Poder e religião: a guerra das imagens nas fotomontagens do artista argentino León Ferrari
Publicado em: 1 de dezembro de 2017O conflito idolatria versus iconoclastia, que representa a adoração e a profanação das imagens, é o primeiro aspecto relevante da série Electronicartes (2002-2003), de León Ferrari (1920-2013), na qual também se perfila outra característica da poética sempre insurreta do artista argentino: a dualidade, tida como simbiose perversa, entre violência e religião. Ambas as circunstâncias não só estão presentes, como fazem parte mais de uma dialogia que de uma dialética, de uma convergência em tensão que de uma solução pacificada. Pois, no fundo, nada mais aparentemente extemporâneo e ao mesmo tempo atual que o litígio visual, a chamada guerra das imagens, que a cultura e a arte travam em sociedade, implícita ou abertamente. No caso dessa série digital, o testemunho também são imagens de guerra, de conflito armado, de situações bélicas ou de desastres humanitários em que a política vira o rosto para a condição humana, seja com o álibi de alguma ideologia religiosa-militar, seja por meros interesses econômicos, a conhecida pedra molar “civilizatória” do ideário neoliberal.
Em Electronicartes, o artista utiliza como mola propulsora os acontecimentos da Guerra do Iraque (promovida pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, a partir de 2002, à procura de armas químicas que nunca apareceram), junto a outro leitmotiv nacional: a situação decadente da política argentina daqueles dias. Como se pode adivinhar, o título alude à utilização da internet como canal de difusão, já que os trabalhos, a maioria colagens em fotocópia e papel, foram enviados por email para amigos, um tipo arte postal de nosso tempo. E sempre numa alta frequência de produção, como que ditada pelo estupor humanista fruto dos acontecimentos em questão: divisando o trágico como conjuro.
Historicamente, a série se religa a uma anterior – Flashart (1979), textos escritos duplicados que o artista veiculava através do correio. É, portanto, uma obra de circunstâncias, que responde a uma contingência histórica e social, uma das dedicações artísticas – e civis – preferidas de León Ferrari, aquela cuja procura era uma “significação iniludível”, em suas palavras.
Como outras séries do artista argentino em que o background imagético não é secundário, mas promove a apropriação, Electronicartes trata das visões legadas pela história da arte, tantas vezes religiosa em sua denotada iconografia (devido ao mecenato ou influência da Igreja como poder), apostando em outras visões mais contaminadas, decididamente mais laicas ou enfrentadas em seus imaginários e simbologias. E isso explica o destaque ao império Bush ou à corrupção na Argentina, a aparição de situações grotescas ou de humor negro na dramaturgia apresentada. Assim como o lugar conceitual concedido à armadilha das imagens, aqui considerado crucial como operação de desconstrução semântica. Literalmente à vista, uma imagem da Casa Branca funciona como isca numa ratoeira e o capitólio argentino se vê invadido por uma ave de rapina. Ou então a afinidade de Bush com a morte se estreita com caveiras e a boa nova dos aviões norte-americanos é trazer a anunciação com bombardeios.
A esse respeito, trata-se sempre de uma contraestética, um enfrentamento a uma visualidade, que durante a Guerra do Iraque foi midiaticamente dominante. E, sobretudo, de colocar a imagem da violência e a violência da imagem em patamar de reflexão, como objetos sempre de análise e diferença, algo que o artista já vinha fazendo em seu enfrentamento com a história sagrada da Igreja Católica. Dessa forma, Ferrari acerta três coisas de uma só vez, pois ressitua a guerra das imagens religiosas com as imagens de guerra e a guerra midiática das imagens. Três situações em uma, reconhecendo o lado performático da imagem, a sua natureza mutante.
Ainda mais quando a questão agora passa por “diferenciar, nas produções visíveis, aquelas que se dirigem às pulsões destruidoras e fusionais e aquelas que se encarregam de liberar ao espectador semelhante pressão mortífera, tanto para ele como para a comunidade”, como afirma a filósofa franco-argelina Marie-José Mondzain. Com Electronicartes, Ferrari aposta de novo numa distância, na possibilidade de alguma alteridade para inscrever suas contraimagens também como contrapoderes. De fato, a série foge da idolatria e da iconoclastia, de seus controles institucionais e semânticos; é quase seu curto-circuito, como outros trabalhos políticos de Ferrari propunham. Ainda que não deixe de ser irônico, até linguisticamente, que o artista use precisamente a internet como lugar da ficção, as telas como dispositivos para situar a ficção da história, resgatando a possibilidade de outra simbolização visual, crítica e livre de associações maniqueístas. Aliás, “a violência do visível não tem outro fundamento que a abolição, intencional ou não, do pensamento e do juízo”, arremata Mondzain, em sintonia com a situação ressaltada pelas visibilidades e pelas imagens, como uma diferença entre ocultar e dar a ver.
A ars combinatoria de bombas e anjos, foguetes e parlamentos, caveiras, baratas, vermes, cruzes e bombas, trombeta e desgraça das vítimas, Deus e aviões de guerra funciona como um repertório de sinais de novas situações, em Bagdá, Washington ou Buenos Aires. Nesse sentido, resulta assustador reconhecer a inscrição da fumaça no lugar da luz – a proximidade de símiles visuais que têm distância quântica em relação à sua procedência, à troca de registro semântico nas composições –, assim como a anunciação da bomba atômica também pode ser um ato de fé determinada, como em outras imagens do artista em que Giotto ou Fra Angélico acompanham o momento do cogumelo atômico em Hiroshima. Por sua vez, a arquitetura visual, seu design tão elaborado conceitualmente quanto impuro formalmente, atinge um estado de paradoxo, de semânticas encontradas. Não em vão, a batalha frontal e oblíqua de León Ferrari contra o Ocidente religioso fundamentalista situa de novo a Igreja Católica no alvo principal (como o pedido formal do artista ao Vaticano para a eliminação do inferno, em 2000) pela profusão de um imaginário violento e cruel e pela mistificação espiritual que produz muito além de seu âmbito tipificado de fiéis e crentes.
Sempre como um historiador às avessas, Ferrari remonta às instâncias de memória, imaginário e iconografia para chegar a uma linha de fratura, de dissonância em que a estratégia do anacronismo fulgura entre as diversas nuances temporais desenhadas, como uma supervivência da complexidade transversal das imagens, de sua transformação como forma plástica. A esse respeito, o filósofo francês Georges Didi-Huberman enfatiza o lugar do anacronismo como necessário: ele é “fecundo, quando o passado se mostra insuficiente, e constitui inclusive um obstáculo para a compreensão de si mesmo”.
Por um lado, Electronicartes se inscreve numa produção significativa mais ampla do artista, que inclui obras anteriores, como as releituras da Bíblia e os documentos jornalísticos da ditadura argentina reunidos, por exemplo, em Parahereges e A bondosa crueldade. Por outro, as imagens dessa série pertencem à melhor estirpe do gênero situado entre a colagem e a fotomontagem – às vezes também com peças tridimensionais, como maquetes ou poemas-objeto –, perto de autores emblemáticos que também souberam desentranhar política e imagética, seja John Heartfield ou Josep Renau. O que não deixa de ser sintomático na praxe dessas disciplinas do misto e do heterodoxo, pois tanto a articulação como a manipulação fazem parte de suas operações. Remanipulação, diga-se de passagem, que responde em sintonia paradoxal com a apropriação e a manipulação oficial ou sistêmica dos poderes de fato, exemplificada aqui no alvo principal escolhido, o ex-presidente Bush, como discurso em situações cômicas ou manifestamente tétricas e tântricas. Electronicartes é mais um documento visual na obra de Ferrari, ao mesmo tempo de cultura e de barbárie, como apontava o pensador alemão Walter Benjamin. Uma obra de oxímoros visuais, que mantém a sua contradição à vista, desnudada, pois suas equações estéticas permanecem em seu estado pulsante, aberto. Uma obra que se insere na época, como kairós em cronos, como leitura de um tempo bifronte, que religa o histórico e o contemporâneo.
Se o escritor alemão Carl Einstein apontava que o sentido maior e mais verdadeiro das obras de arte era dado pela “força insurrecional que elas abrigam”, a obra dessacralizadora e profana de León Ferrari, quebradora de tantos paradigmas de fé, recupera esse lado subversivo das imagéticas conscientes de que nem tudo é estética ou estetização, senão transformação, e sob o eixo difícil da tolerância, a valorização atávica pelo indeterminado. Como artista preocupado, mas não canônico, reconheceu sempre a necessidade de desmontar e não desestimar. Como dizia a ensaísta belga Chantal Maillard, em relação ao século 21 que começava, “importa ver a tramoia, pisar o cenário, levantar os decorados, eliminar toda a decoração. O decoro, agora, tem que ser honestidade”. Uma troca de signos na qual León Ferrari perseverou até o final. Electronicartes fala desse lado ético que sabe transformar a estética até ver o eixo do mal de uma guerra ser virado do avesso.///
+
Leia na edição impressa da ZUM #13 o ensaio O construtor de paradoxos, escrito por Paulo Sérgio Duarte sobre Releitura da Bíblia, série de fotomontagens feita por León Ferrari há 30 anos.
León Ferrari (1920-2013) foi um pintor, gravador, escultor e artista multimídia argentino. Além da pintura abstrata e da escultura em metal, realizou obras em videotexto, microfichas, arte postal e litografia. Em 1983 recebeu prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA de melhor exposição do ano. É autor dos livros Nós não sabíamos (1976), Quadro escrito (1984) e A bondosa crueldade (2000), entre outros.
Adolfo Montejo Navas (1954) nasceu em Madri e mora há 24 anos no Brasil. Recebeu o prêmio Mário Pedrosa de ensaio e cultura contemporânea (2009) e o prêmio Marc Ferrez de fotografia (2015), na categoria de reflexão crítica, com Fotografia/poesia (afinidades eletivas).
Tags: ditadura argentina, fotografia contemporânea, fotomontagem, Guerra do Iraque, religião