Celeste Rojas Mugica: implicar-se com as imagens
Publicado em: 18 de abril de 2024Há um corvo incrustado no solo árido do deserto do Atacama. Um desenho formado por linhas de cal despejadas sobre a terra mais seca do mundo. Um geoglifo que se alonga por cerca de 2km.
O corvo, adotado como emblema histórico das forças armadas chilenas, é uma espécie de faca curvada, utilizada como arma de combate no contexto da Guerra do Pacífico (1879-1884), em que o Chile anexou partes da Bolívia e do Peru ao seu território. Foi empregada, posteriormente, na tortura e execução de milhares de pessoas na ditadura cívico-militar do país (1973-1990).
-22º33’43.1” Sul 68º54’25.0” Oeste são as coordenadas geográficas do pomo, a base. Próximo à empunhadura, há um círculo perfeito e os números 11, 73 e 78. Parecem aludir à data do golpe de estado (11 de setembro de 1973) e ao ano da operação Retiro de televisores (1978), em que, para desaparecer com os corpos das vítimas, os lançavam ao mar. O traçado petrificado denuncia que parte da imagem foi refeita ao menos três vezes, para torná-la maior.
Sua escala é sobre-humana. É necessário estar longe para poder identificar a forma; um ponto de vista aéreo, porém não demasiadamente distante para que não se perca entre os traçados das estradas de terra e do relevo do próprio deserto. Há que saber como e de onde ver para decriptar a paisagem. Se faz necessária uma pista.
Para a artista Celeste Rojas Mugica (1987) foi o encontro tardio com uma nota de um jornal local, publicada em 2011, que desencadeou seu interesse pelo assunto. A breve notícia relatava que a liderança de um grupo de familiares de desaparecidos políticos da cidade de Calama havia recebido por debaixo da porta de sua residência uma fotografia aérea do lugar, que fica próximo ao aeroporto da cidade, uma antiga base militar.
Na época, foi realizada uma busca por restos mortais no entorno do desenho, na esperança de que indicasse onde estariam enterrados alguns dos tantos corpos ocultados pela ditadura. Embora o deserto do Atacama – assim como o Rio da Prata na Argentina e o Oceano Pacífico que banha a costa chilena – seja hoje destino conhecido dos planos de desaparecimento forçado dos respectivos regimes, a imagem do corvo se mostrou de outra natureza: um empreendimento estritamente simbólico. Um enigma, para Mugica, que dedica sua obra à investigação das relações entre memória, violência e imaginário.
“É muito assustador. Tem a ver com um gesto de demonstração de força no sentido mais concreto e literal de dizer ‘sou capaz de distribuir toda essa quantidade gigante de cal para desenhar algo tão brutalmente enorme’. Mas é também um gesto de poder sobre o território, porque é uma forma de afirmar ‘tenho direito de deixar uma marca inapagável neste lugar onde tudo se petrifica para sempre’, num deserto que tem tanta carga simbólica. É aí onde enterraram os corpos. É aí onde roubaram os territórios de nações adjacentes. É aí onde exploraram o minério e eliminaram toda vida que há”, conta a artista em entrevista.
Embora nascida em Santiago, no Chile, quando iniciou, em 2017, 0 projeto Ejercícios de aridez (Exercícios de aridez) Celeste Rojas Mugica vivia na Argentina, sua segunda nacionalidade, e não dispunha de recursos para realizar uma viagem até o local.
“Trabalhei muito com as imagens de satélite, que se tornaram parte da obra. E me interessei por trabalhar também sobre os arquivos, essas imagens que são realizadas para o controle de um território, e imaginar possibilidades com essas mesmas ferramentas. Houve uma outra etapa em que finalmente pude ir até ao desenho e desenvolver um corpo de obra entre arquivo e as imagens produzidas por mim.”
Em 2021, ainda durante a pandemia, Ejercícios de aridez se materializou primeiramente em uma plataforma web, posteriormente em exposições e, mais recentemente, em um fotolivro, publicado pelo selo Casa en Blanco. “A própria realidade presente foi modelando a forma do projeto”, diz Mugica, que concebe cada suporte não apenas como um espaço de circulação, mas como parte da linguagem de criação, tradução e experimentação do conceito da obra.
O site se configurou como um território virtual, onde estão sobrepostas imagens de satélite, desenhos, fotografias, sons, textos e vídeos. Um mapa ambíguo, de aspectos físicos e políticos, reais e imaginados. Em uma mesma paisagem, o traçado natural do relevo, os gestos da artista e o desenho do corvo se aproximam em forma e conflituam em sentido.
O espectador é instigado a interagir, percorrer a cartografia em diferentes escalas, abrindo janelas, desvelando arquivos, tal qual a artista fez outrora, no processo de pesquisa. A investigação proposta em Ejercícios de aridez não chega a relatório algum, tampouco é arquivada. A autoria do desenho permanece um mistério e, diante do enigma indecifrável, o mapa se torna uma espécie de labirinto e as imagens vestígios opacos. Mugica recusa a referencialidade de uma fotografia documental clássica.
“O meu interesse pelas imagens é pensar sobre suas ambivalências, suas oscilações, sobre o que podem potencialmente ser, sempre apelando para uma camada muito material e concreta. O deslocamento para o conceitual está atrelado a um trabalho experimental com a matéria. Acredito que isso vem das minhas primeiras experiências com os fotoquímicos desde muito criança, como um amor pela luz e pela sombra e pela sensibilidade do material.”
A fotografia, bem como a política, são temas que permearam desde cedo a história da artista. Seu pai foi militante do Movimiento de Izquierda Revolucionaria e se tornou fotógrafo da organização. Mugica cresceu com seu arquivo e laboratórios de revelação fotográfica improvisados em cada casa em que viveu. Talvez a intimidade com essas imagens, seus processos de produção e suas histórias a tenham instigado a experimentar abordagens visuais menos previsíveis. Embora discussões sobre política fossem corriqueiras na vida familiar, em torno de alguns assuntos restava-lhes o silêncio. Se interessou pelo contracampo do discurso da história e da fotografia, em suas palavras, “o que não podemos ver na primeira camada”.
“Acredito que esta forma de se aproximar das imagens tem a ver com a ideia de que, por exemplo, quando faço o uso de um arquivo, a mim não me interessa reconstruir uma história, senão pensá-la hoje e na possibilidade de que ela pode seguir nos convocando de algum modo. Este exercício força outras relações que não a ideia de, a partir de restos, reconstruir um passado que me foi negado, o que não me interessa. Me interessa o presente, em sua potência.” Mugica se apropria da estética do documento, mas desobedece aos procedimentos dos arquivos. Tangencia o tema pela borda, permeada pelos fatos, mas especialmente pelas especulações. Se apropria de imagens de satélite e traça sobre elas caminhos inventados, referenciais móveis. Inclui no projeto um poema de Martín Cinzano – pseudônimo do seu irmão, o escritor Gonzalo Rojas González – e o traduz em código Morse. É o jogo de símbolos que intriga a artista. Por meio do esgarçamento da linguagem, a obra alcança uma camada mais profunda do trauma histórico, das memórias emudecidas que relatórios não conseguiram contar. O corvo é uma ferida na pele do país. Poderia a arte ser sutura?
Mesmo quando debruçada sobre o acervo fotográfico do seu pai, na série Una sombra oscilante (2017-2o19), publicada em livro em 2017 pela Asunción Casa Editora, a artista busca desviar da objetividade rumo ao mistério. Elege o oculto, fotografias com sujeitos velados e fragmentos queimados por excesso ou falta de luminosidade. É traiçoeira a interação da película com a luz, justamente o aspecto da fotografia evocado na sua defesa como manifesto do real.
Contudo, é a composição que intriga em uma das imagens. Uma criança vendada empunha um taco de beisebol em direção a uma pinhata. O objeto a ser atingido se confunde, ao estar sobreposto, com a cabeça do adulto cuja mão tapa os olhos da criança. A cena não acompanha legenda. Uma vez desvencilhada do contexto em que foi produzida, a ênfase da fotografia recai sobre o gesto, que se torna metáfora. Poderia aquele com poder de vendar os olhos ser atingido pelo outro, menor em
tamanho, que aparentemente teve sua visão bloqueada?
Em Paisajes/Microfilm (2019), ainda imersa no arquivo paterno, Mugica seleciona fotogramas que não foram expostos. São fotografias não concretizadas, películas involuntariamente sensibilizadas pelo tempo, às quais ela sobrepõe diapositivos com frases de e-mails escritos por seu pai quando soube que ela desenvolveria um projeto sobre seu arquivo.
Enquanto escava acervos do passado, a artista segue atenta às movimentações políticas do presente. Em outubro de 2019, diante de uma aguda crise político-social, multidões tomam as ruas da capital chilena. A marcha do dia 25 supera um milhão de pessoas e é considerada a maior desde o retorno do país à democracia. Segundo Mugica, os protestos “estavam disputando o espaço público, os direitos e a estabilidade de todo um estado, e também estavam disputando o poder das imagens e suas possibilidades.” No contexto das manifestações, são as numerosas intervenções em monumentos históricos que mobilizam seu interesse. Passa a compilar as milhares de imagens de “monumentos modificados, derrubados e levantados” publicadas nas redes sociais em um arquivo digital dinâmico, o Inventario Iconoclasta de la Insurrección Chilena, que segue em atualização.
“Senti que sua potência estava nessa acumulação e em permitir que houvesse acesso a elas em um só lugar. Construí esse arquivo muito rapidamente, poucos dias após ter iniciado a revolta, e então pedi a um amigo que é programador que fizesse para mim o site mais simples possível. A única coisa que queria é que as imagens estivessem sobrepostas entre si e que a relação temporal fosse aleatória, fragmentária e não linear, porque sinto que é algo próprio da experiência política e da forma de pensar esse processo que estamos vivendo até hoje.”
Como num feed, a plataforma convida a clicar e percorrer um fluxo vertical de imagens. Estátuas pichadas e cobertas, pedestais escalados, faixas erguidas, tapumes de proteção derrubados, entre outras cenas, sempre identificadas pelo local e nunca pela autoria. O anonimato, que em Ejercícios de aridez denuncia a impunidade, no Inventario Iconoclasta é estratégia de preservação de identidades individuais e de projeção de uma identidade coletiva.
“O inventário ser um site aberto é uma maneira de questionar e criticar as formas dos arquivos sempre tão fechados para as comunidades. O processo político estava justamente colocando em questão a propriedade, pensando a socialização e a coletivização dos saberes, então o projeto exigia que, em sua forma, fosse acessível e disponível, que fosse um projeto anônimo.
Cada vez que o projeto se apresenta, por exemplo, em formato de livro – há dois livros do inventário –, não traz dados de autoria das imagens nem a minha autoria, no sentido de colecionadora de todo esse arquivo, com a finalidade de que, justamente, isso se dilua e se dissolva. Lamentavelmente não podemos diluir a autoria completamente porque há outras condições estruturais que não o permitem, mas é uma tentativa de pensar esses assuntos criticamente”, afirma Mugica. Embora anônimo e público, o projeto é atravessado por gestos de criação bastante assertivos, senão radicais, como as próprias intervenções nos monumentos. É particularmente nas publicações do Inventario Iconoclasta de la Insurrección Chilena que a artista concretiza, em suas palavras, “exercícios editoriais”.
A mais recente publicação do projeto, editada em conjunto com o argentino Martín Bollati, investiga a “Plaza Dignidad” – assim batizada pelos movimentos de resistência política –, o espaço central da cidade de Santiago onde “confluem, brotam e colidem as forças do controle repressivo contra as forças criativas de diversas imaginações desejantes”, como descrito no site da artista.
A publicação consiste num conjunto de páginas atarraxadas que esquadrinham, de diversos pontos de vista, o perímetro da praça e os elementos de sua estrutura. Para folhear as imagens individualmente é necessário desmontar o objeto e com esse gesto abre-se, para o leitor, a possibilidade de reorganizar, sobrepor e enquadrar. Mugica encara cada livro como um artefato cujo objetivo não é difundir o arquivo, mas ativá-lo.
“Sinto que são como um jogo. Quem o tem em mãos que o ative. Do contrário, não funcionará. Foi uma decisão muito clara e deliberada diante desse projeto que está pensando todo o tempo em ativação, em sua implicação tanto no projeto como num sentido mais amplo dos processos políticos, e como isso pode ser também uma implicação com as imagens.”
Ao longo do conjunto de obras de Celeste Rojas Mugica, embora cada projeto resguarde suas particularidades, é constante a investigação sobre a imagem e o arquivo como movimentos políticos, seja de demonstração ou reivindicação de poder. Da dimensão agigantada da paisagem do deserto à escala quase humana de um monumento transformado, a artista reflete sobre como a sociedade constrói seus símbolos. O deserto, o corvo. As estátuas que homenageiam personalidades históricas, as bandeiras e faixas erguidas sobre elas. São todos monumentos, são todos imagens em disputa e, por isso, em processo de implicação.
Esse jogo simbólico integra a gênese da política e da identidade de um país e seu território. Seria a imagem o próprio mito fundador? ///
Daniela Fonseca Moura é pesquisadora e educadora, mestre em comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. Atua no campo da crítica da imagem por meio da escrita de textos e na curadoria e mediação do ciclo de conversas do festival Imaginária.