Ensaios

Diante do meteoro

Thiago Barbalho Publicado em: 23 de fevereiro de 2023

Em 2015 achei um pendrive no acostamento de uma rodovia enquanto caminhava à noite perto de São Paulo. Nele, fotos de um casal sem qualquer informação, a não ser o nome de um parque na Califórnia servindo de título de alguns dos arquivos, o que dava uma pista sobre o possível local de parte das fotos. Desde aquele dia, voltei diversas vezes às imagens das duas pessoas anônimas. Alguma coisa nelas me transforma num arqueólogo amador diante de um fóssil, diante do enigma.

Sete anos depois, aqui estou diante delas de novo. Pergunto a esses amantes sobre sua história, duas pessoas que tiram selfies se beijando, se abraçando, adicionando depois vários efeitos às próprias imagens, procurando cristalizar em camadas fixas de cores e névoa o tempo irreparável. Apostaria que eram completos desconhecidos um para o outro poucos meses antes dessas fotos.

Uma mulher asiática e um homem branco, talvez norte-americano, ambos em alegria íntima, fotografando a si mesmos numa proximidade alegre e sufocante, como se procurassem passar para a câmera a ânsia por se fundirem um ao outro. Ou como se procurassem diluir num só corpo os três: ele, ela e a própria câmera. São fotos que querem cumprir um milagre: congelar o instante alegre da entrega.

Quem quer que tenha mexido nos arquivos dessas fotos, se divertiu adicionando efeitos e filtros às imagens. São cores estouradas que parecem reproduzir um mapa de calor dos dois corpos colados um ao outro. Outras vezes, o filtro preto e branco numa luz estourada os faz parecer diante de um raio, de uma bomba explodindo, de um meteoro a se aproximar deles. Em algumas fotos, o homem parece estar por trás da câmera apontando-a para a mulher. E e ela, confiante no poder de sua presença, posa. Em outra, uma cama desarrumada ao fundo, o homem sentado numa poltrona com roupa de quem está indo ou voltando do trabalho. E a mulher no primeiro plano, com a mão erguida como se tentasse colocar o rosto do homem na palma da sua mão. Nas fotos em que o homem parece tomar o controle e passar o braço todo ao redor do pescoço dela, um jogo de dominação revezada, feito uma dupla de gatos brincando um por cima do outro. No fundo, nenhum dos dois está submisso ao outro de verdade, é tudo prazer.

Uma das fotos que mais me impressiona é o retrato da mulher com o seu olho reproduzido diversas vezes por todo o rosto, uma assustadora figura que observa voraz aquele que a olha e tenta eternizá-la. Ela tem uma rosa apoiada na orelha, e aqui assumo que toda a sensação de brevidade da paixão tinha mesmo me feito pensar em analogias com flores, estupendas e perfumadas criaturas prestes a apodrecer, feder, morrer. Agora esse rosto hipervigilante com uma flor de enfeite me olha com todos os seus olhos e não diz nada sobre si. A imagem se volta toda para mim, que a encontrei e a roubei de sua intimidade. Penso então nas minhas ingênuas paixões, em que acreditei que me entregar à fantasia de me fundir a um outro não ia me desintegrar para dali a pouco ter que me reconstruir, quando a paixão morria e eu era obrigado a nascer mais uma vez.

Às vezes a proximidade da câmera é tão grande que ela gruda na pele do rosto da mulher enquanto o homem a beija na bochecha direita, o que me faz cogitar que talvez ela estivesse um pouco menos feliz e às vezes até reprimida. Mas passo para as fotos seguintes e esta hipótese cai: a alegria da mulher é incontestável. Está no seu olhar, na sua língua de fora, no seu sorriso coberto pelos cabelos negros.

Enquanto há diversos retratos da mulher, e versões de efeitos diferentes de um mesmo retrato, o homem só tem uma foto sozinho. Ele está de óculos escuros e faz mais uma de suas poses divertidas. Ao fundo uma massa d’água – deve ser o mar do Torrey Pines State Park que dá título a este e outros arquivos. Sua camiseta tem uma palavra: Korea. Seria a mulher coreana, e a camiseta um suvenir de quando foi levado por ela para ser apresentado à sua família? Mas por que estavam no Brasil? O que vieram fazer em São Paulo? Ou o pendrive caiu aqui das mãos de uma terceira pessoa?

(As perguntas já se encadeiam, criam molduras para cada imagem.)

Teria a mulher jogado o pendrive pela janela de um carro em movimento, querendo se esquecer do trauma da fusão, uma vez que já havia passado e deixado o rastro de morte da paixão acabada? Ou foi derrubado num furto de sua bolsa? Talvez tenha caído da mochila do homem quando ele procurava pelo seu celular?

Olho e penso na coragem exigida a quem se perde num outro. Mas é também uma fantasia minha pensar que o encontro e a fusão desses dois não foram seguidos de choques traumáticos e estilhaços de ingenuidade. Quem estava mais apaixonado por quem? É possível imaginar que haja o momento em que duas pessoas estão igualmente apaixonadas, sem dominação nem hierarquia, sem hesitação?

Quanto mais tempo passa e volto a olhar essas fotos, mais abandono a impressão de acolhimento entre os dois e mais vejo a melancolia daquele instante.

Todo sujeito entregue à paixão perde sua identidade no abismo de uma suposta certeza: a experiência do arrebatamento. Pena que isso, na paixão amorosa, não passe de uma fantasia. A fusão é tão fugaz e, por isso mesmo, tão frágil que se transforma em tristeza assim que se percebe. A fantasia da paixão, como qualquer outra, está sempre eletrizada pelo medo de ser invadida por outra certeza: a de que ela não se sustentará.

Sinto vontade de forçar uma generalização aqui e dizer que toda paixão repentina tem por destino virar um pendrive largado no asfalto, uma memória perdida por negligência ou atirada pela janela de um carro com muita raiva pelas mãos de um coração arrependido de sonhar. Se uma cobra confusa que passasse por aquela estrada engolisse esse pendrive, a memória se perderia mais do que já se perdeu? E, no entanto, essas fotos ficaram comigo. Eu, que sou capaz de vê-las e perguntar-lhes por um sentido.

Por quantos mais sujeitos esses dois se apaixonaram desde aqueles dias?

Há sete anos acumulo perguntas sobre essas fotos, e se um dia quis encontrar o casal de amantes, percebo que hoje me contento com o que imagino – e até prefiro não saber quem são. Assim, posso deixar que mantenham seu poder oracular de sugerir enigmas e lições a mim mesmo. ///

Thiago Barbalho (Natal-RN, 1984) é escritor e artista visual. Publicou os livros Thiago Barbalho vai para o fundo do poço (Edith, 2012) e Um homem bom (Iluminuras, 2017), além de diversos zines. Dentre suas exposições destacam-se: Depois que entra ninguém sai, na Galeria Nara Roesler – RJ (2023); Correspondência, na Galeria Marília Razuk – SP (2019); Thiago Barbalho, no Kupfer Project Space – Londres (2018); e Rocambole, na Pivô – SP (2018) e na Kunsthalle Lissabon (2019), em Lisboa.

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