Diário Corpo Preta – parte 2
Publicado em: 22 de novembro de 2024
Capítulo I – Quero deixar registrado quando morri em Salvador e Roma
Coliseu, Roma, Agosto, 2023
Ei, Jayme!
Venho pensando que todos os dias de vida são também dias de morte, cada dia que vinga é mais um tempo que conta na memória do corpo. Às vezes não conseguimos perceber as pequenas mortes cotidianas porque ficamos ansiosos com o calendário e com os planos futuros.
Às vezes, muitas vezes esses planos não dão certo.
O imprevisto atrapalha o tão sonhado plano. Às vezes o plano não parece nada aos olhos de quem não fez o plano. Muitas vezes não temos planos e como um sanguessuga tentamos roubar a energia de quem tem um plano organizado para viver.
Eu morri
Sim, essa é uma escrita de quem morreu com 39 anos e acordou com 40 anos.
Eu esperei tanto por essa idade e estou aqui, sozinha morta sendo comida pelas bactérias e viva para mais um ciclo de aventuras.
Aventuras de um corpo que morreu.
Morreu de tristeza
Morreu de alegria
Morreu de tanto dar risada da vida
mas morto
mortinho
um corpo
Curiosamente hoje quando cheguei na cidade encontrei outro corpo morto,
mas esse corpo estava morto sem vida e eu estou morta cheia de vida.
Ti amo, sá disgraça!
Roma, 26 de Novembro de 2023
Jayme Fygura,
o cavaleiro mais doce
Não acredito que você fez a passagem. Eu recebi uma ligação agora de Jess Oliveira, e ela me informou do acontecido e então decidi escrever em sua memória.
Eu nunca vou esquecer o momento que nos conhecemos em Salvador, no Centro Histórico no Santo Antônio Além do Carmo. Eu sabia que você estava chegando porque os cachorros não paravam de latir, e o eco do latido dos cachorros pelo Centro Histórico anunciava com o eco do som da sua indumentária a sua chegada.
A primeira vez que você chegou na minha casa com uma garrafa de rum, eu fiquei sem entender. Eu morava com Ricardo Alvarenga que completou 33 anos e fazia uma performance chamada Jesus 3:33 no mesmo ano… então ele me disse: muSa, Jayme quer te ver!
Sem entender, respondi: Que Jayme? Ele riu e disse vai lá ver…
Quando cheguei na porta era você, com uma garrafa de rum…eu não sabia o que dizer como agir o que falar…na minha cabeça uma chuva de pensamentos caóticos que posso descrever agora, mas eu fiquei sem entender.
Eu pensava, que foda o maior performer dessa cidade veio me visitar, o maior artista radical em vida que posso ver ao vivo.
Tudo isso aconteceu em poucos segundos, porque sem entender abri a porta.
Querido Jayme,
te escrevo de Salvador, estou aqui novamente mas agora sem a possibilidade de te ver e ficar paralisada. Era encantador ver você pela cidade.
Nunca imaginei que não te encontraria.
Queria passar meus 41 anos de idade em Salvador. O motivo inicial não foi alcançado. Então, cheguei aqui por força do destino.
Cheguei pela manhã porque queria ver a cidade de cima, olhar o mar e adentrar no continente para ver os bairros que já havia caminhado nessa cidade cheia de ladeiras. O calor que tem aqui é especial, uma memória de que o tempo é outro.
Peguei um carro e segui direto para cá, a casa de Glória no bairro que morei quando cheguei na cidade pela primeira vez, há alguns anos atrás.
Nesse momento, consigo reconstruir a minha memória afetiva da cidade através do bairro que por privacidade não vou mencionar.
Fiquei com vontade de caminhar para ver a sua casa no Pelourinho, então troquei de roupa e saí em direção pra lá. Caminhei devagar pela Avenida Carlos Gomes um desejo latente de rememorar a história de vida que tive nessa parte da cidade.
Eu já havia caminhado por ali com você e o Paulo Nazareth em momentos diferentes. Você sabe que gosto de estar com uma pessoa de cada vez, encontros coletivos me deixam irritada.
Atravessei um beco e adentrei ao bairro Dois de Julho, encontro o músico Angelo Santiago, conversamos um pouco foi bem agradável.
Segui caminhando e comprei uma cerveja, segui atravessando os becos para lembrar da cidade que me deu régua e compasso para cruzar culturas mundo afora.
Nesse dia conversamos sobre sua prática, você me contou sobre sua banda e também me convidou para conhecer seu atelier no Pelourinho, disse que o Daniel Lisboa tinha feito algo importante para você que era fazer o show no Pelourinho e o filme que seria lançado.
O Daniel Lisboa me dizia que você era o anti-performance, eu digo você foi o maior artista visual performer Radical que a Bahia teve nos últimos tempos.
Desafiou os limites das linguagens artísticas e transformou a minha pesquisa em performance porque quando te vi entendi que o enfrentamento com o mundo seria grande e que a máscara que você não queria tirar era a fuga para a intuição.
Eu completamente ao contrário, fiquei obsessiva em retirar a máscara de flandres e falar como uma pessoa que tem liberdade. E você criou uma coleção de máscaras para desafiar a vida numa proposta subversiva.
Agradeço pela sua força radical expressa em vida, e nunca será esquecida da minha memória.
Não acredito nessa passagem.
Disgraça.
Disgraça.
Disgraça.
Disgraça.
Disgraça.
Disgraça.
Disgraça.
Só um soteropolitano pode entender o sentido da palavra disgraça.
A minha eterna imagem de Salvador meu amor, é você Jayme Fygura.
Planejar chegar em Salvador nos últimos anos foi meu delírio tropical. O plano de visitar Salvador enfim aconteceu, queria voltar na casa Fundação Pierre Verger e também queria ver a cidade.
Logo no dia seguinte, pela manhã fui visitar a Fundação Pierre Verger queria retomar a pesquisa que tinha iniciado em 2016 no arquivo que ele fez sobre as plantas medicinais do candomblé.
Eu havia comprado o livro EWE porque estava pensando sobre os usos de ervas medicinais em rituais. E com a Covid 19 retomei o estudo das plantas com o projeto Jardim da Abolição, onde faço um jardim com ervas aromáticas de uso para banhos e chás. Bem, o meu interesse em voltar na Fundação era para rever as caixinhas de madeira com anotações da expedição que ele fez entre América e África. Eu queria rever essas caixinhas novamente.
Quando cheguei na Fundação Pierre Verger, fui recebida pela Ebomi Cici. Fiquei impressionada com a mudança do espaço físico e de como o projeto havia se transformado ao longo do tempo.
Caminhamos pela Fundação e então consegui relembrar da primeira vez que havia pisado na casa. Tive uma memória fotográfica do espaço e narrei as modificações. Agora a casa tem um ar de museu, com vida, mas museu. Então subimos para o último andar e na sala encontramos uma caixinha com as anotações verdadeiras de uma das partes do livro EWE. Mas o momento mais importante dessa visita foi quando Ebomi Cici contou alguns orikis e leu a primeira página do livro EWE e tudo fez sentido naquele momento, a palavra falada. Ebomi Cici foi muito generosa em ler o mapa de um outro livro explicando os conflitos dos territórios. O segredo que sempre percebi haver no livro se abre como uma flor e entendi que essa visita foi para um novo caminho.
Como a música de Edson Gomes e Luedji Luna:
“E eu sou
uma árvore bonita”
Capítulo II – Bishop
Roma, 23 Agosto, 2023
é de manhã
Querido mestre Bispo venho por meio desta carta saudar o seu trabalho tão magnífico e também conversar com você sobre a minha experiência de viver em Roma durante o período de verão.
Eu estou aqui faz alguns dias tentando começar a te escrever e não sabia como começar. Então entendi que deveria te contar onde estou e saudar a sua genialidade. Saudar o seu trabalho pra mim nesse momento é porque ele me conecta com memórias da performance em presença.
Agora sei como saudar a performance da presença.
Em face da força brutal da competição e destruição do capitalismo. A performance pra mim é sobre como você negocia a sua presença. A performance presente expressa no Manto de Apresentação me mostra como foi a sua passagem pelo mundo. Apesar do Brasil e da exclusão programada.
Vim pra cá para tomar sol e estudar sua biografia com mais cuidado. Quando conheci o seu trabalho no início da faculdade em SP fiquei intrigada, mas na época não me chamou tanta atenção como tem chamado agora.
Naquele momento não havia vivido tanta frustração das experiências sociais de ser preta, artista, independente… sinto que precisava viver tudo o que vivi para entender a poética radical expressa na sua obra.
Ser preta como a noite. Ser preto como o carvão
Ter a linda tonalidade da cor que temos… sinto que todos os que se aproximam querem tirar o que é mais valioso e o que importa, a minha vida.
Nessa maldita vida capitalista os humanos de todas as espécies cores gêneros e credos correm em busca de uma tranquilidade e são capazes de tudo, de trair a confiança conquistada por tantos anos de convivência por não ter coragem de assumir seu próprio corpo.
Nos meus anos de experiência com a performance percebi, em relação com uma série de grupos sociais que convivi, que as pessoas que se interessam por ela, pela performance, não tem coragem de se enfrentar no espelho de escolher suas roupas de acordar e saber quem se é… são pessoas que acreditam que a performance é derivada do lixo, elas apropriam-se de uma estética e não sabem porque se interessam por essa estética não conseguem entender o que significa a força da vida nas ruínas da exclusão.
Para escolher a performance radical tem que ter coragem de quebrar a ética do capital. Mas agora, os brancos encardidos chamados latinos estão ganhando dinheiro com a estética radical. Brancos no seu contexto, encardidos o suficiente para ser a cara do capitalismo. Performam precariedade, se apropriam da nossa estética e depois tentam nos matar, eu digo que é uma tentativa porque tem que ter muito corpo para tentar me destruir nessa jornada.
Se a minha intuição me retirou de um incêndio programado pelos meus vizinhos militares não é agora que eu irei ser tombada.
Não é agora.
Uma repetição maldita chamada capitalismo não vai me quebrar.
Nos tempos de agora, o capitalismo está mais acelerado ele entendeu como conectar nossas mentes em uma sequência de dados online. A conexão humana agora é mediada por algoritmo.
Agora o capitalismo tem uma fábrica de mentes medianas que produzem conteúdo mediano e vendem produtos de grandes marcas, além disso essas mesmas mentes produzem seus produtos e também expõem suas artes, fazem filmes…nesse mesmo lugar você conecta com diversos assuntos e se você não se atentar você fica muitas horas usando apenas o dedo indicador conectado a supostamente tudo o que é bom.
Com o uso do meu dedo indicador vou para várias intensidades de emoções e descubro nacionalidades. Tem discussão sobre raça, classe, gênero…elegem políticos, entregam comida, planejam a sua casa, basta vc ter um cartão com saldo e com o dedo indicador acessar todos os seus desejos.
Esses dias acompanhei uma discussão de uma pessoa branca pesquisadora antirracista fazendo uma suposta defesa de um racismo explícito, a defesa estava piorando tudo.
Antirracismo…. eu nunca recebi nenhum centavo antirracista, ou trabalho ou nenhuma remuneração… qdo vejo as contas da manutenção da minha vida lembro que não posso acreditar que existe antirracismo em algum lugar desse mundo. Às vezes sinto que é melhor encarar um racista do que um antirracista fazendo carreira fingindo entender o quanto é odioso ser frustrado pelas mentiras do modernismo pós colonialismo decolonialismo e das frases de efeito em bandeiras estendidas em apartamentos que custam muito caro.
Agora!
Eu não tinha experiência e também não poderia olhar a sua obra sobre a ótica dos pesquisadores e curadores que “descobriram” a sua genialidade num momento muito triste da sua jornada em vida.
Talvez o meu inconsciente tenha recusado a acreditar que o arquivo ao entorno do seu nome é mais um arquivo que demonstra a violação racial em todos os níveis a ponto de você perder a sua sanidade mental e nesse ponto máximo de exclusão a sua força de expressar é uma beleza.
A sua genialidade foi anulada para que os tais pesquisadores especuladores espetacularizassem uma pesquisa artística como grandes descobridores encobrindo os fatos que levaram à sua doença e sua fragilidade.
Nos escritos que pude ler, subentendi a partir da minha experiência de frustração em face da força brutal gerada pela exclusão que a vida é minha.
Estou nesse marco da minha vida, 40 anos em Roma me sinto levemente frustrada porque fiz um plano que aparentemente não deu certo, cada ciclo fazemos planos, e cada plano que não dá certo é uma frustração real.
Sempre quis ser mãe… mas não queria ter uma criança no mundo.
Eu queria criar uma criança para o mundo.
Mas quando vejo meu entorno, percebo que não cabe uma criança. Esse ciclo de mãe solteira na minha família é muito pesado, e não estou disposta a passar por ele.
Em 2023 com 40 anos de idade, entendi que toda corrida é em vão.
Porque imaginei, se você nasceu em 1909 se alistou na Marinha de Guerra do Brasil em 1929, ou seja, no início da sua juventude você estava vivendo o apocalipse do capitalismo e mesmo com um fim dos tempos da sua época você atravessou. Sim, eu também posso atravessar, e navegar nas negociações de agora que ainda são muito precárias.
Pesquisadores e curadores brancos tentando reduzir a minha prática crítica para as demandas de representação decolonial, pesquisadores e curadores negros querendo objetificar a minha radicalidade para dizer que sua pesquisa também é Radical. Confesso que quase fui engolida pelos jovens agitadores de conteúdo de redes sociais. Por alguns anos esqueci da nossa excelência para navegar nas estruturas mais profundas do capitalismo, se retirar e ver a lama jorrar através da nova ferramenta do capitalismo cognitivo que sempre está em busca de uma nova imagem para o velho consumo.
Com essa ferramenta Bispo, vc tem um dia para alcançar o maior número de visualizações e interações por segundo sentada na sua cama por 24h sem se alimentar. A conexão descartável como um meme. A foto com filtro simulando um rosto modificado, essa é a preocupação de agora. Aparecer bem na imagem e fazer uma narrativa contraditória bonita, alegre, triste no tempo de 24h numa sequência de 15 a 30 segundos. O importante é ter conteúdo nesse tempo.
Imagens
Humanos
Textos
Guerra
Cachorro
Bebês
Mulheres grávidas
Jornalismo
Comunicação
Publicidade
Fofoca
Violência contra mulheres
Homens
Homens Trans
Mulheres Trans
Não binário
Me sinto num vazio.
Então me lanço na escuridão da noite de Roma para caminhar, dispensar esse excesso de conteúdo, porque muito tempo exposto ao touch é tóxico.
E por hora me despeço.
é madrugada a hora já entrou no dia do meu aniversário e sinto uma felicidade tóxica de quem fechou um ciclo e ainda não foi dormir para abrir o próximo com medo. Não consigo dormir agora, vou assistir você e te ouvir acho que assim meu coração acalma dessa felicidade.
…
Não consigo te ouvir, preciso de mais atenção e concentração. No vídeo que tem sobre você, é um documentário. Preciso de mais concentração para escutar, acho que vou tentar outra hora. Agora estou obcecada com a preocupação do seu tempo, as análises sobre o ponto fraco da sua doença, objetificando o sentido poético radical expresso em cada bordado feito com linhas improvisadas. Em nenhum dos arquivos que encontrei online tem uma descrição cuidadosa sobre o que foi bordado, o tamanho de cada desenho, a quantidade…o jogo de cores.
As impressões são sempre uma tentativa de patologizar uma prática artística genial, expressa num momento de frustração total, e essa frustração tem uma origem que é possível traçar em sua biografia com uma régua de tão óbvia.
Me sinto impotente.
Roma, 24 Agosto 2023
é de manhã
Fiz 40 anos em Roma. Hoje saí para caminhar de roupas curtas, as velhas senhoras italianas reclamaram do meu traje. Uma delas teve a ousadia de me parar e dizer em italiano: “Con questo costume da bagno in città un uomo potrà mettere la mano sul tuo corpo” – rapidamente respondi gesticulando em italiano: “Se un uomo mette la mano sul mio corpo senza il mio permesso, io gli metto la mano sul viso” nós rimos juntas ela seguiu caminho e eu fui ver o lindo mirante de Roma ao sol de 37 graus. Eu fiquei feliz em saber falar algumas frases em italiano, acho uma língua engraçada e fico imaginando como aconteciam as batalhas no Coliseu, as pessoas falando essa língua engraçada apunhalando alguém na barriga.
Risos
Eu prefiro rir quando se trata de elaborar a veracidade da história. Caminhei sem direção, eu notava que tinha algum monumento histórico por conta da aglomeração de pessoas que pelo traje lembram turistas. Caminhei tanto que fui parar no Vaticano e então intuitivamente paguei um ticket e entrei na Capela Sistina de frente à obra o Juízo Final de Michelangelo meus olhos enchem de lágrima essa imagem vai ficar presente na minha memória, foi uma sensação magnifica ver e perceber a beleza da pintura Renascentista.
Cansada, suando e bebendo água gaseificada olhando para o Juízo Final de Michelangelo, pensei novamente em você mestre, na sua obra o Manto da Apresentação. Eu aqui usando uma saída de banho em linho da cor azul defronte dessa obra fiquei obcecada em rever o seu manto, a sua obra máxima.
Hoje é meu aniversário, e parece que ouvi o seu sinal.
As vozes que te conduziram na criação das suas obras agora estão comigo, aqui olhando o Juízo Final de Michelangelo imagino o real motivo e acredito que você esteve aqui onde eu estou sentada e viu essa maravilha diante de seus olhos e por isso eu ouso a escrever para vc e contar que eu vejo os seus sinais. Volto para casa andando, não sei Roma me lembra Salvador de Bahia, voltei andando para o bairro alto, caminhei devagar pensando sobre essa história do Juízo Final e o Manto de Apresentação…queria ver seu Manto.
Carvão e Cinzas
Experimentos com carvão e cinzas.
A fogueira foi produzida por mim ao longo do inverno, ao todo acendi 25 vezes o fogo para preparar o material, durante o outono encontrei alguns tocos de árvore e gravetos num bosque. Ao final carvão e cinzas para a pintura.
é madrugada
Quando chego em casa, as luzes estão acesas jurava que passaria meu aniversário sozinha mas para a minha sorte todos os meus bons amigos estavam lá para uma festa surpresa, cheguei suada com uma saída de banho azul escuro e biquini rosa para ser celebrada.
Barulho de abertura de champagne, vozes indistintas ao fundo, sirvo os copos um brinde e eu digo em inglês para os meus convidados: By trivialization of champagne, just like in Rome, it is commonplace to drink sparkling water for free.
A campainha toca, meu marido atende. A pessoa chega por trás, fecha os meus olhos e me beija na boca de surpresa, é S.A. que veio de Zurique me amar em Roma.
Roma 25 de Agosto 2023
é de manhã
A noite anterior foi maravilhosa: amigos, amante, marido, amigos do marido, amante do marido. Acordei agora molhada de suor, 05:30 da manhã o calor é de 35 graus, estou dentro do meu quarto com o chão de mármore branco localizada no bairro alto de Roma. Suada com o ventilador de frente para o meu corpo nu, lembro de Salvador, Salvador meu amor que terror… Salvador, te amo sua desgraça, te amo de graça.
Mas estou em Roma
Me levanto e vou tomar banho para tirar esse calor por alguns minutos e colocar o biquini para ir para praia, destino ver o mar. Com S.A., paro no bar e bebo um café o tempo do Uber chegar, termino o café S.A. me beija com a boca de café entro no carro sozinha e vou em direção ao mar é verão. S.A. pega outro carro em direção ao aeroporto.
Apesar dessa narrativa real da vida, eu indo para praia sozinha aproveitar o sol, na minha cabeça somente o Juízo Final de Michelangelo em contraposição ao seu Manto de Apresentação meu caro mestre.
Agora já de frente ao mar nua, consigo entender o mistério que faz encruzilhar informações e referências distintas mas próximas pelo cunho religioso. É o cunho religioso das obras que as aproximam, mas agora entendi olhando ao mar que você mestre Arthur Bispo do Rosario esteve aqui em algum momento da sua vida.
Sim, é isso… você além de um grande mestre artista, teve outras práticas que moldaram e tornaram a sua vida possível. Vi que você foi marinheiro e nessa época também lutava em competições. Encontrei um arquivo em preto e branco em que cortam o seu nome da foto.
Esse sistema colonial faz de tudo para dizer que não existimos. É de frustrar-se e enlouquecer. Eu vivi uma frustração muito grande recentemente entre os anos 2021 e 2022. Bem, eu estou em processo de mudança de país, digo isso porque são tantos formulários ao longo desses últimos anos, e nunca está pronto o formulário que eu nem sei mais o documento que estou esperando nesse processo.
Essa é uma frustração real, você fica durante meses esperando por algo que está perto de perder a validade.
Maastricht, 05 de Novembro de 2023
Querido mestre Bispo, estava num fluxo bem bonito de te escrever, para te contar as frustrações do meu tempo e a realidade alucinante que vivemos agora. Não estou conseguindo, mas vou tentar escrever, mesmo que sejam fabulações derivadas de experiências tortas.
Te escrever tem me ajudado a me libertar de todos os infortúnios causados pelas relações humanas que tive desde o incêndio do meu apartamento em Salvador até chegar aqui agora na Holanda.
Retirar todo o feitiço doente da amizade derivada de stalker, são amizades estranhas que não eram verdadeiras.
Apareceram muitas pessoas.
As pessoas aparecem de vários modos nesse conglomerado de stalker, não quero escrever nomes porque na verdade as pessoas vão ter importância do momento de encontro.
Saíram de não sei onde, apareceram na sala da minha casa.
Escrevo para tirar o dissabor da frustração alheia jogada para a minha luz que emana à despeito da racialidade.
A Europa é um condomínio fechado.
E pessoas criadas em condomínio são acostumadas a ver pessoas negras limpando, vendendo, arrumando, drogadas,
loucas
nuas na rua
da amargura.
O meu apartamento queimado foi um sinal de fumaça para eu me atentar para aqueles que estavam ao meu redor, eles surgiram aos montes com propostas salvacionistas de cunho político.
Todas as propostas eram para continuar a exposição da minha fragilidade, e me encarcerar numa benevolência que sairia de acordo com o ativista, encarei essa proposta com força e fôlego fiz o que tinha que ser feito.
Imagens capturadas na internet em 2022
Arthur Bispo do Rosário – Manto de Apresentação
Enclausurado em uma cela com tecidos usados, desfez os tecidos e criou essa linda peça. Ao todo o trabalho foi realizado em 7 anos. Queria ser enterrado com esse manto e não foi respeitado pelo que contam os autos da história sobre esse trabalho. ///
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