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Cinco destaques em fotografia e vídeo do Panorama da Arte Brasileira pela curadora Júlia Rebouças

Júlia Rebouças Publicado em: 24 de setembro de 2019

Em cartaz no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, o 36º Panorama da Arte Brasileira tem como tema o Sertão. Segundo Júlia Rebouças, curadora desta edição da exposição, o sertão “qualifica o visível e o desconhecido, trata da aridez e da fertilidade, do inculto e do cultivado. Mantém sua potência de invenção, não se rende aos monopólios dos saberes patriarcais, exige novos pactos sociais, desierarquiza sua relação com a natureza, reverencia o mistério, festeja. Sertão é, antes e depois de tudo, experimentação e resistência.”

O 36º Panorama da Arte Brasileira: Sertão apresenta trabalhos de 29 artistas e coletivos. Júlia Rebouças destaca cinco artistas da exposição que usam a fotografia e o audiovisual como suporte.

 

Foto da série Mandalla, de Ana Lira, 2012-19. Cortesia da artista.

Ana Lira (Caruaru – PE, 1977)

Pensar as dinâmicas de construção do semiárido por um ponto de vista potente e sadio. Ali se apresenta uma outra cosmovisão, do momento em que você planta ao momento em que está ingerindo uma comida. Esses ciclos são influenciados pelo fato de estarmos defendendo uma construção coletiva baseada na vida. Infelizmente o sacrifício e a morte têm acontecido com o modelo de agronegócio do país, que não precisa ser perverso, mas que é no Brasil ao sacrificar a saúde das pessoas em nome das empresas. A experiência da agroecologia no semiárido mostra um sistema que, ao ser respeitado em suas peculiaridades e ciclos, provê uma vida equilibrada. A imagem desses lugares construída pela indústria da seca fez o resto do Brasil acreditar que o semiárido era um lugar de impotência, de um povo que não sabe decidir e precisa da tutela do Estado. Essas escolhas enfraquecem a potência construtiva de regeneração que o semiárido tem. A seca não é um problema a ser combatido, é um fenômeno natural, como a neve. Os agricultores falam: “durante a estiagem, o sertão está dormindo”. Se você lida com os ecossistemas de forma respeitosa, ciclos acontecem, sem precisar sacrificar a vida das pessoas, dos animais, das espécies. Ana Lira propõe um livro de artista que seja um canal de interlocução e encaminhamento de uma experiência na qual acredita e que faz perceber o Nordeste, o sertão e o semiárido em uma vibração de potência. “Creio que os processos de criação precisam reverberar essa força e desejo de transformação”, comenta a artista.

 

Imagem do filme Atomic Garden, de Ana Vaz, 2018. Cortesia da artista.

Ana Vaz (Brasília, 1986)

Atomic Garden, através, da sua visão estroboscópica sobre do mundo, busca explodir e expandir as relações entre natureza e artifício, atomização e recomposição, contaminação e resistência. É uma visão tecnológica, não humana, sobrenatural. É muito significativo vir ao Brasil um filme feito no Extremo Oriente, em Fukushima, um lugar tão longínquo para nós, e encontrar ali um outro sertão, sem fronteiras, sem limites, condenado a ser um fim e início de mundo. Em Fukushima, de dentro de uma terra possivelmente tóxica, brotam outras raízes, outras formas de vida e mundo. Que o sertão possa perder-se para encontrar-se também em Fukushima, alastrando-se rumo a outras e múltiplas territorialidades.

 

Frame do filme Yoonahle, do Coletivo Fulni-ô de Cinema, 2012. Cortesia do artista.

Coletivo Fulni-ô de Cinema (Águas Belas – PE)

Em Yoonahle o espectador vê um senhor tirando a palma para dar para o gado, no semiárido nordestino, na seca, e pensa que é um filme “nordestino normal”. Só que ali é justamente o índio nordestino, resistente, que vive no sertão, que sofreu massacres e imposição cultural dos não indígenas. A obra expressa toda essa resistência em meio aos vestígios deixados pela história colonial. Resistindo ao tempo, o sertão é simbólico para o povo indígena, os conhecimentos desse lugar vêm dos seus antepassados. Por mais que sofram momentos de seca, grandes períodos de estiagem, eles superam, porque ainda pode-se encontrar uma forma de sobreviver a esse espaço que é sagrado. Para muitos, sertão não quer dizer nada, mas, para eles, que vivem ali, tem tudo a ver com sua vida, com a sua existência.

 

Fotos da série Homem semelhante, de Desali. Cortesia do artista.

Desali (Contagem – MG, 1983)

Além das pinturas do artista apresentadas no 36o. Panorama de Arte, há um recorte de fotografias da série Homem semelhante. São fotos em preto e branco que Desali tira há mais de dez anos, registrando seus amigos e pessoas próximas do bairro em que vive em gestos espontâneos, mas inusitados. O artista registra as mesmas pessoas em diferentes momentos. Há uma adolescente que agora se torna adulta. Ela está do lado de uma pessoa jovem que agora está mais velha. É uma narrativa a que Desali dá continuidade. Esses jovens, diante das imagens antigas, que posição ocupam hoje? Eles entram nesse diálogo um com outro. É bom ver se esses corpos estão sobrevivendo, se continuam trabalhando, convivendo, ali, na mesma rua onde foram tiradas essas primeiras fotos.

 

Foto da série Retiro de caça ou um outro capelobo, de Gê Viana, 2019. Cortesia da artista.

Gê Viana (Santa Luzia – MA, 1986)

Retiro de caça ou um outro capelobo (2019) vem da necessidade da artista de falar sobre as coisas que aconteceram com povos retirados do seu lugar de origem. Sua avó foi a primeira que a artista questionou a respeito de sua identidade, perguntando se havia algum indígena na família. Ela falou: “Ah, minha filha, a minha mãe era braba. Foi pega no mato”.  A partir daí, a artista começa a perceber o tanto de pessoas que carregam essas mesmas histórias. É muito assustador pensar que várias famílias foram construídas a partir de uma violência psicológica, do estupro, do aprisionamento. Pessoas foram laçadas, corpos foram sujeitos a uma relação que não queriam. Na mitologia do Maranhão, o capelobo é um lobo com corpo de homem e focinho de tamanduá, um ser que transita dentro do mato, que está nesse lugar de caça. Para Sertão, a artista constrói um capelobo a partir de sua vivência para criar uma ficção de proteção contra essas violências. Para ativar um lugar de memória, para não deixar passar essa história.///

 

Júlia Rebouças é curadora, pesquisadora e crítica de arte. Graduou-se em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (2006) e é Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi co-curadora da 32a Bienal de São Paulo, Incerteza Viva (2016) e de 2007 a 2015 trabalhou na curadoria do Instituto Inhotim, MG.

 

 

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