Ensaios

Fotos e grafias

Silvia Rosi & Renata Martins Publicado em: 29 de maio de 2025

Da série ABC – Grafton G2651, de Silvia Rosi, 2022 © Silvia Rosi, produzido com o apoio da Fundação MAXXI e BVLGARI

Vivendo entre Lomé (Togo) e Londres (Inglaterra), a fotógrafa ítalo-togolesa Silvia Rosi (1992) faz uso da linguagem fotográfica e de imagens em movimento para revelar, através de sua percepção afrodiaspórica, pontes narrativas entre o passado e o presente do país africano. Nessas narrativas visuais, a história colonial do Togo é retratada artisticamente não somente com o resgate de sua identidade cultural e memória coletiva, mas também com reflexões sobre a história familiar e dados autobiográficos da fotógrafa.

Combinando autorretratos encenados em estúdio com signos gráficos impressos em tecido, retratos e vídeos de outras pessoas com materiais históricos do Arquivo Nacional togolês em Lomé, assim como inúmeros símbolos que aludem à violência e à repressão da identidade cultural togolesa por parte das forças coloniais europeias, Rosi desenvolveu, entre 2022 e 2024, o projeto Protetorado. O título, vindo da palavra alemã Protektorat, faz referência direta ao passado histórico-político e cultural do Togo entre os séculos 19 e 20, quando teve seu território ocupado e administrado militarmente por alemães, franceses e ingleses.

Protetorado foi selecionado entre mais de 70 trabalhos de todo o mundo para receber o Talent Award 2024 da C/O Berlin, instituição dedicada à fotografia e mídias visuais na capital alemã. Construído por meio de várias linguagens (isso devido tanto aos idiomas como às mídias utilizados) e de uma rede diversa de símbolos representantes da violência sistemática colonial, Protetorado revela em suas imagens mecanismos de defesa e resistência da identidade sociocultural togolesa. Nas fotografias e vídeos encenados em estúdio, Rosi conecta distintas temporalidades e espacialidades em um colorido e instigante jogo de simultaneidades estéticas, metafóricas, históricas e idiomáticas. Como consequência, logra conceder ao termo histórico “protetorado” um novo significado, já que, sob o olhar crítico da artista, fotos e grafias reunidas em seu estúdio formam um território cultural decolonizante e intimamente contestador, protegido de qualquer lógica visual que tente ler, interpretar ou categorizar hegemonicamente tais imagens através de uma cosmovisão eurocêntrica.

“O projeto de Silvia Rosi nos convenceu a todos do júri de premiação de forma unânime. Acredito que isso se deva ao fato de ela ter combinado diferentes mídias com imagens em movimento e estáticas, além de ter abordado diversas referências histórico-culturais de ambos os continentes, como a história têxtil togolesa da estamparia wax print ou a história da arte cristã europeia através do formato de díptico e tríptico. Ela logra conectar diferentes níveis narrativos simbólicos e complexos entre si em imagens produzidas em estúdio – inclusive, algumas encenadas por ela própria – com material histórico de arquivo. Além disso, o tema é de suma relevância para nós na Alemanha – especialmente por se tratar da ocupação colonialista alemã no Togo. Trazer esse projeto para Berlim foi muito significativo porque não há muitas exposições sobre essa temática e, definitivamente, o público alemão ainda tem muito a aprender de seu confrontamento com a história colonial alemã.”, afirma em entrevista Veronika Epple, curadora da mostra e da C/O Berlin.

“O que pessoalmente pude aprender com Protektorat, por exemplo, foi que a ocupação alemã no Togo entre 1884 e 1914 foi a primeira a impor a cristianização forçada às pessoas daquele território. A Alemanha foi a primeira nação colonizadora europeia a ocupar e a administrar o Togo. Nesse processo, difundia agressivamente a fé cristã com as chamadas ‘missões coloniais’ e, consequentemente, passou a reprimir as línguas nativas e a ensinar o alemão nas escolas. Essa política colonialista continuou ao longo da história do Togo com as ocupações militares seguintes da Inglaterra e da França. Com isso, houve a proibição do uso das línguas locais, enquanto as línguas europeias eram ensinadas e amplamente propagadas, especialmente na escrita. Essas informações são importantes para levar nosso público visitante local à reflexão sobre o uso do termo histórico ‘protetorado’, que é totalmente enganoso por indicar que as pessoas nativas daquele território estavam sendo protegidas. Mas, na realidade, o que aconteceu com elas ali foi exatamente o oposto.”, analisa ainda Veronika Epple.

Mesmo que as línguas alemã, inglesa e francesa sejam usadas nesse país da África Ocidental até hoje, as línguas nativas Ewe e Mina foram preservadas por meio da transmissão oral. E são elas que, como símbolos de resistência identitária e denúncia de seu silenciamento sistemático pela política colonialista europeia no Togo, permeiam e conectam explícita ou implicitamente as imagens que compõem as três seções de Protetorado. “Esses trabalhos são uma combinação de produção pessoal com materiais de pesquisa. O primeiro eixo dessa exibição é mais emocional e trata do conceito de língua materna e da perda de sua própria língua.”, analisa Silvia Rosi.

Combinando referências autobiográficas e familiares com narrativas históricas e sociais coletivas togolesas, Rosi constrói um território amplo e vivo devido às múltiplas análises e interpretações que fomenta em cada pessoa que adentra nele. No tríptico Gengbe (2022), por exemplo, seu autorretrato é colocado entre dois vídeos que exibem sua mãe e sua tia conversando uma com a outra em Mina, um dos idiomas nativos que a artista não fala e muito menos entende. Os dois vídeos, exibidos sem som, provocam não somente um estranhamento no público visitante, mas também evidenciam tanto uma espécie de alienação cultural herdada do passado colonialista que a artista vivencia em seu meio familiar, como a incorporação em primeira pessoa da violência de silenciamento linguístico sistemático que seus antepassados togoleses sofreram.

Da série ABC – Grafton G2651, de Silvia Rosi, 2022 © Silvia Rosi, produzido com o apoio da Fundação MAXXI e BVLGARI

O segundo eixo de Protetorado “explora temas de pesquisa e materiais de arquivo, partindo de um tecido especial, o wax print, que uso nesse caso com um estampado especialmente chamado de Alfabeto”, conta Rosi. Esse tipo de tecido de algodão com cores vibrantes e amplamente utilizado na África Ocidental e Central – com diferentes nomes, dependendo do país – foi introduzido no continente africano por comerciantes holandeses no século 19 ao adaptarem o batik indonésio para o mercado local. Com estampas com significados e símbolos específicos, esse tecido tornou-se uma expressão cultural de defesa das identidades culturais africanas, especialmente durante os períodos de colonização e independência política.

O díptico Biblia (2022), cuja representação da imagem de uma bíblia ratifica a denúncia de cristianização sistemática forçada, resgata a herança da história têxtil togolesa através do tecido wax print. No entanto, sua nova padronagem é composta de inúmeras impressões de letras do alfabeto latino, números, lousas escolares, réguas, lápis e livros – símbolos que aludem uma vez mais à violenta política cultural colonialista exercida no território. Nessa produção fotográfica, o estúdio é revestido por esse tecido estampado, que igualmente veste Silvia Rosi em seus autorretratos. Como em um fenômeno camaleônico, a fotógrafa-protagonista dessa narrativa visual se amalgama por completo com esse espaço cênico estrategicamente forrado.

Com isso, ela arma ali um crítico e complexo território multirreferencial onde desafia não somente a herança colonial no Togo ao colocar, por exemplo, letras e outros elementos figurativos (como lousas escolares, réguas) de cabeça para baixo. Mas também desafia a lógica visual do pensamento colonizado que busca identificar na sequência de letras a formação de palavras ou frases com sentidos. No entanto, a letra, unidade mínima da palavra, passa a ser usada para compor um complexo sistema de significados indecifráveis para a cosmovisão eurocêntrica. Com isso, Rosi conduz o público a um experimento de choque cultural ou estranhamento fomentados por uma cosmopercepção construída sobre um espaço de silenciamentos: daquilo que ele, através de sua leitura da imagem, não logra imediatamente identificar como familiar ou entender os significados das palavras formadas que tem diante de si – tal como os antepassados togoleses da fotógrafa vivenciaram com a imposição colonial linguística e o silenciamento de seus idiomas nativos. É igualmente notável que a combinação de tais sinais gráficos (letras e números) com elementos visuais (lousas, cadernos, réguas, lápis) sobre o tecido de algodão forma um território semântico igualmente indecifrável pela lógica eurocêntrica e protegido dela:  um verdadeiro protetorado cultural arquitetado por Rosi e resistente a qualquer nova invasão ou ocupação colonizante.

Também não se deve ignorar o fato de que o elemento têxtil fotografado por Rosi revela sua homenagem a duas fortes referências da cultura local. A primeira diz respeito à história da africanização dos tecidos wax print pelas comerciantes togolesas no mercado de Lomé, as Nana Benz. Em Mina, “Nana” significa mãe ou avó e “Benz” é uma referência aos carros de luxo de marca alemã que essas mulheres podiam comprar devido ao seu sucesso comercial, habilidade empresarial e influência política, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. Foram essas mulheres que passaram a atribuir aos padrões estampados significados culturais e identitários locais.

A segunda referência ilustra claramente a herança da fotografia de estúdio da África Ocidental, especialmente nos anos de 1960 e 1970. Nesse período, os estúdios fotográficos tornaram-se importantes espaços de produção e divulgação da identidade e resistência culturais e sociais. Eles refletiam o espírito de independência política presente em muitas nações da região com produções encenadas de retratos, que revelavam tanto a defesa do sentimento de pertencimento a um determinado coletivo, como também a afirmação de subjetividades individuais. A criação de narrativas visuais não hegemônicas nesses espaços fotográficos contava com elementos estéticos particulares que, mais de meio século depois, são revisitados por Silvia Rosi: a conexão com a moda, a meticulosa produção de cenários de um interior doméstico e retratos de modelos cujas poses refletiam não somente expressões de sua subjetividade, mas também elementos culturais locais emblemáticos.

A complexidade de elementos visuais, referências e críticas à política cultural colonial volta a ser refletida no terceiro eixo de Protetorado. Na videoinstalação Azɔliɖɛɖɛ Woɖu (2014), retratos de quatro pessoas, igualmente vestidas e inseridas em um estúdio com o mesmo tecido estampado em wax print, são exibidos entre um vídeo de uma rodada de Ludo, jogo muito popular na África Ocidental. No entanto, o que poderia ser uma instalação multilíngue meramente lúdica, contém novamente camadas de inúmeras denúncias sobre o sistema colonial europeu. A primeira delas gira em torno do próprio jogo:  originário da Índia e amplamente presente em seu território, o Ludo foi apropriado pelos ingleses durante o período colonial britânico, tendo suas regras originais modificadas e, então, difundido na Europa.

Em Protetorado, Silvia Rosi promove uma nova apropriação e adaptação do Ludo: agora, quatro pessoas togolesas, retratadas e filmadas por ela, leem trechos não modificados de documentos históricos do Arquivo Nacional de Lomé que tematizavam a política de repressão e imposição linguística da administração colonial alemã. Cada um dos jogadores representa um idioma – Ewe, alemão, inglês e francês – e a cada rodada é decidido aleatoriamente em qual idioma europeu esses extratos devem ser declamados. Somente a jogadora que representa uma das línguas nativas do Togo, Ewe, não participa dessa leitura durante todo o jogo. O silêncio forçado e a legitimação forjada entre si das línguas europeias ilustram a perversidade das regras desse jogo – novas metáforas da violência e repressão coloniais exercidas sob a justificativa de estabelecer no Togo um território protegido e administrado por forças militares europeias da época. 

Questionando materiais de arquivos como documentos e fotografias históricas, Silvia Rosi coloca em xeque a construção de narrativas históricas hegemônicas. A fabulação sobre a memória coletiva togolesa, outrora reprimida e silenciada, passa a compor, através de sua percepção afrodiaspórica, um território visual construído sobre fotos e grafias, capazes de minar e desestabilizar todo e qualquer olhar colonizado. A narrativa visual formada pela fluidez de significados de cada elemento figurativo e gráfico nas criações fotográficas de Silvia Rosi fomenta um exercício contínuo de decolonizar o passado e desafiar o presente. A presença de cada pessoa retratada pela fotógrafa em seu estúdio, incorporando heranças da violência colonial sistemática exercida no Togo, e que pode ser uma metáfora para todos os territórios africanos invadidos e explorados por nações europeias, revela igualmente sua estratégia visual para reconhecer e proteger a memória coletiva de seus antepassados. Assim como criar e proteger um território seguro de qualquer forma futura de invasão e repressão cultural-identitária. ///

Renata Martins (1980) é educadora, crítica de arte e curadora independente natural de São Paulo e residente em Bonn, Alemanha. É mestre em Literatura Alemã pela USP e especialista em Curadoria de Arte pela Universidade das Artes de Berlin. Foi residente do programa Vila Sul do Instituto Goethe de Salvador (2020-2022), onde concebeu e organizou o Catálogo Arte Mais – Panorama de Artistas Transvestigeneres no Brasil @catalogoartemais.

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