Entrevistas

As trocas fotográficas de Helen Salomão

Lucas Veloso & Helen Salomão Publicado em: 6 de julho de 2023

Bença, da série Digital na história, de Helen Salomão, 2020

No dicionário Michaelis, artista é a pessoa que se dedica às artes ou faz delas meio de vida, como ator, bailarino, cantor, escultor, fotógrafo etc. Também é quem revela sensibilidade artística ou gosto pelas artes. As definições cabem no trabalho da baiana Helen Salomão, mas ela se diz “uma artista em parênteses”.

A autodefinição de Salomão se deve à visão que as pessoas de fora têm dela, algo comum para pessoas negras: serem vistas dentro de uma caixa, geralmente chamada de diversidade, processo que impede artistas negros de pensarem, criarem e abastecerem o mundo com outros temas que lhes interessam, como as questões subjetivas, o amor e o mar.

E assim como as marés de Salvador, sua cidade natal, que estão por toda parte, o olhar de Helen também vive em busca de memórias, histórias e pessoas por onde passa, isso desde os 17 anos, quando comprou uma máquina fotográfica semiprofissional. Anos depois, acumula no currículo exposições no Museu Fowler da UCLA (Califórnia, EUA), no Museu de Arte da Bahia e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Como artista – fotógrafa e poeta – que é, seja nas ruas, no museu, no Brasil ou pelo mundo, o que interessa a Helen é a troca de experiências, em um ciclo de “partir, voltar e repartir”, como canta o rapper Emicida ao lado de Gilberto Gil na canção “É Tudo Pra Ontem”.

Lar, da série Pilar, de Helen Salomão, 2019

Como você chegou na fotografia? Qual foi a primeira história disso?

Helen Salomão: Minha relação com a arte aconteceu de forma natural, por curiosidade. Comecei a estudar fotografia sozinha. Queria muito fazer um curso, mas não podia arcar com os custos.

Depois de um tempo, soube de um curso gratuito de arte e tecnologia para jovens da comunidade chamado Oi Kabum. Fiz o processo seletivo, passei e foi nesse espaço que eu me tornei artista.

Você é fotógrafa e poetisa. O quanto a poesia influencia seu trabalho e vice-versa?

HS: A escrita sempre fez parte da minha vida, mas eu não conseguia perceber que o que escrevia era poesia. Quando comecei a estudar na Oi Kabum tive a possibilidade de mostrar meus escritos e foi aí que soube que era poetisa. A maioria dos meus trabalhos autorais nascem através do que escrevo. A escrita é um norte para mim, é o lugar em que consigo por para fora as coisas que sinto e acredito.

Ser livre 1, da série Pilar, de Helen Salomão, 2019

O quanto o mar da Bahia atravessa você, seu trabalho?

HS: O mar é minha mãe, é parte da minha espiritualidade, é meu lar. No mar eu encontro afeto, amor, travessia, poder etc. Sinto que minhas imagens ganham outras dimensões quando construo junto com o mar.

No universo da fotografia, que nomes te influenciam no trabalho?

HS: Lita Cerqueira, Lázaro Roberto, Walter Firmo, Edgar Azevedo, Davi Reis, Maiara Cerqueira, Anastácia Flora, Safira Moreira, Amanda Tropicana, Lucas Cordeiro e muitos outros.

Na sua opinião, acha que a fotografia brasileira hoje está mais atenta à população negra?

HS: Pela ótica de pessoas negras e pessoas conscientes, sim. Pela ótica de quem faz a  manutenção do colonizador, não. Quem continua nessa manutenção, tem a imagem de pessoas negras e indígenas como públicas. Eles entenderam que se contar histórias e mostrar pessoas reais eles vendem mais.

Em Digital na história você documenta sua família materna. Considerando que muitas famílias negras no Brasil não possuem registros do passado, qual a importância afetiva e coletiva deste trabalho? Qual a importância da memória?

HS: Gostaria muito de ter acesso a imagens, textos e áudios sobre os que vieram antes de mim, principalmente das pessoas da minha família. Como não tenho acesso a isso, eu construo a partir do agora e recrio o passado através da minha conexão com a minha espiritualidade. Pra que eu possa ver possibilidades e me sinta fortalecida. E os que ainda estão por vir, tenham esse norte e possam seguir nesse processo de documentação.

Eu sempre compartilho com as pessoas que troco, sobre a importância do registro, da memória. Que elas se registrem das diversas maneiras que puderem. Saber de onde você vem, é um combustível para trilhar seu próprio caminho.

Em Pilar você fotografa a comunidade, pautada no potencial das pessoas, no afeto, e também na “periferia sem sangue”, como você define. O que seria este termo?

HS: Pilar é o nome de uma comunidade que resiste em Salvador. Eu estive algumas vezes no Pilar, junto com alguns estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). As imagens falam sobre muitos sentimentos vividos lá e na minha própria vida.

Periferia sem sangue é a documentação que eu acredito ser importante para quem vive na periferia. É a gente poder se ver como ser humano, gente com nome, sobrenome e história, como seres belos, potentes, culturais e de possibilidades infinitas. É o outro lado da moeda.

Esperança, da série Pilar, de Helen Salomão, 2019

O fato de ser uma mulher negra, nordestina define seu trabalho de alguma forma? Isso faz com que as pessoas te vejam de alguma forma pré-definida, estereotipada?

HS: Sou pré-definida pelo colonizados. Sou colocada em parênteses, para ocupar X lugar. Tenho buscado sair dessa lógica, mas é muito difícil quando ainda não estou liderando. Tô cansada de servir a quem não valoriza trocas. Tô cansada de sentir o cheiro e não poder experimentar.

Importante, da série Pilar, de Helen Salomão, 2019

Quais os retornos mais legais que já recebeu de pessoas retratadas por você?

HS: É saber que as trocas que tenho movimentam as pessoas, principalmente na busca do autoconhecimento.

Você já expôs no Museu de Arte da Bahia, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Museu Fowler Museum da UCLA. De olho no futuro, o que vislumbra e ainda pretende chegar com suas imagens?HS: Que eu possa ser a minha própria voz e ponte para que as pessoas sejam protagonistas de suas próprias histórias. Que eu e os meus estejamos em lugares de liderança. Que a minha arte seja semente de movimento, potência, poder e possibilidades. ///

Lucas Veloso é jornalista audiovisual e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias, onde também colaborou com reportagens, além de outros portais, como Alma Preta e Rio On Watch. Atualmente, edita conteúdos no Expresso na Perifa, suplemento hospedado no Estadão, além de colaborações no UOL e matérias audiovisuais na TV Cultura. Frequentador de exposições, também é interessado em artes, música e cultura.