Livros

O trauma da impossibilidade em “não estou sozinho”, novo fotolivro de André Penteado

Ângelo Manjabosco Publicado em: 29 de novembro de 2016

Tentei ler não estou sozinho, o novo fotolivro de André Penteado, mas não consegui chegar até o final. Parei pouco antes, na página 119. Explico.

Nasci no interior do Rio Grande do Sul, uma região isolada e majoritariamente rural. Minha mãe, que é psicóloga, me contou certa vez que o estado tem taxas de suicídio assustadoras. Eu nunca quis saber dos números. Assustadora foi o suficiente. Uma década depois, já morando em São Paulo, vi em uma manchete de jornal: “Rio Grande do Sul lidera as estatísticas de suicídio no país”. Não cliquei nem fui atrás das estatísticas. Liderar era suficiente. Outra vez estava distraído em uma roda de conversa entre familiares e vi, num canto, minha avó falando baixinho para minha tia: “Sabe o Adolfo? Se matou”. Nunca soube quem era o Adolfo. Se matar era o bastante.

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Por motivos que até hoje não entendo, nunca quis ir até o final dessas histórias. E aconteceu a mesma coisa com o livro de André Penteado. Estava indo bem – dentro do possível – até a metade. Tive de mastigar rápido as páginas seguintes, para não sentir o gosto. E as últimas histórias ficaram lá. Na página 119, me dei conta de que, mais do que botas, esporas e bombachas, essa é minha herança. A tal “pampa pobre”, como diz a música. Venho do estado campeão em tirar a própria vida.

Ao considerar que o real, na psicanálise ou na arte, pode variar de acordo com a experiência do indivíduo, André Penteado opta por enfrentar a questão do suicídio pelas margens. Não por acaso, essa é também a tática sugerida por Freud para tratar do trauma, conceito baseado no relato. Para Freud, “falar do trauma é menos dizê-lo do que construir as bordas em torno de um impossível dizer”. E, se em trabalhos anteriores de Penteado, o não dito salta do chão histórico do tempo, o silêncio de Cabanagem (2015) também se faz presente em não estou sozinho, talvez até mais explícito. Mas não é, como se costuma dizer, um silêncio ensurdecedor. É abafado. Um silêncio que nasceu e morreu silêncio. Uma vida dedicada ao ato de não dizer nada.

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Mas se o silêncio dá o tom geral, as fotografias, por outro lado, revelam tantos detalhes quanto o olho consegue ver. De que matéria é feita essa luz, que ilumina tudo? Que tipo de sensibilidade é essa, que resolve ignorar os meios tons e transformar tudo em um plano único? As cores saturadas, tão construídas quanto a própria perspectiva da imagem, não deixam dúvidas sobre a postura do fotógrafo. Seu artifício serve para que nada fique escondido, para que as histórias se tornem visíveis. Dessa forma, até mesmo uma mochila jogada embaixo da cama parece querer dizer alguma coisa, revelar uma nova camada de significado. Vida e morte estão ali, nos indícios impregnados naquela mochila sem profundidade pictórica e que escorrega pela superfície inclinada tal qual as laranjas de Cézanne.

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Os retratos, tema da segunda parte, foram feitos em série, com pouca variação nos enquadramentos, fato que iguala as perdas de cada um e aproxima os personagens. Já no capítulo que trata de memória, a linha de raciocínio que corria linear na seção anterior sofre para tentar encontrar abrigo nas legendas que não correspondem, ou ao menos não aparentam descrever uma conexão óbvia. A ideia de zona de conforto – e, sobretudo, a ausência dela – parece ser peça chave no trabalho de Penteado. A edição, estruturada em capítulos temáticos, oferece uma falsa impressão de que tudo está lá, posto da maneira mais racional possível. Até o título sugere certo aconchego. No livro, entretanto, “sozinho” é uma palavra que não dorme.

Enfim, chego aos relatos em texto. O primeiro, na página 109, diz: “mesmo depois de tantos anos, vejo minha vida da perspectiva do ‘e se nunca tivesse acontecido’, e ‘se a gente ainda estivesse junto’”. Naturalmente, depois de uma frase desse tipo, espera-se um respiro. Porém, como as fotografias, também os textos são achatados. Não há caixa alta. Não há quebra de parágrafo, e o alinhamento faz do texto um retângulo claustrofóbico, onde as coisas não podem ser escondidas. Portanto, a solução visual dada aos textos é, de certa forma, equivalente às estratégias aplicadas nas fotografias.

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Os últimos relatos eu não li. Nunca cheguei até o final. O que não deixa de ser irônico, porque esse é um livro sobre finais – ou sobre como terminar depois do fim. E, tal qual Cabanagem, o recém lançado não estou sozinho nos conta sobre um tipo de revolta que nunca termina: a intenção de reivindicar ou descolar-se de um terreno, seja ele imaginário e afetivo ou mesmo um terreno-terra, efetivo. Não é de se estranhar que o protocolo de registrar, catalogar, editar e embaralhar memórias esteja presente em ambos livros. Assim, o autor assume que tragédias, sejam elas familiares ou em escala nuclear, estão unidas pelo trauma da impossibilidade. E ambas são, em última instância, irreconciliáveis.///

 

Ângelo Manjabosco é jornalista e pesquisador. Pós-graduado em fotografia pelo Senac-SP e mestre em estética e história da arte no PGEHA-USP, colaborou como pesquisador na exposição Claudia Andujar, no lugar do outro.

 

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