Minsk
Publicado em: 19 de junho de 2013No meio do mapa da Europa há um ponto cego. Não tem litoral nem acidentes geográficos, nunca vi foto, parece que ninguém vai lá. A Bielorrússia me atraía justamente por tudo aquilo que eu não sabia.
Minsk só existia no Gran Atlas Aguilar de meu pai e na minha imaginação. Talvez fosse até mais confortável continuar apenas fantasiando a cidade, provavelmente ela é muito menos interessante do que a cidade na minha cabeça.
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O nome me atrai de forma irresistível. Sou capaz de ir a um lugar apenas pelo nome. Minsk é da categoria de Arkhangelsk, Murmansk, Cluj e Dubrovnik. Chega a ser sexy.
Não é fácil chegar a Minsk. Precisa de visto, reserva de hotel e carta-convite de agência de turismo registrada no Ministério de Relações Exteriores da Bielorússia. Há poucos voos. Mas também é verdade que os funcionários do escritório consular no Rio de Janeiro são bastante simpáticos.
A única pessoa que esteve lá que eu conheço é meu amigo Gustavo Leal, uma autoridade em matéria de Rússia. Esteve em Minsk uma vez, chegou de trem, deu uma volta pelo centro e se aborreceu. Foi embora para Moscou no mesmo dia.
O senhor ao meu lado olhou toda a OnAir, a revista de bordo da Belavia Airlines, para se deter apenas no problema de xadrez, que ele estuda com o movimento dos dedos sobre o desenho do tabuleiro.
Em uma entrevista na OnAir, o conselho do embaixador francês: “Mulheres: nunca deixem seus maridos virem aqui sozinhos; homens: deixem as mulheres em casa”.
Troquei 100 euros por 1.110.000 rublos bielorrussos. Lembrei-me dos tempos do Sarney e da inflação, quando praticamente não havia moedas no Brasil. O maço de notas na carteira que às vezes não davam nem para uma passagem de ônibus.
Pode ser verdade que a Bielorrússia é o lugar mais parecido com o que deve ter sido a União Soviética. Não só nos prédios e no autoritarismo do governo, mas também na simplicidade e na frugalidade das pessoas. Revejo as fotos de Henri Cartier-Bresson da URSS nos anos 1950. A mesma luz, as mesmas roupas, as mesmas pessoas.
Não deve ser fácil para um bielorrusso definir-se a si mesmo. Não é Rússia, mas é quase. É Europa, mas não exatamente. A república foi declarada em 1918, e logo incorporada à URSS. Como país independente existe apenas desde o colapso soviético, em 1991. O nome significa literalmente “Rússia branca”.
O idioma bielorrusso é parecido com o russo e o ucraniano, mas hoje é falado por uma minoria, embora todo mundo entenda. O russo predomina na TV, nas ruas, nas cidades e no governo. O processo de russificação do país deixou marcas permanentes na cultura e agora parece tarde para voltar atrás. Em Minsk quase ninguém fala o bielorusso. É o que me disseram.
Percebem-se claramente dois modelos de arquitetura. Um primeiro estilo palaciano, triunfante, com arabescos, balaustradas e portais. Pode ser chamado de classicismo socialista ou simplesmente stalinista. O outro estilo é modernista, de linhas retas e funcionais, herdeiro do construtivismo. Usa vidro, concreto e metal. O curioso é que parecem radicalmente opostos, mas pouquíssimo tempo separa um do outro.
Aliás, ninguém consegue classificar a arquitetura daqui sem o corte ideológico. É só pegar os substantivos realismo, classicismo e modernismo e os adjetivos socialista, stalinista, comunista e soviético e juntar do jeito que quiser. Aqui a arquitetura é politizada como em nenhum outro lugar, como se os prédios carregassem consigo todo o discurso político. É a arquitetura como manifesto. Só não vale modernismo stalinista.
O presidente Alexander Lukashenko está no poder desde 1994 e, por causa dele, o país carrega a pecha de ser “a última ditadura da Europa”. Acusam-no de ter fraudado as eleições, de perseguir a oposição e de calar a imprensa. É persona non grata na Europa, para onde não pode nem viajar. Ele mesmo parece não se preocupar. Desdenha da Europa, dos Estados Unidos e até da Rússia. Basicamente, não quer saber de palpite.
Lênin está no pedestal em frente ao palácio presidencial. Parece orgulhoso e desafiador como se nada tivesse acontecido.
A Agência de Segurança do Estado ocupa um belo edifício da Avenida da Independência. É mais conhecida como KGB.
O Museu Bielorrusso da Grande Guerra Patriótica (com esse nome extraordinário) fica na Praça da República. Particularmente impressionantes são as fotos dos enforcamentos, em praça pública, dos acusados de resistir à ocupação nazista. Enforcavam o suspeito e ainda colocavam um cartaz no pescoço que dizia: “este é um partisan que desafiou a autoridade alemã”.
Do ponto de vista museográfico é mais complicado. Salas e salas com vitrines de madeira, dioramas de batalhas, condecorações e fotos em preto e branco com longas legendas, em russo, naturalmente. Tudo meio empoeirado, mal iluminado e desbotando. Sem falar das senhoras funcionárias, dos telefones vermelhos, do mapa do museu, do livro de registro. Parece uma cápsula do tempo, e seria uma excelente locação para um filme de espionagem. É ao mesmo tempo divertido e triste. Deve haver uma forma mais atual de glorificar o passado e torná-lo interessante ao presente.
Minsk é, na verdade, muito antiga. Existe desde o século 11 e sofreu como poucas cidades no mundo. Foi ocupada pelos tártaros em 1505, pelos franceses em 1812, pelos alemães em 1918, pelos poloneses em 1920 e quase totalmente destruída na Segunda Guerra Mundial. Viver espremido entre Polônia, Alemanha e Rússia realmente não é uma boa ideia.
A Segunda Guerra Mundial, aliás, aqui atende por outro nome. O que vale é a “Grande Guerra Patriótica”, que trata exclusivamente do conflito entre URSS e Alemanha e vai de 1941 a 1945. É como se o front ocidental nem tivesse existido. Entende-se. Uma visita ao museu da cidade deixa bem claro que eles não tiveram tempo para se preocupar com mais nada. O país perdeu um quarto de sua população. Quase 10 mil cidades e vilas foram destruídas.
A cidade que se vê hoje é produto da intensa reconstrução que se seguiu à guerra, quando 80% da cidade foi destruída. Essa espécie de tabula rasa urbana acabou oferecendo uma oportunidade para o governo erguer uma nova cidade à sua imagem e semelhança. Mostraram assim uma incrível capacidade de recuperação, além de impor o estilo que melhor convinha a Moscou.
É fácil falar da falta de esquinas, das longas avenidas e dos blocos residenciais. Mas é preciso entender a cidade da perspectiva de quem ao mesmo tempo venceu a guerra, mas foi destruído por ela. A arquitetura triunfante precisou celebrar a vitória porque era a única coisa que restara. Os blocos residenciais em série são, de certa forma, a tentativa desesperada de abrigar quem perdeu tudo.
Os monumentos são belíssimos. Os bielorrussos parecem venerar os generais e os poetas com a mesma reverência. Cada um luta com as armas que tem.
Devo ser o único turista em todo o país. Pelo menos não vi nenhum outro. Nem um. É uma sensação curiosa, como se eu fosse um inseto que entrou num palácio, ou um sertanista a fazer um primeiro contato com uma tribo indígena.
Na TV estatal, as notícias do dia: uma reportagem sobre o porto da Lituânia, a cobertura política de Moscou, discursos de Lukashenko (na íntegra) e a previsão do tempo. Amanhã, 16 graus negativos e muita neve.
O frio é brutal. A mera existência e regularidade do inverno devem definir a personalidade das pessoas e interferir no curso da história de uma maneira que tenho muita dificuldade de compreender. Posso até experimentar, mas nunca vou saber exatamente o que significa, por exemplo, a chegada da primavera.
O frio também é diretamente proporcional ao tempo que se permanece na rua. Quer dizer, ao sair pela porta, parece suportável, mas meia hora depois os dedos começam a ficar duros. Cada caminhada exige uma logística de paradas estratégicas para descongelar, espécie de pit stop.
Com o tempo, vou distinguindo qualidades da neve. Há, basicamente, uma neve novinha e fofinha, que acabou de cair e é boa de brincar. Outra, dura e lisa, por onde as pessoas caminham, é boa para escorregar. E ainda outra, suja e melada, por onde passam os carros, e que é boa para ficar imundo. Visualmente, é tudo muito branco. Com o perdão da metáfora, parece um sonho.
Fui ver o impressionante edifício da Faculdade Politécnica. É monumental e ameaçador, parece um navio de guerra futurista encalhado na neve. Por dentro é como uma faculdade qualquer. Fui conduzido ao topo por duas meninas tímidas e engraçadas, Ira e Tania, que eu conheci na máquina de café. Disseram que eu era o primeiro brasileiro que elas encontravam na vida. É o outro lado da moeda.
No Hotel Yubileny, o telefone do quarto toca toda noite assim que entro. Do outro lado uma voz de mulher entediada pergunta: “sex massage”? Mais tarde, no bar estilo country, vejo as meninas, todas de bota, fumando, sentadas no balcão. Os homens ainda estão no cassino, no mesmo piso. Entre uma coisa e outra há um balcão de câmbio 24 horas. Mulher, jogo, bebida e dinheiro. Um clássico.
A comida é horrível. Sopa de cogumelos com creme, carne de porco no café da manhã. Muito repolho, nabo, beterraba e pepinos em conserva. O prato mais típico do país é uma panqueca frita de batata, farinha e ovo que se chama draniki. Por outro lado, a vodka é inesquecível.
O Mcdonalds está sempre cheio. É, claramente, um ponto de encontro e de referência. E praticamente a única palavra de comum entendimento entre mim e os taxistas.
O país vai abrigar o campeonato mundial de hóquei no gelo e está orgulhoso. Por isso e por Victoria Azarenka, tenista número 2 do mundo. Aos poucos o esporte vai colocando a Bielorrússia no mapa.
O povo tem um aspecto sério e cansado. Mas deve ser por causa do frio. É preciso andar rápido e objetivamente. A quantidade e o peso da roupa também não ajudam.
As mulheres são realmente deslumbrantes: loiras, altas, olhos verdes. Em Moscou o povo é mais miscigenado do que aqui. Diria até que os russos da Bielorrússia são mais russos que os russos da Rússia.
O contato é difícil, quase ninguém fala inglês e eles não se encantam muito com os estrangeiros. É uma das sensações mais completas de incapacidade, essa de estar ao lado de alguém e não conseguir falar nem o básico, como se milênios de civilização não servissem pra nada.
As duas linhas de metrô se cruzam na esquina da belíssima Avenida da Independência com a Avenida Lênin. É bastante profundo e muito barato. Como os bancos são colocados longitudinalmente, as pessoas ficam sentadas de frente umas para as outras. É o lugar perfeito para estudar fisionomias e ficar especulando sobre a vida alheia. O que fazem? Para onde vão?///
Tuca Vieira (1974) é formado em letras pela USP. Fez parte da equipe de fotografia do jornal Folha de S. Paulo de 2002 a 2009 e, atualmente, é fotógrafo independente, desenvolvendo projetos que envolvem cidade, paisagem urbana, arquitetura e urbanismo. É autor do livro As cidades do Brasil: São Paulo (2005) e vencedor do Prêmio Porto Seguro de Fotografia (2010). Tuca esteve em Minsk no inverno de 2012, e fez as fotos acima com a câmera do celular.