Ensaios

Rio lento

Camila Svenson & Nathalia Bertazi Publicado em: 14 de novembro de 2024

Hotel Palenque é uma instalação de 31 slides e 42 minutos de áudio com análises e reflexões do artista Robert Smithson (sim, da famosa Spyral Jetty) acerca das imagens apresentadas a um auditório universitário em 1972.

Pr’além da significância do trabalho como emblemático das investigações de Smithson sobre suas questões de entropia e afins, destaco, aqui, o “apresentar”: em Hotel Palenque a percepção do espectador é claramente orientada pelo artista — o gesto de apresentar a imagem não é suficiente. Além de mostrar, Smithson precisa declarar: ali está.

Foi para esse trabalho — ou, ainda, para esse procedimento de apresentar um projeto visual com a adição da narração de um relato pessoal — que Rio Lento, da fotógrafa documental Camila Svenson, me levou.

Uma excursão à cidade de Foz do Iguaçu. Um evento de data, hora e trajetos inscritos em números e coordenadas — que omito porque, depois de atravessar Rio Lento, qualquer esforço de marcação indexal adjunta parece insuficiente na tentativa de delinear os eventos de ordem maior que são os deslocamentos. Aqui existem dimensões subjetivas, contextuais e emocionais. Existem narrativas e imagens. E existe o que a memória faz (desfaz e refaz) de tudo isso. Pois um deslocamento é um acontecimento — da ordem de um antes e um depois: há tudo o que nos leva à necessidade de partir e todo o movimento do durante, que vai orientar nosso retorno. Rio Lento reafirma isso.

Começando o texto com o alerta de que fala “(por hora) enquanto relato de viagem ou ficção”, Camila dá o tom, dúbio, do jogo de percepções — objetivas e subjetivas, particulares e externas, naturais ou fabricadas — que permeia o trabalho. (E isso me pegou, porque tenho refletido bastante sobre esse mecanismo de tornar o espectador consciente de como a percepção é, na verdade, textual — uma questão de discursos e narrativa.)

Assim, em primeira pessoa, Camila descreve atrações turísticas triviais (como parques aquáticos e miniaturas de monumentos) e magníficas (como a imponente força das águas); enquanto narra, também, seu estado interno e o impacto psicológico da viagem.

O mesmo jogo se dá nas imagens. Focada em detalhes aparentemente banais, a estética documental das fotos aponta para uma sensação de veracidade; mas, por suas escolhas formais, Camila ao mesmo tempo eleva esses elementos triviais a um estado contemplativo (a escolha tonal, a exploração do vazio — enquadrando lugares silenciosos em espaços turísticos geralmente repletos de pessoas — enfatizam seu estado emocional). As fotografias funcionam como anotações visuais, capturando pedaços da Foz do Iguaçu que ecoam a interioridade da autora — não são apenas registros de uma viagem física, mas sim de uma travessia emocional.

Do lado de fora, ao mesmo tempo em que reflete sobre o artifício presente nas atrações turísticas e a tentativa de replicar a natureza esplendorosa do lugar em algo “domesticado” ou controlado — como na imagem do dinossauro embalado em plástico bolha ou nas ondas artificiais do parque aquático —, Rio Lento exprime bem o absurdo e a beleza trágica desses lugares fabricados, cheios de construções e obras, que coexistem com a realidade selvagem e implacável das cataratas.

Do lado de dentro, a narradora revela ter embarcado em busca de resolução: processar uma perda, a despedida de J. (“relato de viagem ou ficção”). A cidade de Foz do Iguaçu se torna cenário simbólico, quase imaginário, para processar suas emoções.

Em texto e imagens, Rio Lento explora uma fricção constante entre o banal e o grandioso. E se as palavras enunciam claramente se tratar de um documento declaradamente emotivo, as imagens reforçam o lugar inventado pela artista. A ausência de aglomerações em lugares que esperamos hiper-movimentados cria uma atmosfera quase surreal e meditativa.

O jogo presente entre fotografias e texto imposto por Camila em Rio Lento faz com que voltemos à complexa relação entre imagem e discurso. Como em Hotel Palenque, as fotografias deixam de ser símbolos de si mesmas (do que apresentam de imediato), para, com o relato, desembocar em comentários autorreferenciais — quase como se um funcionasse de transcrição do outro.

Pergunto a Camila: nesse contexto, poderia o texto ser desconsiderado? “Não, esse lugar tem que ser lido como um relato de viagem, quase como se eu pegasse na mão da pessoa e falasse: a imagem só não é suficiente; aconteceu muita coisa aqui — vem comigo ver”, diz a autora, reforçando sua inquietação de que “a fotografia é um caminho, mas sozinha não significa nada”.

Aqui, o mecanismo do trabalho toma fluxo distinto do de Smithson, que usa da narração não para acenar a insuficiência de algo “simplesmente capturado” — ele acaba por tecer uma narrativa lúdica e apartada do que apresenta visualmente e para a qual a imagem imediata é apenas um pretexto.

Em Rio Lento, as imagens e as descrições do texto convergem na figuração daquilo que a autora observa e documenta. “Por eu ter aprendido a fotografar nessa escola tradicional de fotojornalismo e da fotografia documental, uma estética que sempre remete a uma sensação de verdade — no sentido de que você olha para a imagem e não questiona sua falsidade. A estética documental traz a sensação de ‘essa pessoa existe, nesse espaço/nesse contexto, e isso aconteceu, de fato’. E eu gosto de apresentar essa estética como uma ilusão. Eu acho que a estética documental prega peças, e isso tem me interessado muito ultimamente”, comenta Camila.

Assim o projeto é também fruto de uma tensão intrínseca do lugar de partida da fotógrafa, sua formação enquanto fotojornalista e seus questionamentos atuais quanto aos postulados desse mesmo lugar. Camila conta que começou a pensar a fundo sobre o que é uma imagem, e especificamente sobre o que é a imagem documental (e a construção de uma aura de verdade em torno dela): “Eu comecei nessa escola do fotojornalismo, e aprendi a fotografar retratando a minha família. É interessante ver o quanto o trabalho vai mudando de um projeto ’de avó‘, partindo de um lugar afetivo, poético, e vai se tornando, ao longo de 10 anos [que passei] observando a cidade onde nasci e cresci (Bauru, no interior de SP), se transformando numa cidade que é quase um não-lugar. Uma cidade sem identidade, de muita especulação imobiliária, que vai se expandindo através de condomínios, uma cidade onde vão chegando lojas do tipo Havan, com estátua da Liberdade, postos de gasolina de rede… Então eu comecei fotografando minha avó a partir desse lugar sensível e, ao longo dos anos, fui ficando cética e passei a prestar mais atenção em como as cidades vão mudando. E como a minha família vai mudando junto, e como essas pessoas vão se relacionando com essa cidade e entre elas. Como as nossas relações vão mudando com o tempo, com a cidade, com o espaço”.

Nesse sentido, lugares como o parque aquático ou o hotel Golden Park, com seu congresso de RH e a piscina vazia, adquirem uma personalidade própria, oferecendo ao leitor uma visão crítica e irônica sobre o que esses espaços representam. Retratando os cenários da viagem não como meros planos de fundo, mas como personagens em si, com uma importância narrativa e estética central, Camila levanta a questão sobre o espaço ser um design natural inocente, “simplesmente ali”, ou se sua qualidade formal cativante é resultado dos gestos de enquadramentos feitos dele. Mas também — e talvez ainda mais significativamente — de nossas relações particulares com o entorno.

Não nos deixando esquecer que essas representações, são, por vezes, altamente questionáveis (lembremo-nos do alerta inicial ditado pela autora: “Escrevo sobre esse trabalho (por hora) enquanto relato de viagem ou ficção”.)! Mesmo num lugar onde a atração primordial são impositivas quedas d’água de até 80 metros de altura, num volume médio de 1.500 metros cúbicos por segundo, até mesmo as Cataratas de Iguaçu têm caráter curiosamente ilusório e intangível.

No fim, o texto captura um sentimento de aceitação e transformação. A protagonista não está mais em busca de despedidas, mas sim de um novo significado para essas paisagens e experiências. Ela reconhece que tudo já era esperado, como se cada imagem e evento estivesse aguardando por ela.

Se a mediação escrita reforça a construção imaginária da Foz do Iguaçu silenciosa e monótona de Rio Lento, ou se as imagens produzidas por Camila são documentos de sua passagem por lá, dilemas dos quais talvez possamos nos afastar em benefício da contemplação deleitosa das cenas que a autora nos apresenta. Fica uma aporia: não é a intencionalidade formal dos tons e contornos das fotografias, e o interesse que possamos ter nelas, igualmente resultado da narrativa apresentada pela autora? O que vem antes: a imagem ou o discurso? Para quem precisa de respostas: se algo deve ser levado a sério, são as observações de Camila sobre a ficcionalização da realidade. Fiquemos com o silêncio ensurdecedor das quedas. ///

Ou com a playlist de viagem criada por Camila.

Nathalia Bertazi é mestranda em Artes Visuais com ênfase em processos de materialização da imagem, editora de fotolivros, e educadora. Licenciada em Letras e bacharel em Fotografia, pós-graduada em Curadoria com ênfase em Arte e Engajamento Social. Idealizadora do projeto Soslaios, focado nos processos do fazer fotográfico como meio de elaboração do sentir.

Fotos da série Rio Lento, de Camila Svenson, Foz de Iguaçu, maio de 2024

Leia abaixo o texto Rio Lento, escrito por Camila Svenson



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