Cidade, fotografia, ficção
Publicado em: 28 de agosto de 2024Imigrante polonesa e judia, tendo vindo para o Brasil após a Segunda Guerra Mundial, Stefania Bril poderia ter realizado uma fotografia urbana semelhante àquela de diversos outros europeus que se radicaram no país e documentaram as transformações de metrópoles como São Paulo, quase sempre com um aceno positivo às novas estruturas da arquitetura e do urbanismo modernos.
Só que Stefania não obedece à regra. Note-se, primeiro, que sua migração se dá cinco anos depois do término da guerra, em um momento no qual já morava em Bruxelas. Além disso, trabalhava como química ao chegar aqui, e só começou sua produção fotográfica profissional mais tarde na vida, já no final dos anos 1960; assim, sua obra visual se inscreve em outro momento histórico.
Bril não fotografou apenas São Paulo, cidade que escolheu para viver, onde o boom expansionista moderno ganhava nova tração. Registrou outras metrópoles, como Nova York e Cidade do México, e grandes centros do Velho Mundo, como Paris, Veneza e Amsterdã, além de algumas cidades israelenses, que visitou poucos anos após a Guerra do Yom Kippur. Em suas imagens, não encontramos traços singulares das cidades retratadas, e tampouco vemos um fascínio pelas edificações modernistas ou por paisagens urbanas arrojadas; se há algum encantamento, ao contrário, é pelo que quebra a ordem.
Mas em que, então, consiste essa fotografia urbana de Stefania Bril? E, mais importante que isso, que discurso ela parece construir?
Destruição e questionamento
A infância e parte da adolescência da fotógrafa foram vividas em Varsóvia, cidade vibrante, chamada de “segunda Paris” ou “Paris do Norte”, em referência a sua importância como centro da cultura europeia. Tudo mudou, porém, durante a Segunda Guerra, e Stefania viveu de perto a terrível devastação pela qual a capital polonesa passou, com mais de 90% de seu território destruído nos cinco anos de ocupação nazista. A julgar por algumas de suas fotos posteriores, essa experiência parece ter marcado seu olhar de forma profunda.
Transportamo-nos para São Paulo, no início da década de 1970. Em uma série de imagens de Stefania Bril, o maquinário de construção civil chama a atenção: tratores, gruas e escavadeiras mostram força em fotografias nas quais não temos certeza se o que vemos está sendo destruído ou construído. Há um viaduto novo, mas que, para surgir, precisou destruir o solo próximo a ele; um conjunto de apartamentos seccionado, prestes a ser demolido, com o que parecem seus antigos moradores ainda ocupando os espaços semiabertos; muros genéricos estão furados, escavados, expondo suas entranhas metálicas.
A destruição está inerente à própria ideia de modernidade: a cidade moderna precisa destruir a antiga para nascer e florescer — essa também é, aliás, uma premissa colonial e, como Stefania sabia bem, eugenista. Houve um lugar, no entanto, um dos poucos, em que a modernidade não precisou botar uma cidade abaixo para se erguer: Brasília. O fato de Stefania não ter fotografado a nova capital é eloquente, mas ainda assim será proveitoso olhar para seu caso aqui.
Porque, em primeiro lugar, embora erguida em um terreno aparentemente ermo, havia algo, sim, sendo suplantado, ou melhor, dominado. Como lembra o arquiteto e pesquisador Paulo Tavares, Brasília, cidade moderna, é também um advento colonial. Isso pode ser constatado se observarmos, por exemplo, a primeira missa ocorrida por lá, em 18 de maio de 1957, quando a cidade ainda era um canteiro de obras, em um espetáculo forjado para remeter àquela primeira celebração jesuítica em 1500, pintada por Victor Meirelles em 1861:
Projetado por Oscar Niemeyer, o altar era rústico e minimalista, com estruturas de madeira e uma cobertura de lona tensionada, evocando o ambiente “primitivo” da conquista colonial — como um acampamento de tropeiros bandeirantes. Uma grande cruz de madeira erguia-se por cima da tenda, definindo um marco vertical contra o cerrado planaltino e demarcando a posse do território, como outrora fizeram os conquistadores europeus. Autoridades políticas, religiosas e militares de todas as regiões do Brasil estavam presentes, e, para completar a encenação, Kubitschek ordenou [a vinda de] de cerca de 20 indígenas Karajá […]. A “Primeira Missa em Brasília” foi sobretudo um evento fotográfico, orquestrado para ser registrado e propagado pelas mídias modernas — jornais, revistas, cinema — com o objetivo de projetar um imaginário da modernidade nacional em filiação com a história da conquista colonial. [1]
Quando Stefania começa a fotografar, na virada para os anos 1970, a exaltação moderna estava, por assim dizer, em um segundo estágio, já passados alguns anos dessa euforia inicial que levara à construção da nova capital. Era, agora, reeditada por uma ditadura cívico-militar que, enquanto perseguia e torturava opositores, anunciava um “milagre econômico”. Ao mesmo tempo que as desigualdades urbanas e sociais cresciam por todo o país, os generais prometiam um futuro promissor, que seria impulsionado, entre outras coisas, por grandes obras de infraestrutura. Valendo-se desse mesmo espírito moderno-colonial que traçara um crucifixo no cerrado do Planalto Central para implantar ali a nova cidade, conquistadora dos territórios centrais, os militares queriam cruzar o Norte e o Nordeste com a rodovia Transamazônica (que nunca chegou a ser totalmente concluída), ou demonstrar força com outros prodígios viários de concreto (que foram, esses sim, levados a cabo, como a ponte Rio-Niterói e o Minhocão paulistano). O “homem universal” moderno encontrava seu avatar máximo no aparelho estatal repressor e modernizante.
O próprio artífice da nova capital, Lucio Costa, quando a visitou muitos anos depois de sua construção — em 1984, ou seja, praticamente no fim, também, do regime militar —, parecia ter, guiado ou não por certos ventos democráticos, outra visão sobre sua criação. Aos 82 anos, ficou uma semana por lá, e talvez seu reencontro mais significativo tenha sido com a Rodoviária de Brasília, ponto fulcral do projeto urbano, onde os dois grandes eixos viários se encontravam. Ele, que concebera aquele entroncamento como uma “mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs-Élysées”, se surpreende com a aglomeração popular. Mais tarde, num depoimento sobre essa viagem, diria:
Eu caí em cheio na realidade, e uma das realidades que me surpreenderam foi a rodoviária à noitinha. […] É um ponto forçado, em que toda essa população que mora fora entra em contato com a cidade. Então, eu senti esse movimento, essa vida intensa dos verdadeiros brasilienses, essa massa que vive fora e converge para a rodoviária. […] Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. […] Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. Foi uma Bastilha. Então eu vi que Brasília tem raízes brasileiras, reais, não é uma flor de estufa. [2]
É, ao que tudo indica, uma constatação surpreendentemente jubilosa da falência da modernidade, desse projeto cosmopolita de cidade. “Eu gosto de gente, não de carros”, [3] escreveu Stefania Bril para uma exposição sua. O comentário vem a calhar aqui, já que o carro era um dos grandes símbolos dessa modernidade, sendo Brasília — assim como outro marco nacional em menor escala, a Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, também de autoria de Costa — uma cidade projetada para o automóvel. A esse respeito, Stefania também anotou:
O homem ocupa cada vez menos lugar na fotografia da paisagem urbana? Mas é essa a realidade. Para o fotógrafo, que às vezes observa e atua de carro, em movimento, acompanhando o ritmo desumano da metrópole, são os automóveis e o concreto que parecem ser os únicos habitantes da cidade. Somente quando o homem se libera do emaranhado que ele mesmo criou é que o humano surge de novo. É aí que recomeça de novo o “bate-papo” de homem para homem. [4]
Ela parece estar interessada em semelhante “Bastilha” em relação à cidade moderna, e busca isso com suas fotografias: ao mesmo tempo que expõe a destruição promovida pela modernidade, destrói, ela mesma, metaforicamente, essa urbe moderna. Veremos como continua esse desmonte em outros níveis, e também o que começa a surgir a partir disso.
Cidade insólita que fala
Como boa observadora-ouvinte que era, Stefania Bril tem olhos e ouvidos para perceber o que a cidade está falando, mapeando a dor e o insólito da vida moderna, mas também a resistência e o humor.
Numa imagem conhecida, que foi capa de seu primeiro livro fotográfico, um pequeno letreiro nos convida, avistado por trás de alguns tubos de concreto: “Entre”. Suas fotografias possuem camadas assim. E, no caso dessa e de muitas outras escritas urbanas, enquadradas pela fotógrafa, parecem expressar em voz alta as ambiguidades das cidades. Ao lado da placa em que está grafado “Bienal”, o que se vê é uma casa ordinária, sem qualquer atrativo artístico. Com humor, um adesivo de táxi sobreposto a outro dá a entender que aquele motorista “recusa passageiros”, e uma frase pichada num muro se coloca contra, justamente, a própria “indústria da pichação”. Um homem circula vestindo um cartaz que anuncia a vinda do Paraíso (um paraíso urbano ou um que demolirá aquela aglomeração?), e outro, desobedecendo o aviso de “não pise na grama”, deita-se por inteiro nela — sem, no entanto, pisá-la. A loja Fogos Caramuru parece ter explodido por completo e, diante de uma galeria de arte chamada Encontro, um rapaz está sentado sozinho, de cabeça baixa, aparentando exaustão.
Outdoors se sobrepõem, criando confusões visuais, ou então surgem em lugares que acabam por acentuar desigualdades, como aquele do Bradesco, que diz ser “Moleza!” aplicar em seu fundo de investimento, embaixo do qual vemos pessoas em situação de vulnerabilidade preparando uma refeição. A crítica se aprofunda ainda mais quando avistamos a placa de “Não passe pela direita”, fotografada no elevado Presidente Costa e Silva (hoje elevado Presidente João Goulart), o famoso Minhocão, em São Paulo. Embora possa aparentar apenas um comentário jocoso — se alguém passasse mais à direita cairia no vão —, não podemos deixar de lembrar, como dito anteriormente, que esse viaduto foi uma das grandes obras da ditadura, construído sob a batuta do então prefeito Paulo Maluf, em 1971, e batizado com o nome do general que decretou o AI-5 — o mesmo que o havia colocado à frente da prefeitura. Uma “obra de violência”, segundo o arquiteto Carlos Bratke, [5] e que, como se sabe, acelerou a degradação das áreas próximas à via. Com essa imagem, Stefania parece fazer um comentário político — lembrando que a foto, assim como boa parte de sua obra fotográfica, foi feita nos anos de chumbo, após o referido quinto ato institucional e antes do início da abertura democrática, quando a tolerância a manifestações artísticas com críticas mais diretas e abertas ao regime era muito baixa e uma das saídas para a arte era fazer isso de forma velada, criando artifícios para despistar a censura.
Mas a crítica principal de Bril era à vida moderna nessa cidade racional, e outra maneira de reagir a isso foi encontrando, aqui e ali, cenas de um cotidiano quase surreal. Uma vaca surge no meio de Amsterdã; uma mulher carrega uma nuvem de balões no meio da Quinta Avenida, em Nova York; uma Kombi batida parece uma escultura no meio de uma rua paulistana; dois rapazes “enchem o tanque” de um burrinho em um posto de combustível em Jerusalém; e, numa de suas imagens mais icônicas, um menino lê um gibi deitado dentro de um carrinho de supermercado, encaixado de modo estratégico no limite entre o meio-fio e a rua, inventando um espaço de descanso onde não há.
No México, um homem “desobedece” à norma e, em vez de um capacete de construção, como seus pares enfileirados, usa um sombrero; os construtores da cidade moderna de um lado e um resquício de algo distinto, que resiste, do outro. Essa fotografia é particularmente interessante pois representa uma característica que se repete em diversas outras imagens de Stefania Bril: ela está atenta a “desobediências” como essa, e sua forma particular de enxergar ilumina traços de outros tipos de sociedades — modos de vida comunitários, rurais, artesanais — que estão ainda latentes dentro das metrópoles.
Reconstrução e ficção
Ocorre que esses vestígios presentes nos grandes centros não surgem como sinais de atraso, tampouco são vistos como nostálgicos, lembranças de uma era que passou e cuja volta seria desejada. É mais como se ela os usasse — e também às próprias cenas engraçadas que flagra — como crítica à modernidade, para assim poder, após ter desmontado fotograficamente aquela cidade homogeneizante e opressiva, reconstruir uma urbe em que há espaço para o lúdico e para a irreverência, vislumbrando uma outra cidade possível.
Essa outra cidade é, como foi dito, construída por meio da fotografia, mas também de maneira gráfica: dois meninos passeiam de bicicleta diante de um bosque pintado à mão num muro, e outro pomar aparece perto de uma escadaria; rostos enormes marcam presença em meio ao skyline nova-iorquino; e, na ausência de um céu por conta da poluição paulistana, um desenho em uma empena concebe um firmamento cheio de nuvens coloridas. Stefania escreveu certa vez:
Faço parte de uma metrópole chamada São Paulo. Estou atenta a tudo que compõe a vida dessa grande cidade: o céu pintado para substituir o céu verdadeiro que desaparece; as árvores pintadas, para substituírem as verdadeiras derrubadas, e o “verdadeiro verde” que, indiferente à destruição/construção, surge de qualquer fenda no muro deixada por distração humana.[6]
Numa sequência bastante representativa dessas reconstruções, dessa outra urbe, ela registrou uma ação artística na rua Augusta, em que um coletivo “acarpetou” um trecho com quadrados coloridos, grudados com algum tipo de cola ao asfalto, e replicou as formas dos quadriláteros em uma espécie de cobertura superior — é notável o uso do carpete aqui, um material em geral destinado aos interiores, que suaviza o pisar. Há outras construções, também: uma quantidade enorme de caixotes de feira empilhados conforma algo que só podemos imaginar o que será, e uma casa excêntrica em formato esférico desponta por cima de uma esquina — para os entendidos, é a Casa Bola, do arquiteto Eduardo Longo, [7] mas aqui é outra coisa: é uma moradia dessa cidade que Stefania está edificando, tijolo a tijolo, clique a clique.
Ela, que era assídua leitora, e não raro citava escritores, como Cortázar, Stendhal e Saul Bellow, flerta aqui, no fim das contas, com a ficção. Pois essa cidade que constrói, ou que vislumbra com suas fotografias, não existe, quase não vemos as especificidades dos lugares fotografados, ou seja, não se conforma como registro documental ipsis litteris, mas existe enquanto projeto ficcional e crítico. Como fez Italo Calvino em suas Cidades invisíveis, essa outra cidade de Stefania Bril deixa de ser um simples termo geográfico e se transforma em um verdadeiro e complexo símbolo da experiência humana. ///
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O texto Cidade, Fotografia, Ficção faz parte do catálogo Stefania Bril: desobediência pelo afeto, organizado por Ileana Pradilla Ceron e Miguel Del Castillo, curadores da exposição de mesmo nome em cartaz no IMS Paulista até 26 de janeiro de 2025.
[1] TAVARES, Paulo. “A capital colonial”. Site da revista ZUM, 28.07.2020. [2] COSTA, Lucio. “Plataforma rodoviária”. In: Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 311. [3] BRIL, Stefania. Texto para exposição individual na Sala de Fotografia da 13a Bienal de São Paulo, 1975. Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Stefania Bril. [4] Idem. “A fotografia é o fotógrafo (ou à margem do debate Fotografia, arte?)”. Datiloscrito, c. 1977. Acervo Instituto Moreira Salles/Arquivo Stefania Bril. [5] LIMA, Paulo Silveira. “Vinte anos depois, o Minhocão ainda divide a cidade”. O Estado de S. Paulo, 20.01.1991. [6] BRIL, Stefania. Op. cit., 1975. [7] Terminada em 1979, a Casa Bola, aliás, é considerada pelo crítico Guilherme Wisnik como pertencente a uma onda de “projetos contemporâneos que anunciavam o espírito da abertura democrática”. Apud MONTERASTELLI, Alessandra. “Como a ditadura militar produziu violência com cidades de ferro e con- creto”. Folha de S.Paulo, 27.05.2024.Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador. Carioca radicado em São Paulo, é autor do livro de contos Restinga e do romance Cancún (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura), ambos publicados pela Companhia das Letras. Foi editor da Cosac Naify e do site da revista ZUM, manteve uma coluna sobre fotolivros no site da livraria Megafauna e desenvolve atualmente seu mestrado em literatura comparada na USP. É coordenador da Biblioteca de Fotografia do IMS.