Ensaios

Laços de família

Ocean Vuong Publicado em: 22 de agosto de 2024

A seguir, o escritor vietnamita-americano Ocean Vuong tece uma trama de dois meses de julho: no primeiro, se deleita em meio à beleza cotidiana do salão de manicure de sua mãe Rose, em Hartford. No segundo, o fio da crônica são os úmidos dias passados com seu irmão na Nova Inglaterra, 15 anos depois, durante o luto pela morte dela. Aqui, o festejado poeta reflete sobre sua primeira incursão na fotografia e a sinistra plasticidade do tempo.

Comecei a tirar fotografias quando era calouro na faculdade comunitária. Um amigo que tocava baixo em uma banda punk local havia acabado de comprar uma Nikon D80 de 2006 e, como eu tinha a mesma propensão à música de um extintor de incêndio, me pediu para registrar seus shows, que aconteciam em porões escuros e bibocas espalhados pela rodovia I-91. Após semanas disparando meu flash junto a rodinhas de mosh, imprensado contra a parede e suando em bicas, começou a acontecer uma coisa estranha. Passei a ver uma espécie de mágica no enquadramento, algo que eu só entenderia mais plenamente depois, como escritor: que, embora a obra de arte possa ser impulsionada pelo contexto, a propulsão narrativa é igualmente grande – ou talvez maior – com a omissão de informações. A lente 35 mm aparta o mundo, deixando apenas um pedaço, de modo que o observador deve completar com suas próprias ficções. Por que será que, ao ver certas fotografias, também consigo ouvi-las, sentir o cheiro do ambiente, às vezes até alcançar as palavras ditas – o tom, o timbre?

Três anos depois, pedi a câmera emprestada ao meu amigo para tirar fotos da minha família – e ele me fez esse favor. Em um dia escaldante de julho de 2009, quando voltei para casa após meu primeiro ano estudando no Brooklyn College, levei a Nikon ao salão de manicure de minha mãe, Rose, para fotografar as funcionárias (minha mãe, minha tia Sen e a amiga delas, Phuong) enquanto trabalhavam, comiam, riam, olhavam ao longe pela janela em momentos de tédio e ociosidade, e cuidavam de minha prima Sara, à época ainda um bebê. Em certo momento, em um episódio de puro e feliz acaso, meu primo Victor passou ali, horas depois de ser liberado de um período de dois meses de reabilitação.

Eu esperava voltar no outono para registrar o salão em outra estação, inspirado pelas fotos dos meeiros do Alabama feitas por Walker Evans em reportagem com James Agee e pelo trabalho documental de William Gedney e Gordon Parks (que é também um bom romancista). Mas, três meses depois, com a recessão histórica varrendo o país, minha mãe declarou falência, vendeu o negócio, e tudo que ficou de fora desses enquadramentos desapareceu.

Voltando a 2006, uma semana antes do pedido para fotografar aqueles shows de punk, visitei a biblioteca da minha faculdade comunitária e comecei a folhear livros de fotografia. Foi ali que descobri referências como Fan Ho, Joel Sternfeld, Stephen Shore, Nan Goldin, Corky Lee, Robert Frank, Daido Moriyama, William Christenberry, Larry Fink e Lisette Model. Um desses livros era Reflections in a Glass Eye: Works from the International Center of Photography Collection [Reflexos em um olho de vidro: obras da coleção do Centro Internacional de Fotografia], de 1999, uma investigação que, utilizando subgêneros como princípio organizador, mostrava trabalhos notáveis nesse meio. Ao chegar à seção de “natureza-morta”, com sua esperada sequência de imagens de produção agrária, fachadas romanas e objetos ornamentais, incluindo o infame Piss Christ [Cristo em mijo] de Serrano, deparei com o que de início me pareceu um busto esmagado. Ao ler a legenda, logo descobri que se tratava da cabeça de um vietnamita desconhecido alvejado na boca, que jazia em um campo durante a Guerra do Vietnã.

Decomposed Face of a Dead North Vietnamese Solider, Hue [Rosto desfigurado de um soldado norte-vietnamita morto, Hue] é um registro feito pelo fotógrafo Donald McCullin em 1968 (o ano em que minha mãe nasceu). Eu resisti ao impulso de desviar o olhar e passei alguns instantes estudando o rosto, seus contornos esgarçados pela velocidade da bala, o brutal close que expunha os dentes arruinados do homem, evidenciando sua falta de acesso a cuidados dentais durante a guerra, o colonialismo e a fome; então olhei através da janela da biblioteca, por onde a opulenta luz do outono filtrada por um pinhal pontilhava as mesas de madeira, e fechei o livro.

Por que será que a boca, contorcida pelo projétil, como se tivesse sido escancarada por um dedo, me lembrava das “caretas” zombeteiras que as crianças fazem nos playgrounds? Por que aquilo parecia uma piada cruel? Pergunto agora o que não sabia perguntar então: se aquele fosse um soldado estadunidense com seu rosto rachado, desfigurado, teria eu o encontrado em uma coletânea de naturezas-mortas de um livro de arte? Eu me questiono, antes de tudo, se a fotografia teria sido tirada, e de tão perto.

Isto não é um ataque a McCullin – seja qual for nossa opinião sobre a fotografia de guerra, há razões e contestações muito bem embasadas a respeito de seu propósito –, e sim uma pergunta sobre como a arte “sobrevive”, e, mais além, como o tratamento arquivístico pode se tornar um meio complicado de reificação contextualizada. Embora eu esteja certo de que o livro datado não mais reflete as perspectivas curatoriais do ICP, a antologia levanta uma questão histórica importante: sob que parâmetros, estabelecidos por quais pessoas, um cadáver racializado é estetizado como uma natureza-morta?

Em meio a imagens de galos, galhos trazidos pelas águas, pernis, pêssegos e maçãs suculentas – motivos renascentistas por excelência a partir dos quais a natureza-morta derivou –, há, em macabro deslocamento, a cabeça de um homem que combatia a invasão ilegítima de seu país por uma potência imperial. Dado que o código semiótico de um índice influencia o significado de um objeto, o que aconteceria, por exemplo, se essa foto fosse colocada na categoria “retratos”, ou em “artefatos industrial-militares”, ou em “autópsias”, ou, para tomar de empréstimo outra seção daquele livro, em “vida cotidiana”?

Não é nada incomum para crianças e jovens estadunidenses de origem vietnamita se verem representados nos meios de comunicação como cadáveres, com frequência mutilados a tal ponto que se tornam indiscerníveis uns dos outros; foi o que ocorreu quando eu, aos 15 anos, cliquei em um link da Wikipedia e fui atordoado por uma foto digitalmente ampliada do massacre de Mỹ Lai: as poças de sangue, os dedos das mãos e dos pés, pedaços de roupas íntimas rasgados. Isso para não falar das centenas de cadáveres vietnamitas replicados em filmes de guerra hollywoodianos.

Olhando para trás, me pergunto se meu desejo de fotografar o salão de manicure era um impulso subconsciente, após ter me deparado com a foto de McCullin, de ver os rostos vietnamitas que me alimentaram, que eu beijei, as faces das quais eu limpei o suor enquanto trabalhavam, vivos. A câmera, então, se tornou quase uma ferramenta alucinatória para replicar os vivos enquanto eles percorriam o tempo. Que maneira melhor haveria de dizer a alguém “Viva, viva, viva” que não a de apertar o disparador uma vez após outra, criando a própria prova de alguém?

A natureza da morte na guerra se torna, então, a evidência de um povo que sobreviveu a essa mesma guerra. Estou aqui, podemos dizer, porque as pessoas nessas fotos, aquelas cujos nomes minha boca foi ensinada a preservar, não se tornaram cadáveres documentados por um fotógrafo em missão.

Relembro aquele dia específico de 2009 e penso que gostaria de ter composto aquelas imagens de outra maneira; queria ter sido mais ousado, lido mais, tido mais coragem, ter estado mais à vontade com o disparador. Mesmo sendo um único dia, sei que perdi tanta coisa. Tais arrependimentos só pioram com a distância. Porém, se produzir imagens é articular o desejo de alguém pelo mundo, como diz Moriyama, então o que eu quis nessas imagens, se for para escolher uma só coisa, foi que as pessoas ali enquadradas fossem como eram, mesmo que uma delas, minha mãe, não esteja mais em parte alguma que não ali.

Sentindo-me desolado e buscando um senso de encerramento que a arte tão costumeiramente possibilita, entrelacei esse ensaio fotográfico com imagens de meu irmão, Nicky, e cenas de nossa vida na Nova Inglaterra, todas registradas em uma mesma semana de julho de 2023, 15 anos depois. Tendo a ilusão da forma como algo quiçá mais gratificante que a realidade do caos, eu montei a sequência dessas fotos de modo a estender aquele dia perdido em 2009 numa espécie de “acordeão do tempo”, mimético da maneira como a memória funciona – como interrupção, assombrações, mitos – mas também como coisas lixiviadas pelas fronteiras imaginadas que construímos com os anos. Nesse sentido, espero enxergar o tempo como um colaborador, e não como o modo de apagamento de que tão frequentemente se fala. Quer queiramos, quer não, as memórias sobrevivem.

Elas nos fazem recordar que uma “natureza-morta” também é, mesmo que apenas na propulsão ficcional do enquadramento, natureza. ///

Fotos e texto © Ocean Vuong

Tradução do inglês por André Albert

Ensaio originalmente publicado na edição de verão da revista Cultured em junho de 2024

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