Colunistas

Helena Almeida e a sedução do impossível

Moacir dos Anjos Publicado em: 26 de outubro de 2018

Fotografia da série Seduzir, de Helena Almeida, 2002. Cortesia Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa

No dia 25 de setembro passado morreu a artista portuguesa Helena Almeida. Tinha 84 anos e uma obra longa e consistente, na qual interrogou, como poucos antes ou agora, a relação entre o corpo e sua imagem, entre o sujeito e seus simulacros. Entre os vários conjuntos de trabalhos produzidos ao longo de décadas – para os quais recebeu merecido, embora tardio, reconhecimento crítico –, é difícil destacar um somente, posto que quase todos expressam um mesmo compromisso inquebrantável com o que a afeta e fascina. Nunca houve, em seu percurso, espaço ou tempo para distrações ou concessões ao novidadeiro. Debruçar-se sobre um desses conjuntos, contudo, é também de algum modo discutir a obra toda da qual faz parte. Falar da série de fotografias nomeada Seduzir, realizada entre 2000 e 2002, é investigar os modos como Helena Almeida, neste e em outros momentos de sua trajetória, oferece um espelho para o espectador com ele se defrontar.

Estado para um enriquecimento interior, 9 fotografías com tinta azul
de Helena Almeida, 1976. Coleção Helga de Alvear, Madrid, Cáceres

Como em outros dos trabalhos da artista, essa série é composta de várias imagens em branco e preto de uma única mulher, todas captadas em um mesmo lugar. Sabe-se que essa mulher é a própria artista e sabe-se que o lugar onde é feito o registro é seu atelier. Tem sido assim desde há muito tempo, o bastante para mesmo um olhar ligeiro promover, de modo inequívoco, esse reconhecimento. Essas fotografias não são, porém – como não o eram em séries passadas –, meros autorretratos, posto que o seu rosto – espaço de individuação imediata – está sempre além do enquadramento das imagens ou voltado propositadamente para baixo, escondido do escrutínio de quem as observa. A roupa com que Helena Almeida nelas aparece, ademais, é indistinta e casual, índice possível de um sujeito que não deseja ou não pode mais se afirmar. São fotografias, ao contrário, que repetidamente exibem, em poses diversas, imagens de um corpo genérico endereçadas a um observador imaginário. Tampouco a descrição visual do lugar onde desenvolve seu ofício é elaborada com o intento de torná-lo específico: vê-se, nas fotografias, apenas um piso formado por placas de cimento que é interrompido, ao fundo das cenas, por um rodapé cinza e uma parede clara. Trata-se, todavia, sempre de um mesmo e único lugar que acolhe aquele corpo e que responde, de modo ativo, aos movimentos que ele faz e que a câmera fixa.

Nas imagens de menor dimensão que compõem a série, os pés descalços e as mãos da artista tocam o piso com firmeza ou, por vezes, nele só encostam. Parecem examinar a textura e sentir a temperatura daquela superfície, inventariando, para a câmera que registra de perto esse contato (e, por extensão, para o observador das fotografias feitas), relações formais que corpo e espaço, juntos, sugerem como possibilidades provisórias de encontro entre o que é supostamente diverso. Embora o chão seja o suporte onde pés e mãos se apóiam, as imagens não afirmam, entre o primeiro e os outros, distinções hierárquicas precisas. Por meio do emprego de enquadramentos fechados, Helena Almeida cria, ao contrário, um jogo especular entre corpo e espaço que sombreia, em vez de aclarar, as diferenças físicas e simbólicas que eles possuem.

É em conjunto de fotografias de dimensões maiores, contudo, que a relação ambígua entre corpo e espaço proposta por Helena Almeida é investigada de modo mais extenso. Impressas em escala próxima àquela de quem supostamente as observa, as imagens oferecem um repertório conciso de movimentos que a artista, em pé e calçando sapatos de salto alto – signo convencional de feminilidade –, faz com mãos e pernas. Em várias das fotografias, um fio de arame é enrolado em um de seus tornozelos e sua extremidade livre e longa deixada estendida sobre o piso, desaparecendo do campo das imagens criadas. Sugerem, dessa forma, quase uma extensão protética que desdobra o corpo para um lugar além daquele que as fotografias podem captar. Em ao menos uma delas, porém, a ponta solta do arame é vista amarrada ao pé de um banco alto de madeira, numa alusão mais clara à proximidade entre as naturezas da carne viva e de matérias inertes. Outras dessas imagens exibem, ainda, um fio menor de arame envolvendo suas pernas (sejam as duas, seja uma só delas), tendo as extremidades, no mais das vezes, seguras por suas mãos ou nelas enroscadas. Em vez de ferir, o arame aqui se adocica e acaricia a pele, sugerindo o desfazer simbólico dos limites de mãos, fio e pernas, e a recriação do que é a superfície corpórea.

Fotografia da série Seduzir, de Helena Almeida, 2002. Cortesia Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa

Um outro agrupamento de fotografias mostra Helena Almeida, agora sem o sapato de um dos pés, levantando e dobrando uma das pernas em equilíbrio precário. Ou inclinando-se suavemente para os lados. Ou, ainda, com a ajuda do vestido que usa, experimentando posições dirigidas a uma audiência anônima e diversa. São imagens que, de imediato, associam o título do trabalho a estratégias de encanto corporal, posto que encenam poses que, convencionalmente, buscam atrair a atenção de quem as contempla. O desejo de interpelar o outro se expressa, igualmente, pelo fato da artista apor, sobre algumas dessas fotografias, pinceladas de tinta vermelha, recorrendo a um procedimento introduzido na sua obra na década de 1970. Além de as superfícies pintadas serem, como acontecimento físico, mais próximas do observador do que as imagens fotografadas, elas são, obviamente, mais recentes do que as cenas sobre as quais são sobrepostas. Confundem, mais que outras cenas criadas, as fronteiras entre espaço e tempo representados por Helena Almeida e espaço e tempo vividos por quem as observa.

Seduzir #12, de Helena Almeida, 2002. Coleção Helga de Alvear, Madrid, Cáceres

É esse conjunto de fotografias, ademais, que diretamente remete às imagens, registradas pela artista em vídeo, que a mostram estudando poses que serviriam de modelo para a série Seduzir (além de vídeos, também desenhos foram já usados para fim semelhante em ocasiões diversas) e que foram incorporadas como parte integrante do trabalho final, embora explicitando a sua natureza e função originais. Nas imagens filmadas – ao contrário das fotografias escolhidas entre tantas rejeitadas no processo de edição da série –, ficam expostas todas as hesitações na busca e na definição das cenas, o desconforto do corpo frente aos movimentos que as posições escolhidas ditam, e seu cansaço diante de situações extremadas e repetidas. É no vídeo, portanto, que Helena Almeida expõe, sem pudor, o método empírico e demorado que utiliza para melhor conhecer as possibilidades de sedução do corpo. É também por meio dele que, paradoxalmente, amplia o objeto de endereçamento das fotografias, o qual passa a incluir – reflexivamente, mas sem deixar de ser extensivo a outros – a própria artista. Abdicando da tentação de construir uma narrativa, nas imagens filmadas ela parece apenas medir e apreender, com a representação repisada de gestos comuns, a extensão da área imprecisa que seu corpo ocupa. Demonstra, por meio dessa operação simples, que as fotografias que formam a série Seduzir são apenas momentos de um embate maior incessante em que mãos, pés, a roupa que veste e os sapatos que calça e tira são usados para demarcar, relacionalmente, um espaço que, a despeito de todo esforço, não se deixa apreender totalmente. Espaço, entretanto, que ela teima em percorrer e registrar, como se empenhada em seduzir aquilo que não se entrega por inteiro.///

 

Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010) e Local/global: Arte em trânsito (2005), entre outros volumes e ensaios em livros.

 

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