Josef Koudelka: vida que escapa à forma
Publicado em: 1 de agosto de 2024O caminho para se percorrer a série de fotografias Ciganos, de Josef Koudelka, tem poucas indicações além da própria trilha de imagens. Cada uma é acompanhada apenas por ano e nome do país, ou de cidades estranhas a nós, a maioria na Eslováquia: Bardejov, Svinia, Pezinok, Rakúsy, Žehra, Vel’ká Lomnica, Spišská Nová Ves. A estranheza desses nomes contrasta com o título da série, que provavelmente evoca associações em quem o lê, mesmo sem nunca ter conhecido alguém dos povos Roma. Seja lá que familiaridade o espectador tenha com o tema antes de ver Ciganos, ela será abalada pelas fotografias.
Uma forma de vida une os Roma retratados por Koudelka na década de 1960. Ela aparece na precariedade das condições materiais, na religiosidade e nas famílias numerosas, mas também na música, nos encontros e nos ornamentos das roupas e casas: cortinas rendadas, tapetes remendados, colchas e papéis de parede floridos e desgastados, flores sobre a mesa. Há homens de pés e sapatos imundos; outros de terno, gravata e colete, vestindo chapéus ou trajes folclóricos. Mas, enquanto as abordagens sociológicas em geral se concentram na forma e se esquecem da vida por trás delas, como afirma a antropóloga Veena Das, Koudelka privilegiou a vida em detrimento da categoria social.
Assim, Ciganos não são simplesmente “ciganos” – nem somente exemplares dos “povos Roma” – por conta desse excesso que escapa à representação, mas que a câmera de Koudelka consegue paradoxalmente capturar. A ponto de Bruce Davidson, que foi seu colega na célebre agência de fotografia Magnum, ter-lhe dito em 1974, segundo o diário de Koudelka: “Pare de se enganar. Você não fotografa ciganos. Por meio dos ciganos, você fotografa outra coisa.”
Em muitas imagens da série há diferentes camadas visuais, uma vida que acontece em volta ou por trás do plano principal, indicando que há mais além da foto, que sempre sobra algo não visto. Vestida de branco com um buquê de flores na mão, em frente a uma fachada descascada, uma menina encara a câmera com um leve sorriso. Por trás dela, duas mulheres mais velhas olham de dentro da casa, seus rostos enquadrados pelas pequenas molduras de madeira das janelas; uma delas parece desconfiada. Quem são elas, por que a menina está vestida assim, o que se passa naquela casa em Bardejov, na Eslováquia, em 1967?
Dois jovens tocam saxofone e acordeão; outro parece alheio, no canto. Nas paredes, entre figuras religiosas e um quadro emoldurado, um espelho reflete um casal dançando. Talvez seja uma festa, mas não se vê mais no cômodo apertado em Vel’ká Lomnica, na Eslováquia, em 1963. Em outra foto festiva, três músicos de paletó tocam violino e contrabaixo na rua. Atrás deles, pessoas se aglomeram animadamente, olhando para a mesma direção, à espera de algo que se aproxima, sem que possamos ver o quê. Talvez um desfile, em Strážnice, na República Tcheca, em 1966.
Seria Strážnice a origem inventada de Koudelka, por sua ligação com a música local? Em conversa com a jornalista Dorrit Harazim, o fotógrafo contou que sua “terra” é um lugar 50 quilômetros ao Sul de sua cidade natal. Ele esteve em São Paulo em maio, para a abertura de sua exposição no Instituto Moreira Salles de São Paulo – onde Ciganos está exposta junto às séries Exílios e Praga, 1968, com curadoria do próprio Koudelka, aos 86 anos.
No mapa, Strážnice fica a pouco mais de 100 quilômetros ao Sul de Boskovice, onde o fotógrafo nasceu, em 1938. Era fim da Segunda Guerra Mundial, as fronteiras políticas da Tchecoslováquia se modificavam rapidamente e os nazistas assassinavam centenas de milhares de Roma. Na juventude, além do interesse por fotografia, Koudelka aprendeu a tocar acordeão, violino e gaita e integrou um grupo de música folclórica, que o aproximou daqueles povos: “Nem sempre foi fácil fotografá-los, mas quando ouvia alguém tocando violino, sabia que tinha que recomeçar”, disse, na mesma conversa.
Koudelka recomeçou muitas vezes. Entre 1962 e 1971, visitou os mesmos vilarejos, sobretudo no Leste da Eslováquia. Dormia do lado de fora dos acampamentos ou das casas das famílias que fotografava. Primeiro em viagens mais curtas, geralmente para festivais folclóricos, até que, em 1967, deixou seu trabalho de engenheiro aeronáutico em Praga para se dedicar apenas à fotografia; os aviões, ele nunca fotografou. Os múltiplos retornos certamente foram centrais para fazer aparecer esse excesso que não cabe na imagem. Como numa improvisação musical que, para existir, depende de muito ensaio – palavra adequada ao método do fotógrafo.
Muito já se escreveu sobre como o trabalho de Koudelka em teatros de Praga, também na década de 1960, influenciou sua obra, especialmente Ciganos. O próprio fotógrafo costuma dizer que encara o mundo como um teatro. “Com os ciganos, também era teatro. A diferença é que a peça não tinha sido escrita e não havia diretor – apenas atores. Era a realidade, a vida. Eu não precisava fazer nada com aquilo. Estava tudo ali. Só o que precisava saber era como reagir”, afirmou em entrevista a Tomás Pospech, que escreveu sobre essa influência no livro Koudelka Theatre (Koudelka Teatro), publicado em 2021 pela Delpire & Co., em edição bilíngue (inglês/francês).
A associação por vezes soa simplista, como afirmar que o mundo é representação. Mas há algo mais nela, que passa por como Koudelka encarava seu ofício no teatro. Em 1962, ele começou a colaborar com a revista Divadlo (Teatro), em Praga, publicando imagens estilizadas, totalmente diferentes da documentação típica de outros fotógrafos do meio. Logo passou a trabalhar diretamente com teatros da cidade, como o Divadlo za branou (Teatro Atrás do Portão), criado em 1965 já com Koudelka na equipe. Ali o fotógrafo fez exigências ao diretor Otomar Krejca e ao dramaturgo Karel Kraus: sempre fotografaria três ensaios completos, nos quais poderia circular livremente entre os atores. Para sua surpresa, foi atendido.
Koudelka não estava interessado em criar registros objetivos de cenários e figurinos ou dos atores em cenas centrais das montagens. Ele se movia sem tripé e sem luz artificial num ambiente escuro, ajustando os contrastes e granulações ao revelar as imagens. Ao ir a vários ensaios, familiarizava-se com a forma e podia se concentrar na vida da montagem. O resultado são fotos quase abstratas ou, como afirma Pospech no livro, “concentradas em poucos sinais visuais”, “com ênfase na materialidade do meio”. O princípio de trabalho era o mesmo em Ciganos: transitar entre os fotografados, voltar muitas vezes a eles, tornar-se comum entre eles. Ensaiar, ensaiar, ensaiar, até que uma diferença na repetição pudesse aparecer.
A câmera de Koudelka estabeleceu uma cumplicidade entre ele e os Ciganos. Às vezes, é como se alguém percebesse a presença do fotógrafo e o encarasse de frente, enquanto outros permanecem alheios. Talvez nem notassem que pudessem estar em foco nas casas tão apertadas, mas Koudelka os fazia caber com uma câmera grande angular. Nas áreas externas, os centros de atenção se dispersam e por vezes alguém olha para a lente, como se dissesse: “Sabemos que você está aqui, mas tudo bem.”
As mãos chamam atenção em Ciganos, frequentemente mostrando aproximação ou relação entre os fotografados, como na já clássica imagem de um homem que parece se comunicar com um cavalo, feita na Romênia, em 1968. As mãos indicam movimento até nos retratos, seja pela forma de segurar a roupa – como a menina do buquê, que agarra seu vestido branco –, o próprio corpo ou o de outras pessoas. Esse olhar para os corpos remete às fotografias de teatro, em que Koudelka ressalta a interação entre os atores, a expressividade de suas ações, movimentos acompanhados de perto.
Muitas das imagens são deliberadamente posadas, algo que Koudelka evitava no teatro, mas era quase uma obrigação diante de pessoas que só eram retratadas para a burocracia do Estado. Mesmo nelas o fotógrafo consegue ultrapassar a superfície da pose, indicando novamente uma relação com a câmera – e consequentemente com o espectador. Koudelka está certo em rejeitar o rótulo de outsider que sempre lhe atribuíram: “Pelo contrário, tento sempre ser um insider, tanto como fotógrafo quanto como homem. Sou parte de tudo que está em volta de mim”, afirmou, em entrevista a Sean O’Hagan, do jornal britânico The Guardian, em 2008.
Ser um insider lhe rendeu milhares de negativos, além de diários em que acumulava as experiências por onde passava, mas sua seleção de ampliações era rigorosa e enxuta. A série Ciganos saiu em livro em três momentos, sempre depois de longos processos de negociação. A primeira edição foi Gypsies (Aperture), em 1975, publicada dois anos depois por Robert Delpire na França como Gitans: La fin du voyage. Novas edições foram publicadas em 2011 e 2019.
Diz-se que Koudelka não gostava do subtítulo da edição francesa – O fim da jornada –, o que condiz com sua rejeição de textos poéticos para o livro. O editor Stuart Alexander, um dos fundadores do conselho consultivo da Fundação Josef Koudelka, conta em Gypsies que o fotógrafo recusou um texto da socióloga Milena Hübschmannová, com quem viajou pela Eslováquia e pela Romênia em 1968, porque romantizava aquelas populações. Desde então, ele já desejava que suas imagens fossem acompanhadas apenas por informações sobre os Roma.
Quando a primeira edição do livro estava sendo preparada, no início dos anos 1970, Koudelka encomendou um texto a Will Guy, que na época fazia doutorado em sociologia. Guy pesquisava sobre as políticas de assimilação dos Roma pelo governo comunista, que os considerava anacrônicos e decidiu punir quem não aceitasse empregos em fábricas ou construções. Segundo o pesquisador, Koudelka se inspirava numa publicação de Dorothea Lange, em que um texto informativo acompanhava suas fotografias de migrantes afetados pela Grande Depressão nos Estados Unidos, em 1930.
Em seu texto, Guy relata que 20 mil pessoas foram incluídas num registro de nômades, apesar de apenas cerca de seis mil o serem de fato, a maior parte da etnia “Vlach” ou “Vlax”. O objetivo do governo era controlar seu movimento na então Tchecoslováquia para depois dispersá-los pelo país, fixando cotas para cada região. Em 1965, os Roma da Eslováquia começaram a ser enviados para vilarejos na Boêmia e na Morávia. “Eles planejam quanto deve haver em cada vilarejo: cavalos, vacas e ciganos”, diz um deles, citado por Guy. Mas o plano de dispersão falhou.
Guy atualizou o texto nas edições de 2011 e 2019. As formas de repressão mudaram, o preconceito continuou, mas o pesquisador ressalta que, nas últimas décadas, tornou-se padrão o uso do termo “Roma”, que é usado pelas próprias populações e evita a comum conotação pejorativa de “ciganos”. Ainda assim, o livro de Koudelka continuou a ser publicado como Ciganos. Apenas o editor alemão, Gerhard Steidl, defendeu que o título fosse modificado em 2011, acompanhando a posição das instituições na Alemanha, onde seguem-se regras estritas de denominação devido à memória da Segunda Guerra Mundial.
À primeira vista, pode parecer contraditório publicar um texto informativo junto às fotografias não documentais de Koudelka. Guy relata que os editores não ficaram felizes com uma escrita tão seca e factual. Mas esse tom acaba criando um distanciamento entre as condições sociais e históricas pelas quais passavam aqueles povos – e que hoje demandam a nomenclatura “Roma” – e as fotografias, nas quais eles podem ser “ciganos” justamente porque escapam dos estereótipos. A estratégia deixa a forma para o texto, e a fotografia pode se concentrar na vida.
Se há algum mistério em Ciganos, ele não é transcendental, ou místico, mas está contido no próprio cotidiano, permitido pela “descida ao ordinário” empreendida por Koudelka, para citar Veena Das mais uma vez. Está nas famílias comendo, e cuidando dos filhos em casas exíguas, ou do lado de fora, em amplas paisagens rurais. Está nas crianças gargalhando e brincando, para a câmera ou apesar dela, com animais ou armas – uma delas de brinquedo, a outra não é possível dizer. Está no rosto da menina que surge do rasgo de uma carroça. Está nos retratos de casais, alguns mais imediatamente identificáveis como Roma; outros que poderiam ser de qualquer lugar, como o homem e a mulher abraçados, papéis picados sobre o corpo, claramente se divertindo. Está nos velórios, nos enterros, no luto. No olhar da mulher que nos encara enquanto se move na direção oposta, com um grosso xale quadriculado sobre os ombros.
Koudelka saiu da Tchecoslováquia em 1970. Tinha medo de ser descoberto como o autor das fotografias da invasão soviética a Praga em 1968, contrabandeadas para a agência Magnum, nos Estados Unidos, e publicadas por revistas como a Sunday Times em 1969, sob a assinatura “Fotógrafo de Praga”. Deixou o país com um visto de três meses, comissionado pela Magnum para fotografar os Roma na Europa Ocidental, e não retornou até o fim do comunismo. Viveu como apátrida no Reino Unido e depois na França, que lhe concedeu cidadania. E intensificou as viagens pelo continente, acompanhando eventos populares, fossem festas dos Roma, peregrinações religiosas ou festivais de música em países como Portugal, Espanha e Irlanda. Muitas dessas imagens compõem a série Exílios.
Costuma-se dizer que Exílios é uma espécie de continuação de Ciganos, porque é uma série sobre desenraizamento. Em Ciganos, porém, ainda que a melancolia e a precariedade material por vezes dominem as imagens, o nomadismo e o isolamento daquelas populações não se traduzem em desenraizamento. Pelo contrário, elas parecem bem enraizadas em seus laços afetivos e culturais.
Algumas imagens dos Roma aparecem em Exílios, como um enterro na Romênia ou um menino vestido de anjo no carnaval na Morávia. Mas, mesmo que grande parte delas tenha sido feita em festivais populares, em lugares onde muita gente se reunia, em Exílios os corpos estão mais isolados e as composições, mais abstratas. Ali sobressalta o desterro, enquanto em Ciganos, o foco são as relações.
Desde meados dos anos 1980, Koudelka intensificou a abstração em fotos panorâmicas de paisagens vazias e desoladoras, como regiões afetadas por mineração e industrialização. Nas últimas décadas, a busca pelo universal no particular, que de certo modo sempre o motivou, levou ao extremo uma verve humanista que, paradoxalmente, acaba deixando de lado as pessoas concretas, tão presentes em Ciganos. Em tempos de guerra em Gaza, causa certo desconforto não ver seres humanos nas monumentais paisagens de Wall (Muro), livro que reúne fotografias do muro construído por Israel para isolar a Cisjordânia, feitas entre 2008 e 2012. Como se ninguém vivesse ali.
Já Ciganos permanece contemporânea. A cada nova edição da série em livro, o histórico de violência aos povos Roma foi atualizado no mundo e no texto: estado de emergência na Itália em 2008; expulsão de estrangeiros Roma pela França em 2010, muitos deles cidadãos da Romênia – e, portanto, da União Europeia, desde 2007; crescimento de plataformas racistas de partidos de extrema-direita na Hungria e na República Tcheca. Enquanto isso, na trilha de imagens, as mesmas de 60 anos atrás, resiste o espanto com algo que escapa a qualquer opressão, a vida sob a forma de vida, o ritmo que fez Koudelka voltar a cada vez. ///
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A exposição Koudelka: Ciganos, Praga 1968, Exílios está em cartaz no IMS Paulista até o dia 15 de setembro de 2024. Mais informações aqui.
Suzana Velasco é jornalista, escritora e pesquisadora. É autora da dramaturgia Pra onde quer que eu vá será exílio (Cobogó, 2021) e do livro Imigração na União Europeia: uma leitura crítica a partir do nexo entre securitização, cidadania e identidade transnacional (EDUEPB, 2014). Faz pós-doutorado em Relações Internacionais na PUC-Rio, em que pesquisa sobre representações contemporâneas de refugiados.