Ensaios

O verão de Thadeu Paz

Moracy Oliveira & Thadeu Paz Publicado em: 11 de fevereiro de 2016

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Na escada externa do edifício o menino sentado, silencioso, olha a cidade que se estende a sua frente num emaranhado de prédios. A cidade silenciosa, cinza, imóvel, indecifrável, cerca o menino em sua reflexão solitária. Nada se ouve. Segundos antes, o fotógrafo, no topo do edifício, mapeia a paisagem urbana a sua frente e encontra o menino sentado na escada, de costas, absorvido na contemplação de um mundo de aparência impenetrável, ou talvez apenas acuado diante daquele universo frio e quieto. Uma imagem clichê que acompanha a história da fotografia – o homem solitário refletindo diante de uma imensidão qualquer, vista em perspectiva – e ao qual a maioria dos fotógrafos já se rendeu um dia. Clichês têm significado, dizem os mestres de Frankfurt. Banalizados, transformados em vestígios e de leitura imediata. Para o iniciante e jovem fotógrafo Thadeu Paz, aquele clichê faz sentido, ele se vê representado nele. O clique registra a cena e ela não é mais a de um menino sentado numa escada frente a uma cidade: é a do fotógrafo representando a si mesmo diante de um mundo frio e impessoal com o qual vai travar uma intensa disputa até a sua morte, dois anos e meio depois, no início dos anos 80.

Do pouco que se sabe sobre Thadeu Paz, o autor desta foto em 1977, o confiável, porque contado por amigos, é que a cidade de Rio Branco no Acre do início dos anos 70 era sufocante para o jovem filho de militar. Não havia perspectivas e o horizonte era encoberto pela floresta. Sentia-se cercado, suas angústias, sonhos e comportamento não encontravam eco no ambiente. Então, como muitos de sua geração, um dia embarcou para o Sudeste. Tentou o Rio, mas foi em São Paulo que encontrou não só seu lugar, como também a fotografia, instrumento que lhe permitiu dialogar com seus fantasmas e sua sexualidade, e onde conseguiu “tornar suportável o medo e o desejo” – tomando emprestada a definição de fotografia de Antoine D’Agata –  com os quais convivia. O medo e, principalmente, o desejo são os extremos que de forma pendular iriam caracterizar sua pequena obra, nunca inteiramente concluída.

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No inicio de 1978, quando procurou a revista Iris para o que hoje se chamaria uma leitura de portfólio, Thadeu tinha poucos meses de fotografia. Num dia qualquer do ano anterior, havia começado a frequentar os plantões fotográficos do Museu Lasar Segall, atividade dirigida pelo fotógrafo A. C. D’Ávila e que funcionava como uma espécie de curso e local para conversas sobre técnica e linguagem fotográficas. Empolgado e curioso, quando não estava no laboratório ou fotografando, passava horas consultando os livros de fotógrafos na biblioteca do próprio museu. Três meses depois já se transformara em um dos monitores dos plantões. Suas fotos, levadas à redação embaladas numa caixa de papel Kodak 18 x 24, algo comum a iniciantes na época, tinham sido feitas nesse curto período e já traziam muitas das características que começaram a se desenvolver durante os anos 70: liberdade formal, temática e de expressão, além de uma subjetividade indicativa de um forte desassossego em sua relação com o mundo.

Nos anos anteriores aos 70, não custa lembrar, a fotografia brasileira era, sumariamente, dividida em aplicada e artística, territórios com fronteiras bem definidas e com pouca ou quase nenhuma interrelação.  A aplicada era a terra dos profissionais, fotojornalistas e publicitários, e a artística comportava o reino do fotoclube e do hobbie. Os anos 70 mudaram radicalmente esse cenário estratificado.

A revista Realidade, lançada em 1966, teve um papel importante nessa mudança ao dar espaço para uma fotografia decididamente autoral, ensaística, poética, emotiva e sem compromissos com simulacros estéticos advindos de outras artes, e tampouco com a dita objetividade jornalística. Na publicação a fotografia era aplicada, “autoral” e “artística”.

Mas não foi só a Realidade que exerceu forte influência na mudança ocorrida nesse período. As publicações da Revista de Fotografia, da revista Fotoptica, em sua fase de grande formato, expandiram, amplificaram e expuseram essa nova percepção sobre a fotografia, percepção e prática que, se não era nova em outras geografias, aqui era uma novidade que atraiu o interesse de um bom número de jovens de classe média que não encontravam canais de expressão numa sociedade que se modernizava. E eram eles os frequentadores dos cursos livres e independentes como os do Masp, com Claudia Andujar, George Love e Roger Bester, da escola Enfoco, de Claude Kubrusly, da Imagem-Ação, de Claudio Feijó, do laboratório da FAU-USP, com Cristiano Mascaro.

A ampliação de espaços expositivos no Masp, no MIS e no Centro Cultural São Paulo, um inédito Cartier-Bresson exposto no MAC e as fotogalerias já no final da década abriram outra perspectiva para o fazer fotográfico. Um estímulo à expressão pessoal, à manifestação político-ideológica, às descobertas. Nos temas, surge um encantamento pelo país, suas festas populares, seus problemas, seu povo, e os ensaios entre o documental e o jornalístico se tornam uma de suas vertentes mais importante. Havia também espaço para experimentações formais não preocupadas com os cânones passados, para o diálogo estético e para a expressão subjetiva, outra vertente de muitos adeptos.

Havia uma busca intensa por representar um ambiente que sofria mudanças rápidas e profundas na ressaca dos anos 60, na urbanização célere que alterava as paisagens, na vida sob a ditadura, sob o rock e sob a MPB, e uma vontade também de se representar dentro desse mundo semovente e repleto de tensões de todos os calibres.

É significativo dessa década de novos canais expressivos que uma das principais discussões que a atravessa tenha sido feita em forma de pergunta: a fotografia é arte? Respostas apaixonadas agora identificavam seus autores como fotógrafos, sem outra qualificação agregada. Era uma identidade nova, poderosa, que não se confundia mais nem com a profissional, nem com a dos “hobbies”. E trazia embutida uma certeza: a fotografia, muito antes de ser sequestrada pelas teias teóricas contemporâneas, deixava, em definitivo, a periferia das artes plásticas.

É dentro desse ambiente onde a fotografia respirava por conta própria, ganhava identidade como expressão e era submetida a questionamentos sobre seu status que se encaixa a pequena produção de Thadeu. Um trabalho fragmentado, mas visceral, catártico, atemporal. Ele faz da fotografia uma obsessão, uma necessidade vital para articular um discurso sem palavras sobre a sua relação intranquila com o mundo exterior.

Começa fotografando a cidade de São Paulo. Seu equipamento é um kit básico: uma câmera Reflex e uma objetiva 35 mm, distância focal tornada célebre por ser uma preferência de ninguém menos que Cartier-Bresson nos seus momentos decisivos. Algum tempo depois, um filtro vermelho e um laranja seriam acrescentados com a intenção de replicar sob os trópicos alguns dos tratamentos tonais do fotógrafo Bill Brandt.

Seu equipamento é leve e ágil para a fotografia de rua, mas sua cidade é geométrica, de linhas retas e curvas, formas definidas e claras. Thadeu explora algumas das inumeráveis configurações que uma cidade permite, isolando suas formas, concentrando-se nelas e não nos seus entornos, nos motivos ou causas que as criavam. É uma fase de domínio da fotografia, do seu fazer, da busca incessante por imagens, da ansiedade por encontrar o formato expressivo para suas emoções. Seu diálogo com a cidade é tímido, ainda formalmente rígido e construído com a apropriação da face externa, objetiva e distante de uma cidade subjetiva e humana.

Suas fotos urbanas não retratam pessoas, e nelas a ação é inexistente, ou existe como ato de fuga. Quando o elemento humano entra em cena, é sempre fugidio, se dirigindo para algo que está fora do enquadramento, ou é flagrado de costas, indiferente ao fotógrafo. Assim, ou se afastam da câmera como se quisessem evitar a proximidade do fotógrafo, ou desconhecem sua presença. Encenam com sua presença-ausência nas imagens a representação de um dos piores fantasmas do fotógrafo: a rejeição.

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Somente os poucos e muito próximos amigos sabiam de sua homossexualidade, que nunca foi assumida publicamente. Sem deixar de ser homossexual, se incriminava por ser. De acordo com o relato da fotógrafa Lucila Wroblewski, sua amiga mais próxima, companheira de viagens e eventual modelo de suas fotos, a reprovação contida no discurso moral então vigente o fazia sentir-se num desvio, num dilema sem solução e com o qual tentava dialogar através da fotografia.

Esse diálogo silencioso, íntimo, fica mais claro logo em seguida, quando abandona o cenário urbano e inicia uma série de fotografias que uma exposição no Masp, organizada pelos fotógrafos Miro e Luís Crispino, logo após sua morte, chamaria de Verão. Não chega a ser um ensaio, como nenhum de seus trabalhos chegou a ser, e sim a ampliação dessa conversa interior e ininterrupta buscando uma redenção através das imagens em que a estética é o instrumento que organiza o discurso.

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É antes dessa série que Thadeu se apaixona pelo trabalho de Bill Brandt (1904-83). Brandt é autor de imagens densas, de tons dramáticos, céus escuros e cenários obscuros, e também de retratos contrastados e nus luminosos, parciais, em que apenas partes dos corpos são exibidas e tratadas como formas e volumes. Thadeu logo se apropria da dramaticidade, da paleta de tons escuros, dos céus densos, e passa a usá-los. É uma apropriação direta, visível, ao contrário dos nus, dos quais aproveita a ideia dos cortes, da não identificação dos modelos, para então expor, à sua maneira, os próprios desejos.

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Já não é mais do medo que sua fotografia trata. O desejo libera o olhar e o olhar busca construir a narrativa da essência do próprio desejo que é, no limite, a excitação pela vida. E é assim que as imagens, realizadas durante um verão em piscinas e praias, se expandem no entorno delas, se humanizam, integrando seus personagens (e às vezes seus objetos) a uma representação de sentimentos vivos e inquietos. Por isso a série não se importa de, às vezes, se mostrar ingênua, quase doméstica, e em outras se revelar erotizada em arrepios de peles desnudas, em recortes de corpos masculinos musculosos e seminus. O que importa é que o fotógrafo encontrou a fotografia que lhe permitiu dialogar com seus segredos mais íntimos e expor o desejo que não se limita apenas à sexualidade, mas expressa-se também numa alegria de estar vivo.

Thadeu Paz morreu meses depois de fazer essas fotos, no início de 1980, aos 31 anos.///

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Moracy Oliveira é jornalista. Foi crítico de fotografia do Jornal da Tarde e editor das revistas Iris e Fotoptica, duas das publicações de fotografia mais importantes no Brasil.

Digitalização e tratamento de imagens: Lucila Wroblewski

GALERIA é a seção do site da ZUM dedicada a ensaios e séries fotográficas.

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