado e de outros massacres. E para lembrar os colegas que tombaram durante a luta. A gente sentiu ali que era muito próprio do poema essa coisa circular. Do que repete, do que acumula, de algo que não necessariamente se resolve. Estamos no meio desse problema. Sem dúvida nenhuma, a referência também é algo que a gente tinha visto no filme curta metragem do Steve Mcqueen que foi exibido no Brasil na Bienal de São Paulo em 2010. Alguns dos leitores vão se lembrar dessa referência. Como o Benjamin falou, esse filme foi feito entre fevereiro e junho de 2022 e já foi exibido em Nova York. Então achamos que eram muitas camadas interessantes para documentar esse lugar. Claro que teve um trabalho de pós-produção, em que a gente dá a sensação da presença daquelas vozes naquela cidade. E é o que acontece. O acampamento pedagógico acontece logo ali, em Parauapebas e Eldorado do Carajás. A gente queria dar essa imagem para o poema.
JPS: Como Bárbara falou, os lugares em que filmamos surgem durante o processo de pesquisa dos lugares que a gente tem que permear. No caso do Fala da terra, eles estrategicamente têm o que chamam de corredor do MST, que vai de Marabá a Parauapebas, duas cidades extremas. E no meio desse caminho tem Eldorado dos Carajás e Serra Pelada, e tem a curva do S onde aconteceu o massacre. É um corredor quase em forma de “S” em que a cada 30km tem um assentamento ou acampamento do MST. Nessas duas extremidades, que são as duas maiores cidades, cada uma tinha uma Estátua da Liberdade. Tinha uma em Marabá e uma em Parauapebas. Elas estavam ali no nosso caminho e significavam uma coisa muito forte. Sabíamos que era importante filmar aquela imagem.
Quando decidimos usar um drone não foi uma invenção pura e simples nossa. Existem nessas duas cidades muitos operadores de drone. Não levamos um. Os drones são utilizados para demarcar áreas de latifúndios e como tecnologia de soltura de agrotóxicos. Existe trabalho para drones nesses lugares. Em todos os lugares em que a gente passava, tinha uma placa “Fazemos operação de drone”. Isso também foi incorporado na forma de filmagem a partir do lugar. Filmamos de drone também no Hotel Íbis, que é um outro símbolo muito forte. O drone é um objeto presente na paisagem da região. Com outro uso, mas existe. Encontramos um operador de drone na cidade de Parauapebas, super experiente, que já tinha feito várias campanhas políticas, já tinha feito trabalho para fazendeiros. Um menino super jovem. Enquanto íamos filmando, vem esse fator surpresa, que é enquadrar a Estátua da Liberdade com um restinho de floresta atrás. E na medida em que vamos girando a imagem, ela vai se tornando mais complexa e mais interessante do que imaginávamos.
E com a voz da Maria Raimunda, começa a casar com a poesia de maneira muito forte. Em vários momentos existe uma marca entre o que ela está falando e o que está aparecendo. Aparece uma rodovia, aparece um Hotel Íbis, aparece um restinho de floresta, e tudo emenda nesse momento de ápice do fim do filme que é o acampamento pedagógico, em que a Maria Raimunda está ali, recitando numa mística, que é de onde surge toda a ideia do filme. Todo ato político do MST é iniciado por uma mística, normalmente teatral. E quando fomos para lá, todos foram também. Porque além de trabalharem no coletivo, os Banzeiros têm uma atuação muito forte no MST. Como a Milene, uma das atrizes, que é educadora popular. Todos eles tinham um trabalho muito forte no movimento. O acampamento pedagógico é um momento muito importante para todos os Banzeiros. Apesar de serem jovens, eles já estão ali ajudando a formar a nova geração que está vindo após eles. E conseguimos arquitetar de filmar toda a parte teatral com eles e com a equipe maior de cinema antes do acampamento pedagógico, para podermos acompanhar o acampamento e vivenciá-lo. Então, filmamos aquela última cena com eles em dois dias para poder ver aquilo acontecer ali, na beira da BR, onde aconteceu o massacre, lugar importante para eles, para que os jovens não esqueçam. O trabalho de educação do MST é impressionante. Muito forte, muito bonito e muito generoso com as novas gerações. ///
Victor Gorgulho (Rio de Janeiro, 1991) é curador, jornalista e pesquisador. Graduado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ e mestrando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Desde 2019 é o curador do MIRA, programa de videoarte da ArtRio.
Tags: amazônia, Audiovisual, cinema, MST, Reforma Agrária