Ensaios

Foto Yura: tradição e transformação

Yudi Rafael & André Pitol Publicado em: 23 de março de 2023
Alice Yura. Foto Yura I. 2022. Impressão fotográfica em papel fine art. Coleção da artista, São Paulo

Em um cenário composto por um carpete azul marinho, paredes claras e uma cortina bege, Alice Yura, Kotaro Yura e Ykuo Yura estabelecem múltiplos olhares entre si. Mediados pela lente da câmera e pela impressão fotográfica, pai e avô, respectivamente, participam do projeto fotográfico desenvolvido pela filha-neta, também presente em cena sentada e vestindo um longo quimono que se desdobra em ondulações e cuja cor vibrante contrasta com o chão escuro. Diante dessa imagem de mais de um metro de altura e dois de comprimento, cabe ao espectador a disposição para jogar o jogo de cumplicidade, performance e tempo acumulado que a fotografia oferece às três gerações de Yura.

O acontecimento fotográfico compartilhado em Foto Yura I é parte do projeto Foto Yura, ensaio-série criado pela artista Alice Yura por ocasião da exposição A parábola do Progresso, em cartaz no Sesc Pompéia (SP) entre outubro de 2022 e abril de 2023, da qual os autores deste ensaio, André Pitol e Yudi Rafael, foram curadores adjuntos. Foto Yura reúne elementos de uma cultura com uma história familiar que perpassa o ofício fotográfico. A tradição familiar inclui incursões experimentais e a abertura de uma série de estúdios fotográficos em diferentes cidades nos estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo, dentre os quais o Foto Yura de sua família. Trata-se de uma memória dispersa mas conectada, cujos fragmentos Alice resgata e organiza em seu trabalho, atualizando-a. Ao fazê-lo, a partir do arquivo familiar, equipamentos de estúdio e muitas conversas e recordações, a artista não apenas relembra uma história que lhe é cara, mas agencia uma operação produtiva da família em que os papéis de seus integrantes são reelaborados, assim como os registros fotográficos e narrativas familiares.

Como outras obras da exposição, o conjunto de fotografias foi comissionado para dialogar com obras do modernismo canônico brasileiro. Nesse caso, o diálogo da curadoria com a artista se deu pelo viés da aproximação de sua prática retratística com a da pioneira modernista Anita Malfatti. Por um lado, a fotografia como obra de arte tenciona a dimensão vernacular dos retratos que Yura cria, destacando a dimensão profissional do trabalho fotográfico no seio da família. Por outro lado, a questão de gênero subjaz a auto-apresentação da artista enquanto mulher fotógrafa – a primeira da família. Nesse sentido, a inclusão de um retrato da sua infância, no qual segura uma câmera, inscreve o tema da transição de gênero, que perpassa seu corpo de obras, como testemunho de sua experiência da dinâmica familiar e de suas expectativas profissionais inerentes. Essa dimensão ganha contorno, ainda, por meio da citação de outro retrato de infância feito por seu pai, dessa vez da irmã Juliana, que aparece nos elementos da composição da obra.

Alice Yura. Foto Yura II. 2022. Impressão fotográfica em papel fine art. Coleção da artista, São Paulo. / Juliana Yura em maiô laranja fotografada por Ykuo Yura.

Em Foto Yura II, o traje vermelho-alaranjado evoca duas referências às quais a artista recorreu na concepção da série e na construção das imagens. A primeira delas é o retrato de sua irmã trajando um vestido laranja contra um fundo neutro de parede branca de estúdio, descalça e de pé sobre um piso de carpete azul marinho, o carpete do estúdio Foto Yura. Essa imagem, cuja ausência da câmera parece indicar, comparativamente, aponta para as diferenças de expectativas familiares a partir de um recorte de gênero, retornando na fotografia de Alice.

A segunda referência é um conjunto de retratos pintados por Anita Malfatti. Alice segura, aberto, o livro Anita Malfatti no tempo e no espaço: biografia e estudo da obra (2006), da historiadora da arte Marta Rossetti Batista. A pioneira modernista, cuja trajetória e obra são discutidas nesse estudo monumental, retratou artistas de origem japonesa em dois momentos distintos de sua produção. Em sua fase vanguardista na Nova York dos anos 1910, Malfatti retratou seu colega Yasuo Kuniyoshi durante sua temporada de estudos na Independent School of Art. Mais tarde, já em Paris, pintou A japonesa (1924), na qual figura uma mulher vestida com um quimono vermelho, segurando no colo uma wagasa – sombrinha japonesa feita tradicionalmente de bambu e papel –, para a qual posou a artista Riu Okanouye.

Se Malfatti não retratou diretamente o imigrante ou a imigrante japonesa no Brasil, suas pinturas registraram uma voga que encontrou ressonâncias nessas terras. O fenômeno cultural do japonismo que marcou a arte moderna francesa do final do século 19 repercutiu também no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde já nas primeiras duas décadas do século 20 circulavam em revistas ilustradas charges e reproduções fotográficas com a temática da gueixa. Como demonstrou a historiadora Márcia Takeuchi em Imigração japonesa nas revistas ilustradas: preconceito e imaginário social (1897–1945) (2016), quimono e sombrinha tornaram-se, nesse período, elementos para a caracterização do exotismo da mulher nipônica, assim como trajes para ocasiões festivas e ensaios fotográficos de jovens brancas da elite urbana no sudeste.

Por outro lado, a caracterização étnica genérica nos títulos de suas obras, como observou Paulo Herkenhoff em Laços do olhar: roteiros entre o Brasil e o Japão (2009), ecoa uma forma de tratamento dos imigrantes japoneses no Brasil daquele período pela qual estes tornaram-se “gente sem nome”. Mesmo na condição de artistas, aponta ele, tinham seu direito à individuação e a um reconhecimento autoral negados. Nesse contexto, a proliferação de autorretratos entre artistas nipo-brasileiros assumiria um caráter político, de afirmação desses direitos, além de um instrumento da memória, assim como a fotografia no contexto da família.

Alice Yura. Foto Yura III. 2022. Impressão fotográfica em papel fine art. Coleção da artista, São Paulo

O projeto Foto Yura reconstrói o estúdio e performa a história do Foto Yura, estúdio fotográfico de Alice, de seu pai e de seus tios. Assim como a história da fotografia não é singular, mas múltipla, também o são a transformação e a expansão dos estúdios fotográficos. Tudo começou com o Foto Studio, que Kotaro e Kazuo (Oscar) Yura abriram em 1958 em Aparecida do Taboado (MS), depois do retorno de Oscar de Pereira Barreto (SP), onde fora aprender fotografia. Este estúdio tornou-se o Foto Studio Yurae depois Foto Yura. Mas não só. Em Três Lagoas (MS), Isao Yura abriria o Foto Alvorada, antes de se mudar para São Paulo e lá abrir o Foto Isao. Como foi desenhista antes de ser fotógrafo, a prática fotográfica de Isao era permeada por uma poética que o levou a concursos e prêmios de fotografia. Além disso, Tsutomu (Antônio) Yura trabalharia no Foto Real, em Paranaíba (MS), cidade que Milton Estuo Yura também seguiria com seu estúdio fotográfico, até voltar para Aparecida do Taboado e o Foto Yura. Foto Yura que também seria temporariamente o local de trabalho de Toshitune Yura. Já Goro Yura levaria adiante o Foto Brasil,enquanto Ykuo Yura – pai de Alice –, ficaria responsável pelo estúdio Foto Modelo, e Kazuo (Oscar) Yura, já em São Miguel Paulista (SP), abriria o Foto Oscar.

Em Foto Yura III, os fotógrafos da família aparecem na parede de fundo na forma de retratos em preto e branco e emoldurados entre cortinas beges: Kazuo, Isao, Tsutomu, Milton, Toshitune, Goro, Ykuo e um menino, cada um deles portando câmeras – seja em suas mãos, penduradas junto ao corpo ou prostradas no seu entorno. Essa sequência de retratos inicia-se com Kazuo Yura, tio de Alice e o mais velho entre os irmãos – o primeiro a iniciar-se no ofício da fotografia, ensinando-o então aos mais novos de modo a dar início a essa tradição familiar entre os homens. A sequência encerra-se com uma imagem de infância da artista, na qual aparece identificada pelo gênero masculino.

Diante desse conjunto de fotografias, Alice posa de pé com seu quimono vermelho de seda, a face e o olhar voltando-se para a câmera, como autora do retrato. Desse modo, seu olhar desvia dos retratos para dirigir-se ao espectador, enquanto a imagem apresenta os retratos de familiares que, reunidos, abordam sua relação afetiva e profissional com a fotografia, numa seleção à qual agregam-se ainda um conjunto de câmeras que fizeram parte dessa trajetória.

Fotografias instantâneas feitas nas visitas aos acervos fotográficos de seus tios Goro, Isao, Milton, Toshi e Antônio e do pai Ykuo. Crédito: Alice Yura. 

Os retratos de seus tios e pai, dispostos por Alice Yura em cena, reverberam outro aspecto importante do projeto: a visita que a artista fez à sua casa e à casa de cada um dos tios ainda vivos, para conversar sobre os acervos fotográficos que eles preservaram de seus respectivos estúdios, além de fotografias do cotidiano. Em posse de sua própria câmera analógica, Alice registrou cada uma das visitas, criando um itinerário fotográfico afetivo paralelo ao projeto Foto Yura em si, mas integrado a ele na medida em que foram nesses momentos em que entrou em contato com acervos de imagens e equipamentos fotográficos que utilizou nas imagens do ensaio-série. Assim como pôde ouvir depoimentos acerca dessa rede de estúdios que há meio século registrou casamentos, ensaios, aniversários: a vida cotidiana do interior paulista e sul mato grossense.

Depoimentos, cabe enfatizar, como o de Ykuo Yura sobre o funcionamento do mercado de distribuição fotográfico que alimentava essa rede de estúdios. Segundo ele, o revendedor da Fujifilm passava mensalmente em cada cidade para repor as necessidades regulares de material fotográfico dos estúdios Yurae de outros estúdios, de maneira que a revelação das fotografias em preto e branco eram realizadas no próprio laboratório a partir de fórmulas químicas que ali produziam; diferente dos materiais fotográficos em cor da Kodak, que só poderia ser adquiridos ou revelados em laboratórios da capital de São Paulo.

Nota-se aqui como a popularização do dispositivo fotográfico, seus equipamentos e suas imagens foi um processo de expansão e deslocamento vinculado às migrações coletivas e familiares. Nesta fusão, tanto a fotografia quanto a migração tornam-se fenômenos cotidianos, correspondendo ao que Alice diz: “O cotidiano é fantástico. É o lugar onde a gente pode sonhar”. Com o convite para desenvolver o trabalho e as conversas com a curadoria, o sonho levou ao projeto, que levou à visita, que levou ao registro e que levou ao arquivo.

Anterior à dinâmica da fotografia digital que caracteriza um espraiamento global, mesmo que desigual, de produção de imagens, a fotografia analógica era reproduzida mediante a economia política de uma forma cultural de disputas empresariais nacionais. No caso fotográfico, cabe recordar que no decorrer do século 20 a história dessa tecnologia deixou de ser uma produção principalmente franco-germânica e americana para incorporar nesse jogo empresas de tecnologia da imagem cujos nomes ainda ressoam, como Nikon (1917), Olympus (1919), Pentax (1919), Canon (1934), Fujifilm (1934) e Yashica (1949). Não é por acaso, também, que a criança que participa do mural de fotógrafos diante de Alice Yura segura uma Yashica 2000N, “Lens made in Japan”. A história fotográfica permeou, nutriu, transformou a história familiar. História e tecnologia, migração e imagem se complementam sem fatalismos, e evidenciam escolhas e sobrevivências da ordem do sensível.

Essa tecnologia, a fotografia, aparece aqui tanto como um correlato de família quanto de imigração; esses três termos não deixam também de estabelecer uma tríade performática para Alice. Esses deslocamentos geográficos e imagéticos, afinal, se tornaram oportunidades para que Alice se reconhecesse fotógrafa. “Hoje penso que tive muita sorte de crescer em meio a câmeras, lentes, laboratório de revelação, etc. Tive sorte de ter sido tantas vezes fotografada e isso se tornou parte do meu trabalho e parte de quem eu sou”.

Além disso, nos permite recordar que a grafia da luz é um movimento coletivo, simultâneo, uma tecnologia distributiva e em expansão. No ensaio “Como se forja uma mulher” (2022), Amara Moira comenta sobre algumas das “tecnologias de transformação corporal que revolucionaram nossas compreensões de masculino e feminino” e principalmente como são importantes para que se alcance, em diferentes níveis, o reconhecimento do gênero de mulheres trans. Anticoncepcionais, hormônios, próteses são alguns exemplos entre tantos outros, além de ser particular em cada mulher. No caso de Foto Yura, vemos como Alice retoma uma tecnologia familiar e geracional para transicioná-la e ressignificá-la à sua maneira, distanciando-a do terreno do tradicional para criar algo novo, performático e transformador.

Alice Yura. Foto Yura IV. Coleção da artista, São Paulo.

Se Foto Yura foi exposta pela primeira vez na forma de um tríptico, apresentamos aqui uma quarta imagem da série, Foto Yura IV. Nela, os elementos tratados no decorrer deste ensaio são rearranjados no mesmo cenário do estúdio da família. Aos perfis fotográficos dos tios, do pai e de si mesma, novos personagens e equipamentos fotográficos passam a fazer parte desta história fotográfica dos comuns. Em especial, à direita, os retratos de Katsuzo e Sugi Ueyama Yura, que em 1936 deixaram a província de Hyogo a bordo do navio Buenos Aires Maru rumo ao Porto de Santos, e cuja travessia transoceânica possibilitou que essa rede fotográfica pudesse ser imaginada.

Do outro lado da parede, Alice Yura aparece refletida em um espelho, emoldurada como um retrato. Sua imagem se inscreve nas fotografias de seus antepassados e suas histórias, mas nos indica, como espelho, que o corpo da artista está presente no cenário do estúdio Yura. Ao destoar do preto e branco das imagens ali reunidas, a cor vermelho-alaranjada de seu quimono, no entanto, nos coloca diante do jogo de cumplicidade compartilhada entre Alice e seus familiares, tornando-os participantes de seu projeto artístico, da performance do espelho que atualiza e virtualiza seu corpo refletido em loop, agora fixado pela fotografia, assim como a narrativa da tradição fotográfica em sua família. Nesse jogo, as camadas de tempo se planificam, colapsando a distinção entre passado, presente e futuro, para fazer da transformação um movimento de celebração. ///

André Pitol é pesquisador em artes e curador. Estudou no Museu do Sol, em Penápolis (SP), na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na Escola de Comunicações e Artes da USP. Desenvolve prática de pesquisa documental e projetos sobre curadoria, fotografia, arquivos e migrações, a partir de uma perspectiva afrotópica da história da arte. Escreveu ensaios sobre Madalena Schwartz, Claudia Andujar, Almir Mavignier e Alair Gomes.

Yudi Rafael é pesquisador e curador. Mestre em culturas latino-americanas e ibéricas pela Columbia University, integrou as equipes curatoriais de projetos como A parábola do Progresso, no Sesc Pompeia, Imagens entrelaçadas: Ásia–Brasil pelas lentes do fotoclubismo, com a Almeida & Dale para a SP–Arte; Rotas Brasileiras na ARCA, e Residência Artística Cambridge, na antiga Ocupação Hotel Cambridge.

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