Alegorias realistas do subdesenvolvimento no cinema de Jorge Bodanzky
Publicado em: 11 de julho de 2024Começo este texto dizendo quem sou: Renato Candido, cineasta negro, morador de periferia na Zona Norte de São Paulo e, até então, fiz todo meu percurso acadêmico na ECA/USP. Começo dizendo meu lugar de fala, trazendo esse conceito utilizado por Djamila Ribeiro para compartilhar com vocês minhas memórias de como iniciei minha relação de admiração pelas obras cinematográficas e fotográficas de Jorge Bodanzky.
Lá naqueles idos de 2002, quando iniciei minha graduação em audiovisual, o nome de sua filha, Laís Bodanzky, estava muito em evidência por conta do seu primeiro longa-metragem, Bicho de sete cabeças. Sobre este filme, lembrei de uma sequência de fuga, logo nos dez minutos iniciais, do protagonista Neto (Rodrigo Santoro) correndo pela avenida Engenheiro Caetano Álvares, na minha querida Zona Norte de São Paulo. Sempre me identifiquei muito quando um filme retrata lugares reais com pessoas reais.
Quando penso em Jorge Bodanzky, penso primeiramente nisso: pessoas reais em locais reais. Por outro lado, Jorge não retrata essa noção do realismo apenas como cenário ou contexto, percebe-se em suas obras uma rede intrínseca de construção de sentidos que retratam cotidianos e histórias em diferentes territórios e paragens. Geralmente quem consegue isto, consegue através da música e da literatura. Lembrei de Guimarães Rosa com o sertão narrado por Riobaldo ou mesmo de Elomar e seu cancioneiro do sertão imaginário nas beiras do Rio do Gavião. Para mim, imagens do longa Iracema: uma transa amazônica, que ele realizou com seu amigo e parceiro cinematográfico baiano Orlando Senna, já circulavam em minha memória de garoto que adorava assistir novidades cinematográficas na TV Cultura. Mas fui de fato compreender mais sobre as obras em que o Jorge está através dos queridos docentes Ismail Norberto Xavier e Carlos Augusto Machado Calil, meus professores na ECA/USP.
Atualmente também sou professor de cinema e audiovisual, lecionando muitas vezes História do Cinema Brasileiro. Normalmente dou aulas sobre Cinema Novo, Cinema de Invenção e o surgimento da Embrafilme. Muitas das obras desse período traziam narrativas alegóricas. Entendo essa forma como algo muito coerente daquilo que Glauber traz sobre o senso de decolonialidade em seu manifesto “Estétyka da Fome”, além daquele terrível cotidiano da ditadura, da censura e da sensação de ver o nosso país ser praticamente uma colônia cinematográfica a serviço do imaginário do primeiro mundo. Inclusive nas obras do cinema de invenção também encontramos personagens alegóricos, ainda que elaborados numa representação mais fragmentada e caótica como podemos ver em Bandido da Luz Vermelha (1968, Rogério Sganzerla), Meteorango Kid, o Herói Intergaláctico (1971, André Luís Oliveira) ou mesmo em Bang Bang Bang (1971, Andrea Tonacci).
No entanto, quando leciono sobre vários aspectos imagéticos de obras que Jorge Bodanzky também dirige, como em Terceiro Milênio (1981), Iracema: uma transa amazônica (1974), Gitirana (1975), Jari (1979) e Os Muckers (1978), ao contrário do cinema novo e do cinema de invenção em suas construções alegóricas, esses filmes formam suas narrativas através da construção da imagem como expressão franca do real, do telúrico. É como se dentro de uma cena ficcional, a câmera e o filme dessem espaço para a realidade que acontece, inclusive quando essa realidade pretende ficcionalizar ou elaborar uma ideia contraditória. Vemos isto em Iracema, por exemplo: diversas cenas em que tanto Tião Brasil Grande e a própria Iracema interagem com pessoas do interior do Pará quase que as entrevistando. Ou mesmo quando a câmera abandona temporariamente seus protagonistas para retratar o real ordinário em seu acontecer. Tanto em Iracema quanto em Terceiro Milênio, temos personagens que em seu cotidiano esforçam-se para empreender narrativas ficcionalizantes, lembrando aqui os rompantes iniciais do senador Evandro Carreira ao contar sua ancestralidade em Terceiro Milênio ou mesmo o discurso do mercador portuário de madeira em Iracema: uma transa amazônica.
A percepção da realidade sobre as construções narrativas desses filmes atua como um senso muito direto e ordinário dentro de um processo de encontro que entendo ser ainda colonial. Tião, e até o próprio senador Evandro Carreira, atuam ou personificam quase que a figura do colonizador/despachante da metrópole primeiro mundista ávida por matéria prima barata. Ávida por desumanizar e impor sua superioridade sobre o poder de morte para nossos povos. Assim, o tecer narrativo dos filmes que Jorge Bodanzky dirige, seja sozinho ou em parceria, evidenciam o Brasil não como país, mas sim como uma alegoria colonial forçada dentro uma narrativa de dominação sobre os povos que constituem um território real, multifacetado e simbólico daquilo que se faz como um país que faz sentido a este solo.
Jorge faz de sua câmera e seu olhar um testemunho telúrico e privilegiado disto. Seja tanto pelo fato de ser um homem branco e poder ter acesso a equipamentos, películas e alguns recursos para realizar suas obras; quanto por revelar a contradição da narrativa Brasil com seu próprio país. Recorro à música novamente para traduzir esse sentido, lembrando aqui a canção Querelas do Brasil, de Aldir Blanc. Um Brazil que nunca foi ao Brasil.
Pergunto: para o Brasil real contemporâneo, de seu território e sentido cotidiano, será que esses filmes têm o poder de demonstrar como estamos mergulhados na colonialidade? Seriam esses filmes uma constatação do branco colonizador sobre a inviabilidade da narrativa forçada do Brasil que muitas vezes se traduz em ode à metrópole? E se Edna de Cássia (que atuou como Iracema) fosse a cineasta com os recursos alemães cinematográficos da época e a passabilidade branca nos bloqueios do Exército na região de Marabá, qual seria a narrativa?
Respondo lembrando de Milton Nascimento na música Sentinela, que muito me acompanhou na escrita do meu projeto de série Cartas Expedicionárias: Memória não morrerá. Filmes de Bodanzky, ainda que não sejam midiáticos, são vitais para contar a nossa história e a história da narrativa Brasil de maneira tão objetiva e subjetiva. Meu papel enquanto professor no campo do audiovisual dentro de uma instituição na qual a maior parte das alunas e alunos são de periferia é mostrar tanto a existência desses filmes em seus contextos históricos quanto em suas respostas estéticas e narrativas diante das encruzilhadas daqueles tempos. E que ainda são os nossos, diante de um Congresso Nacional tão antipovo como o nosso.
Calil, naquele jeito afavelmente ranzinza de professor universitário da ECA/USP, me dizia que filmes não mudam o mundo. Mas lembro de Paulo Freire e agradeço a Bodanzky e seus filmes que ajudam a “dar a letra” do real histórica e cinematograficamente. ///
A exposição Que país é este? A câmera de Jorge Bodanzky durante a ditadura brasileira, 1964-1985, está em cartaz no IMS Paulista até o dia 28 de julho. Mais informações aqui.
Renato Candido de Lima é cineasta negro, morador da Vila Nova Cachoeirinha, distrito periférico da Zona Norte de São Paulo. Filho de família pernambucana e de pais operários que remontam a uma São Paulo industrial, Renato foi também um “peão de trecho”, trabalhando como técnico de TV à cabo antes de estudar Audiovisual na ECA/USP. Atualmente batalha para fazer cinema negro em nosso país e atua como professor universitário no campo do audiovisual.