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Jerzy Lewczyński, o catador de imagens

Dorrit Harazim Publicado em: 25 de maio de 2015
© Muzeum w Gliwicach/Museum in Gliwice
© Muzeum w Gliwicach/Museum in Gliwice
Retrato encontrado na rua, 1970
© Muzeum w Gliwicach/Museum in Gliwice

Como definir a personalíssima obra de Jerzy Lewczyński, um dos grandes nomes da fotografia polonesa do século passado? Ao receber a missão de escrever sobre o cultuado conterrâneo para uma publicação do museu de Gliwice, o ensaísta Wojciech Nowicki achou que deveria conhecer primeiro o homem. Depois compreenderia a obra, pensou.

Percebeu, contudo, que eram coisas indissociáveis e formulou o que talvez seja a definição mais certeira da obra e do autor: “Tentei achar o homem em meio a seu mar de fotografias, mas ele me escapava. Quando instado a falar de si, ele sempre falava de imagens. E quando eu buscava o fotógrafo em Lewczyński, era Lewczyński o homem que emergia – um homem que transformou sua vida em fotografia e fez do meio a sua razão de viver. Em resumo: metade homem, metade câmera fotográfica”.

Uma faceta do trabalho desse polonês difícil de catalogar esteve exposta na Tate Modern de Londres até março, numa mostra coletiva de grande originalidade intitulada Conflito, tempo, fotografia. Junto com Don McCullin, Walid Raad, Shomei Tomatsu, Chloe Dewe Mathews, Luc Delahaye e outros, Lewczyński foi um dos selecionados para ilustrar visões múltiplas sobre a memória, o poder do tempo e a arte de fotografar o passado no presente.

A originalidade da mostra estava na substituição da ordem cronológica convencional (Crimeia, Guerra Civil Americana, I e II Guerras Mundiais, Vietnã, Nicarágua, Guerra do Golfo, Afeganistão, Iraque) por uma cronologia mais instigante. Os trabalhos foram expostos seguindo a linha do tempo transcorrido entre a ocorrência do fato e a data em que foi fotografado. Assim, o primeiro conjunto de imagens mostrou imagens captadas quase simultaneamente aos fatos. Em seguida vinham fotografias feitas com dias, depois meses, anos, décadas de distanciamento. Por fim, releituras de fatos ocorridos até mesmo 100 anos antes.

É nessa reinterpretação visual do passado que Jerzy Lewczyński (1924-2014) foi mestre e deixou sua marca pessoal na história da fotografia. Para a mostra londrina, foi selecionada sua série Toca do lobo (Wolfsschanze), realizada 15 anos após o término da Segunda Guerra. Trata-se de uma reflexão visual do artista sobre o formidável quartel general montado por Adolf Hitler na Prússia Oriental, em 1940.

Toca do Lobo, 1960 © Muzeum w Gliwicach/Museum in Gliwice

 

Idealizada para durar a eternidade sonhada para o Terceiro Reich, a Toca do Lobo teve um fim melancólico: diante do avanço do Exército Vermelho, foi abandonada e dinamitada às pressas por seus últimos ocupantes em fuga. Virou pó. Ou quase – as quase 500 toneladas de explosivos reservadas à destruição dos bunkers foram insuficientes para fazer tábula rasa do complexo. Sobraram ruínas da história.Toca do Lobo foi o codinome escolhido pessoalmente pelo Führer para o vasto complexo de 80 edificações de onde ele comandou a marcha nazista rumo ao Leste. Tida como inexpugnável, a cidadela protegida por 50 mil minas terrestres, muros eletrificados, baterias antiaéreas e um staff militar de mais de 2 mil homens era o QG preferido de Hitler, que ali passou como soberano do mundo durante mais de 800 dias – 800 dos 2190 dias de duração do conflito. O comandante das SS, Heinrich Himmler, o chefe da Força Aérea, Hermann Göring e outros líderes nazistas também tinham ali bunkers próprios.

Lewczyński revisitou o local em 1960 e retratou a ascensão e queda do que um dia foi a Toca do Lobo através de uma linguagem que o distanciamento do tempo lhe proporcionou.

Foi a partir dessa necessidade de captar a história através da fotografia que ele desenvolveria mais tarde o conceito de “arqueologia da fotografia”, perseguido com obsessão e urgência até o fim da vida.

As primeiras fotografias de Lewczyński, ainda amadoras, datam de 1938 e foram feitas com uma Baby Brownie 6,4 × 4 da Kodak. Para uma segunda leva de experimentações com fotomontagens e ensaios sobre o cotidiano no vilarejo natal de Rchania, ele comprara uma Agfa Billy Record para filmes de 6 × 9 cm.

Foi no período do pós-guerra que sua opção pela fotografia se consolidou, alargando o seu leque de linguagens – do estilo construtivista à pintura abstrata, do realismo socialista ao surrealismo. Datam dessa fase Composições , inspirada nos rayogramas de Man Ray, obras marcantes como Jazz e Crucificação, e um conjunto de superposições de negativos sobre o passado industrial da Silésia.

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Jazz, 1959
© Muzeum w Gliwicach/Museum in Gliwice
Crucificação, 1965
© Museum in Gliwice

Essas incursões por tendências múltiplas fizeram com que Lewczyński integrasse a vibrante vanguarda da fotografia polonesa da segunda metade do século 20, ao lado de Zdzislaw Beksinski, Bronislaw Schlabs e Tadeusz Maciejko. Uma célebre mostra do grupo, realizada em 1959 na cidade de Gliwice e batizada de Anti-fotografia, revelou um conjunto de imagens quase tão radicais quanto as formas desfocadas da “fotografia subjetiva” de Otto Steinert. (Em 1950, Steinert chocara a elite artística alemã ao definir a fotografia como uma autorreflexão. Criou imagens das quais desossava a realidade original para lhe atribuir formas metafóricas).

Lewczyński ensinou que a câmera na mão de um fotógrafo “é uma espécie de caneta da eternidade com a qual escrevemos nossas tensões mais íntimas para o futuro”. Seguindo esse receituário, desenvolveu urgência em retratar a história e preservar a memória humana através da fotografia. Passou a recolher negativos velhos, riscados ou danificados onde quer que os encontrasse – no lixo, na rua, em algum sótão ou álbum de família – e devolver-lhes existência nova através de criativas intervenções formais sobre o original. Inaugurava assim o conceito que mais tarde foi definido como “arqueologia da fotografia”.

“Uso o termo para descrever o ato de devolver significado a coisas que foram rejeitadas, desconsideradas, condenadas ao esquecimento ou deixadas à mercê do acaso. Um trabalho de descoberta, pesquisa e comentário de algo que ocorreu no passado fotográfico, tentava explicar.

 

Antifotografia, 1959 © Muzeum w Gliwicach/Museum in Gliwice

 

Para Lewczyński o efeito do mofo, da umidade, do tempo sobre um negativo descartado tinha significado existencial e valor documental. Cultuou negativos como o último rastro de um mundo que sumiu. Considerava a luz impressa na gelatina uma testemunha valiosa sobre o passado. “Se pudéssemos realizar a façanha de abrir um negativo, infiltrar-nos em seu interior, ampliar as partículas de prata até chegar nos eletrodos, talvez conseguíssemos dar vida nova ao momento passado”, dizia, entusiasmado com hipótese tão fantasiosa.

Viveu entre milhões de álbuns velhos, negativos soltos, diários, textos, memórias que colhia ou lhe eram enviadas por desconhecidos que conheciam seu trabalho. “É uma massa de coisas que algum dia tiveram existência”, dizia, ao explicar por que não conseguia jogar nada fora. Contava, desconsolado, casos como o de uma idosa da Silésia que lhe mostrara uma gaveta repleta de imagens de uma insurreição de 1919. Ao revê-la dois anos depois, nada restava – ela morrera, as cortinas eram outras, tapetes novos substituíam os antigos, o porta-retratos com uma foto de casamento também sumira. “É assim que a memória morre”, lamentou.

Um oportuno documentário sobre Lewczyński, dirigido por Aneta Panek, especialista em arte experimental no eixo Berlim-Varsóvia-Paris, está disponível no YouTube. Nele, o fotógrafo se mostra acachapado ao abrir um gavetão repleto de negativos embaralhados.“Terrível, isso tudo. Terrível”, murmura como que para si. Pega ao acaso um dos negativos soltos, ergue-o contra a luz e comenta tratar-se da imagem de um amigo. Pega outro e observa que tudo pode servir de material para criar uma obra nova.

No documentário, Lewczyński também conta o tesouro que encontrou num hostel de Manhattan onde teve de pernoitar certa vez, em 1979. O lixo do dia ainda não havia sido recolhido e ele reconheceu de longe o amarelo inconfundível do que pareciam ser envelopes de fotos. Catou tudo e deparou-se com negativos e folhas de contato de um ensaio teatral. Como o endereço da casa de espetáculos constava do material talvez fosse possível garimpar a identidade dos retratados a posteriori, como já fizera tantas vezes. Mas desistiu ao ver fotos de uma jovem nua engajada em jogos eróticos explícitos. A arrojada dama de ontem, explica ele, pode ser hoje uma pacata mãe de cinco filhos e não gostar de ser contatada.

Mas foram retratos resgatados do período de guerra que mais atraíram e incentivaram esse decano da fotografia de vanguarda da Polônia. “São pessoas que talvez gostassem de ainda estar entre nós. O olhar desses mortos me dá saudade”, explicava ele. O longo garimpo investigativo que empreendeu ao encontrar negativos no sótão de uma casa em Sanok desembocou na festejada série Negativos. O fotógrafo descobrira que os negativos em vidro da época da Primeira Guerra retratavam a família de um apotecário, Josef Eisenbach, e que um de seus descendentes morava em Israel. Através dele chegou a um parente que residia em Bremen, na Alemanha. Este, por sua vez, dispôs-se a viajar até a Polônia para conhecer o trabalho do catador de imagens. O tríptico Encontrado no sótão é a obra resultante dessa arqueologia de sísifo.

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da série “Negativos”, 1975 © Muzeum w Gliwicach/Museum in Gliwice

“A história é tudo o que temos, a única coisa que faz sentido quando confrontada com o tempo. A fotografia me permite romper a barreira com o passado, conquistar o olvido, acreditava Lewczyński. Rasuras, arranhões, mofo ou danos impregnados na imagem de algum negativo o emocionavam. Sustentava que a foto de uma mulher encontrada na carteira de um soldado morto continha traços da energia física do passado, das condições climáticas, até mesmo do cheiro de outro tempo.

Recentemente a revista eletrônica Lens Culture reproduziu um diálogo de Lewczyński com o correligionário Ked Olszewski, também fotógrafo e artista visual. Olszewski queria saber como classificar a obra do mestre que trafegou por tantas correntes contraditórias – a documental, a conceitual, a experimental. Ficou sem resposta, pois Lewczyński há muito superara a necessidade de definir a fotografia. Ele a vivia.

E recomendava que ela fosse abordada com vagar, na intimidade, em privado. Suas recomendações a esse respeito valem como manual de uso: Quando olhamos para um conjunto de fotos junto a outras pessoas nos entediamos com frequência. Vamos ficando indiferentes ao que vemos, cansamos. Uma fotografia exige um tête-à-tête com quem a olha, por mais banal e caseira que ela seja – como a foto de identidade do nosso pai ou a foto de casamento da nossa avó. Na verdade, instantâneos dessa natureza exigem até mais isolamento do que uma foto jornalística ou obras expostas em museus. A mágica de retratos caseiros está em transformar o que imaginamos em intensos encontros com a realidade. Algo como transmitir o valor do silêncio”.

O lado humanista de Lewczyński prevaleceu em todas as fases de sua carreira. Desde a mais formal à mais subjetiva. Costuma-se apontar a celebrada série Cabeças de Wawel, de 1959, como exemplo desse humanismo agridoce. Wawel, como se sabe, é o esplendoroso Castelo Real situado no alto de Cracóvia e foi sede da monarquia polonesa até o século 17. Uma de suas principais atrações é o majestoso Salão dos Senadores, reservado para casamentos reais, bailes e cerimônias da corte e cujo teto foi ornado por cabeças humanas esculpidas em madeira em 1540 que transmitem ao visitante a sensação de ser vigiado do alto. A soma dessa referência nacional absolutista do passado com a glorificação do operariado socialista imposta à Polônia pelos soviéticos levou Lewczyński a criar um retrato com o qual a sua gente pudesse se identificar. Assim nasceu Atenção, da série Cabeças de Wawel.

 

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Desconhecido, da série “Cabeças de Wawel”, 1959
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Desconhecido, da série “Cabeças de Wawel”, 1960
© Muzeum w Gliwicach/Museum in Gliwice

 

“Meus retratos de trabalhadores anônimos cujos rostos estão escondidos atrás de enxadas ou sequer têm face eram mais dramáticos e apropriados para a época [do regime comunista] em que foram feitos. O verdadeiro esforço do ser humano costuma ser imperceptível numa massa de gente desconhecida, castigada ou sem rumo. Ainda hoje isso é assim. Por isso atribuo tanta importância a retratos de anônimos. São minha resposta, meu comentário, minha assinatura para as transformações daqueles tempos estranhos”, explicou Lewczyński um ano antes de morrer. Para ele, a fotografia representou a forma de contato com a humanidade.

 

 

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

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