As esculturas temporárias de Luiza Sigulem
Publicado em: 13 de fevereiro de 2025Luiza Sigulem começou a fotografar há 20 anos, mas um acidente a fez mudar de perspectiva – literalmente. Paulistana, estudou fotografia no SENAC e ciências sociais na Universidade de São Paulo. Assim que começou a trabalhar em uma revista, veio sua primeira frustração: ela tinha aquela ideia romantizada de ser fotógrafa de guerra, ou, pelo menos, de rua e de protestos. E se viu fazendo retratos. No primeiro jornal de grande circulação no qual trabalhou não era diferente. Segundo ela, as mulheres faziam retratos e os homens iam para a rua.
No começo ela não gostava, sentia vergonha de fotografar pessoas posando. Aos poucos, foi se soltando, entendendo como fazer seu fotografado se soltar e, mais que isso, passou a gostar daquilo e entender que sua câmera era um instrumento poderoso para tecer relações entre ela, seus fotografados e o mundo.
Começou a fazer, fazendo, sem ter sido assistente de ninguém, como ela mesma diz, “na cara e na coragem”. Cursou fotografia quando já trabalhava. Mergulhou neste campo porque tinha muita curiosidade a respeito da família de seu pai. Ele e sua mãe se separaram quando ela era muito nova, tinha apenas três anos de idade, e ele saiu de casa. Ele é um sobrevivente do holocausto, nasceu na Polônia e veio para o Brasil com sua mãe e o pai adotivo.
Luiza não sabia “nada de nada” da vida do pai antes da imigração. Quando ele saiu da casa onde moravam, deixou muita coisa para trás, entre elas uma caixa de fotos que devem ter sido da avó dele. Entre as imagens, existem algumas em que ele aparece pequeno ainda na Polônia. Luiza olhava para elas desde sempre e se perguntava “como no meio da guerra eles conseguiam tirar fotos?”. Talvez por isso sua vontade de querer fazer fotos de guerra, sugere a mulher que tem hoje 39 anos. Conseguir fazer algo que lhe parece impossível.
Além dele pequeno, havia fotos mais antigas ainda, de outras pessoas da família. Seu pai também viveu na Nova York dos anos 1970 e fotografou muito. Luiza foi construindo a narrativa da vida dele através das fotos. E decidiu, a partir disso, se tornar, ela mesma, uma fotógrafa.
Disso ela só tem consciência hoje em dia, conta, depois de muitos anos de análise, coisa que ela também foi estudar e fazer formações para atuar como psicanalista. Sigulem comenta que em seu próprio processo de análise começou a se dar conta do que gosta e dos motivos pelos quais gosta de certas coisas. Um exemplo disto é o filme Blow-up – Depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni. Hoje entende que o filme é questionável, “o mundo mudou e certas coisas envelheceram mal”, mas gosta da figura do fotógrafo e do papel importante das imagens que ajudam a preencher uma lacuna, como a lacuna que existia em sua própria vida.
Entendeu que o que não era recebido, repassado e transmitido dentro da família através das palavras, ela poderia reconstruir através das imagens. Segundo a própria, algo que faltava, que estava muito ausente.
Em seus dez anos trabalhando como fotógrafa gostou sobretudo das pessoas que conheceu. Como sempre foi tímida, a câmera acabava sendo uma mediação com o outro, que a permitia se aproximar, estar com o outro e estabelecer uma relação com pessoas que talvez nunca conheceria. Fotografou Gilberto Gil, Milton Nascimento, Tom Zé e o fotógrafo Miguel Rio Branco – que naquela época era uma referência para ela.
Além disso, a fotografia a permitia acessar lugares que nunca acessaria sendo uma mulher de classe média alta e branca. Conheceu sua própria cidade de outro jeito, visitou lugares aonde não teria chegado de outra forma.
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De psicanálise, sempre gostou. Prestou psicologia, passou, ficou na dúvida, mas acabou não fazendo. Lia Freud, fazia análise e começou a se animar com a teoria. Sua mãe é psicanalista e Luiza via naquilo a oportunidade de uma profissão mais a longo prazo, um caminho talvez mais claro de como seguir a vida. Conseguia se imaginar aos 70 anos atendendo, mas não necessariamente fotografando.
Em algum momento chegou a acreditar que a fotografia iria acabar, que a imprensa estava acabando e mais que isso, queria focar em projetos pessoais para além do fotojornalismo. Na vida dupla que passou a levar, se dividindo entre Freud e a foto, veio um momento de crise: não teria como continuar, era meio fotógrafa, meio analista, se dividia entre o estúdio e o consultório, mas era meio as duas coisas, nenhuma delas inteira, ninguém sabia explicar o que ela de fato fazia. Assim, decidiu parar de vez com a fotografia, precisava focar em uma das duas coisas. Parou de fotografar a ponto de deixar a câmera encostada juntando pó e assim foi levando.
Em 2020, um mês antes da pandemia, sofreu um grave acidente. A narrativa de tudo que aconteceu, o hospital, as visitas que recebeu e o começo da recuperação eram imagens borradas pelo trauma, pela dor, pelos remédios e resto de anestesia dos tantos pós-operatórios pelos quais passou.
Foram muitas etapas e ela decidiu registrar. Registrou para ter algo para si, para ter um dispositivo que a ajudasse a construir uma narrativa de algo grande que acontecia em sua vida, que estava sendo muito difícil e de que as memórias eram muito embaralhadas. Não lembra das visitas que recebeu nos muitos dias de hospital, mas tem fotos em seu celular de cada uma.
Mais tarde, a fotografia voltou também com a gravidez e a chegada da maternidade. Conta que naquele momento aconteceu um deslocamento, “a maternidade faz isso nos papéis sociais”. Foi a partir dela que Luiza se sentiu tranquila, finalmente, para acomodar as duas coisas, fotografia e psicanálise. Sem ser um conflito, voltou a fotografar com paixão, com desejo.
Montou um estúdio em casa e entre os atendimentos de pacientes foi chamando pessoas próximas para serem retratadas. Fotografava seu filho e quem vinha visitar. E ficava muito feliz quando alguém pedia um retrato para uma capa de disco ou orelha de livro. Era uma demanda. Como no fotojornalismo, sua foto era necessária. A partir daí, decidiu que precisava de projetos seus, nos quais mergulharia semanalmente ou cotidianamente, para ter a fotografia inteira de volta em sua vida.
Começou a tocar dois projetos paralelamente. O primeiro deles, aceitando de vez a vida dupla: fotografou consultórios psicanalíticos. Tão parecidos e tão diferentes ao mesmo tempo, numa disposição tão clichê e, apesar disso, que carregam as marcas de seus donos. Um setting com elementos que se repetem: o divã, a poltrona, os livros nas prateleiras, mas com cores e objetos que variam.
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Mas ela queria ir além, gostaria de voltar a fotografar desconhecidos com a câmera intermediando sua relação com eles. Mais que isso, por conta do acidente, sua mobilidade ficou muito reduzida e ela tinha vontade de estar no espaço público, tão difícil para ela hoje. Habitar lugares desconhecidos com a câmera poderia ser sua estratégia para sair de casa. Foi aí que sentiu na pele o que já sabia, descobriu com o próprio corpo que São Paulo é uma cidade muito pouco acessível para quem tem certos tipos de deficiência.
Chamou um assistente e tentou reproduzir o fundo de tecido que usava para fotografar os amigos no estúdio improvisado de casa. Montou tudo na rua, o estúdio vazado que mostra o entorno, a cidade, a rua, o espaço público. Descobriu um jeito novo de estar na cidade.
Da cadeira de rodas, que entendeu que poderia usar para se locomover e para evitar as dores de ficar muito tempo de pé, propôs uma inversão de perspectiva da pose tradicional. Se o corpo num retrato cai num clichê, ela propunha fugir do tradicional a partir do limite de 1,40m, altura na qual ela fica quando está sentada. Soluções novas para se enquadrar tinham que partir dos próprios fotografados que passaram a dobrar suas colunas e abandonar o “normal” da postura ereta.
A maioria das pessoas andam de pé, eretas, é assim que caminham pela cidade e interagem com ela, mas com a proposta de Sigulem eram desafiadas a performar novas posições de corpo para caber na foto. Robert Mcruer, pesquisador norte-americano que estuda mobilidade dissidente e não padrão virou uma nova referência para ela. Ele fala de como corpos com deficiência transformam o modo como percebemos o espaço e desafiam as normas sociais. A deficiência, segundo ele, passa a ser forma subversiva de interação com o espaço. E foi isso que Luiza buscou.
Todos teremos alguma redução ou dificuldade com a mobilidade em algum momento da vida, sobretudo ao nos aproximarmos da velhice. Desafiar a convenção da postura e da presença no espaço urbano é o que Luiza propõe com suas imagens. Ela pretende pensar os limites tradicionais da escultura e do retrato, o padrão, e propõe um corpo que se enquadra em seu fundo rosa, tornando-se uma escultura temporária.
Ao se aprofundar no assunto, pesquisar e a buscar referências, sentiu que tem muita gente falando de pessoas com deficiência, claro, mas nem tanto no campo das artes. Para ela, a sensação é de que a pauta “ainda não pegou de fato”. Além disso, apesar de ser lei, pelo menos em São Paulo, a preocupação com a mobilidade ainda é pouca: da forma com que as exposições são pensadas, por exemplo, ao deslocamento livre pela cidade, que deveria ser garantido a qualquer um. A maioria dos espaços são construídos para pessoas eretas que andam sobre duas pernas. Ela espera que o momento de pensar corpos dissidentes chegue, e logo.
O acidente que sofreu foi em uma casa de escalada. O trauma foi grande, ela caiu de nove metros de altura, quebrou os dois pés, calcanhares, joelho, costelas e teve sérias lesões nos nervos. Viveu com muita dor e dificuldade de andar, mas tinha certeza que em algum momento, seu corpo “voltaria ao normal”. Lutou muito para não usar a cadeira de rodas, não queria aceitá-la. Com muita fisioterapia e remédios certos, tinha a ideia fixa de voltar a ter “o corpo de antes”.
Passou a pandemia fechada e focada na tentativa e no fim dela seu filho nasceu. Quando as vacinas chegaram e seu filho já não era um bebê tão pequeno, tentou voltar para o mundo e percebeu que não conseguia mais acompanhar sua “vida de antes” da mesma forma. Sentia muita dor e, por isso, passou a deixar de fazer certas coisas e frequentar alguns espaços.
A fotografia então voltou para a salvar: primeiro dentro de casa, sentada, em um estúdio improvisado e depois para ganhar as ruas – literalmente – de novo. Aquela que sempre tinha dado para Luiza a possibilidade de ir para o mundo, mais uma vez, a tirou de dentro de casa. Seus retratos em fundo rosa são seu pretexto para voltar a entrar em contato com pessoas desconhecidas e ocupar o espaço público.
Seu assistente aborda os transeuntes que caminham pelas ruas, Luiza explica um pouco sobre o projeto e sugere que experimentem sua perspectiva, sua altura, habitar um outro corpo, outra pose, outro jeito de estar no mundo, abaixo da linha do fundo montado, se moldando a ele. Assim nasceu Jeito de Corpo, ensaio feito da Avenida Paulista à Represa de Guarapiranga, passando pelo metrô Tiradentes, pela Praça da República e pelo Largo de Pinheiros.
A cidade, assim, passa a desempenhar um papel também. E o cenário urbano se transforma a partir daquela interação entre a fotógrafa na cadeira de rodas e quem posa para ela. O fundo se impõe como barreira, chegando até a gerar desconforto físico em alguns, que também expõem suas limitações: um joelho que dói, o calcanhar que já esteve quebrado e nunca mais foi o mesmo ou um ligamento rompido. Cada novo corpo que ela enquadra passa a contar um pouco de sua história também.
As interações vão dos parabéns à fotógrafa, “que é uma heroína” por estar fazendo aquilo ali, daquele jeito, de uma forma muito capacitista, segundo ela mesma, a pessoas verdadeiramente disponíveis, que brincam de experimentar e pensar o corpo, com seus limites e potências, se deixando ser moldadas pelo olhar dela. Um processo colaborativo e afetuoso em uma cidade tão dura como São Paulo.
Para Luiza Sigulem, a escolha é individual: se você aceita viver em um mundo em que nem todos cabem, nada muda. Quem força, experimenta e estica os limites, busca a mudança. “O normal deveria ser todo mundo poder circular livremente pela cidade, mas na prática não é isso que acontece”.
Jeito de Corpo, o ensaio que aparece nas fotografias aqui publicadas, ganhou o prêmio Marc Ferrez da Funarte no fim de 2024, foi contemplado por um edital do Proac-SP para a produção de uma exposição individual que terá curadoria de Juliana Caffé e vai ser exposto no Centro Cultural São Paulo (CCSP) em março deste ano. Estejamos atentos.
Quem buscou a fotografia em um primeiro lugar para criar narrativas onde faltava e preencher vazios em branco, a busca agora para ocupar outros espaços, a cidade, os olhos e as mentes que circulam por ela. ///
Paula Sacchetta (São Paulo, SP, 1988) é documentarista. Dirigiu o longa-metragem Precisamos falar do assédio, além de curtas e médias metragens, e de algumas séries de TV. Formada em jornalismo, colabora com diversos veículos, escrevendo sobre fotografia, cinema e literatura.