Entre cantos e lamentos
Publicado em: 19 de dezembro de 2023Em 2019 realizei uma viagem ao Oriente Médio. O motivo inicial foi minha ascendência judaica, por parte de meu avô materno. Apesar de não ter ligação com a cultura judaica e me considerar ateia, fui até aquelas terras conhecidas por conflitos complexos e símbolos sagrados e me deparei com a geografia, história e berço das três grandes religiões patriarcais abraâmicas. Elas são as primeiras a acreditar em um único deus.
A viagem, que realizei em solitude, perpassou diferentes locais em Israel e Cisjordânia, além de uma travessia por terra do deserto do Sinai até o Egito. Realizando o caminho oposto à peregrinação do povo Judeu rumo à terra prometida, fui ao encontro da grandeza de Cairo e das Pirâmidas de Gizé, me deslumbrando com os rastros e monumentos da grande civilização do Egito Antigo, que acreditava em diversos deuses e deusas.
Ao longo da jornada voltei meu olhar e registro fotográfico para as mulheres de todas as culturas diferentes que encontrei. Nessas experiências de trocas, sem o uso das palavras, me questionei a todo tempo sobre o papel das mulheres nas narrativas da sociedade patriarcal.
O maior espaço do muro das lamentações, exclusivo aos homens, se encontrava vazio. Já a área menor, reservada para as mulheres, estava cheia, movimentada, repleta de papéis com desejos e lamentos que não cabem mais nas frestas.
![](https://revistazum.com.br/wp-content/uploads/2023/12/JB675-1024x679.png)
![](https://revistazum.com.br/wp-content/uploads/2023/12/JB683-1024x679.png)
Um muro alto e hostil cerca o lugar e as pessoas que moram ali, sob controle. O muro, preenchido de pinturas de protesto, clama por liberdade.
![](https://revistazum.com.br/wp-content/uploads/2023/12/JB551-1024x679.png)
![](https://revistazum.com.br/wp-content/uploads/2023/12/JB549-1024x679.png)
Três aviões de caça sobrevoam o mar de sal. Camadas de azul, uma cordilheira ao fundo. Cores claras, borda branca. Muito calor. Os pés doíam na dureza da margem salgada. A água também está bem quente. Passos curtos, com cuidado, para não se machucar. Qualquer corte na pele pode arder muito naquela água densamente mineralizada. Em vez de afundar, o corpo é convidado a se sentar e de- pois a se deitar no mar. Um zumbido alto e forte surgiu. Eram aviões de caça sobrevoando as nossas cabeças. Precisamente três. O barulho assustador fez com que muitas pessoas corressem para se esconder no abrigo possível. O ruído dos aviões, em extrema veloci- dade, trouxe para o corpo a sensação de alerta, de pânico instantâneo, que logo passou.
Enquanto o GPS do celular apontava que eu estava em terras da Cisjordânia, várias ban- deiras de Israel sinalizavam sua dominação na região. O mapa não se atualiza na medida da realidade.
Atravessei a fronteira entre Israel e Egito. A língua muda, os olhares também mudam, e sem entender como chegar no local onde eu dormiria, entrei na van que me levaria até o Mar Vermelho. Nela também entraram dois homens portando metralhadoras. Nesse momento, o sol se pôs e refletiu a cordilheira da Arábia Saudita no mar cristalino. A água se avermelhou. Sentindo medo e deslumbre, percorri a beira do deserto.
No Cairo, a conversa com as mulheres se deu por olhares e gestos. Por vezes pediram para me fotografar. Após isso, eu também as retratei.
![](https://revistazum.com.br/wp-content/uploads/2023/12/1b-1024x679.png)
![](https://revistazum.com.br/wp-content/uploads/2023/12/JB733_-1024x679.png)
Sensação térmica: 41 graus. Descobri que no dia anterior houve um atentado com carro bomba na cidade.
Fui em um parque que tem vista 360 graus do Cairo. O sol se põe na atmosfera poluída junto aos cantos de oração islâmica.
Ao fotografar e filmar o trânsito em uma rotatória, fui detida por um guarda e conduzida ao prédio de segurança nacional do Cairo, que estava ao meu lado, sem que eu soubesse. Minhas câmeras foram revistadas e, após ser questionada sobre as fotos, fui liberada.
![](https://revistazum.com.br/wp-content/uploads/2023/12/JB714-1024x679.png)
![](https://revistazum.com.br/wp-content/uploads/2023/12/JB712_1-1024x679.png)
Cheguei nas pirâmides de Gizé. Como desapareceu essa grande civilização politeísta? É inevitável imaginar o nascimento do monoteísmo como força motriz de um povo para a dominação da região. Eu, que não consigo ter certezas na vida, sempre me espantei com as convicções. ///
Julia Baumfeld (Belo Horizonte, MG) é multiartista e pesquisadora. Trabalha com fotografia, vídeo, cinema e música, relacionando memória pessoal e coletiva a partir de narrativas e arquivos intimistas. Realizou diversos curta-metragens como diretora, tem dois livros de artista e um álbum solo lançado. Em suas principais exposições estão a individual Entre Cantos e Lamentos, por meio do Prêmio Décio Noviello de Fotografia, Belo Horizonte (2023) e a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil, São Paulo (2023).
Tags: Cisjordânia, Egito, fotografia, fotografia contemporânea, Israel