A fotografia descobre a América
Publicado em: 20 de junho de 2013Exposição no MET retrata a Guerra Civil Americana, a primeira narrada do começo ao fim por fotógrafos
Para quem gosta de história tanto quanto de fotografia, e está em Nova York ou pretende visitar a cidade nos próximos três meses, fica o aviso: a mostra Fotografia e a Guerra Civil Americana, em exibição no Metropolitan Museum of Art até 2 de setembro, é imperdível. Ela tem o dom de induzir o visitante a uma obrigatória parada para reflexão.
Isso, apesar das mais de 200 fotos de formatos, dimensões e processos variados (daguerreótipos, ambrótipos, ferrótipos) estarem acondicionadas em salas por demais exíguas para abrigar o público que nelas se acotovela desde a abertura da mostra, em abril. Os visitantes são, em sua grande maioria, cidadãos americanos. Assim como foram basicamente americanos os 40 milhões de telespectadores que, em 1990, não desgrudaram da televisão durante cinco noites seguidas para acompanhar a preciosa série documental A Guerra Civil, do diretor Ken Burns, de 11h30 de duração, transmitida pela rede pública de televisão PBS.
Em julho, quando se comemoraram os 150 anos da Batalha de Gettysburg (1 a 3 de julho de 1863), ocorreram mais de 400 eventos no local da mais terrível carnificina da história americana, hoje preservado como parque militar. Foram três dias de combates entre os exércitos da União e os rebeldes Confederados, com 51 mil soldados dizimados. Ou seja, em menos de 72 horas de combate numa planície da Pensilvânia, em solo pátrio, morreram quase tantos soldados americanos quanto os 58 mil mortos da Guerra do Vietnã, que durou oito anos, cinco meses e 20 dias.
A Guerra Civil Americana (1861-1865), também chamada de Guerra de Secessão, foi uma luta fratricida entre duas visões para um mesmo país. Ela opôs os Estados do Norte industrializado, liderados por um presidente abolicionista da estatura de Abraham Lincoln, a um Sul escravagista e rebelde que havia formado os Estados Confederados da América. Deixou cicatrizes políticas, raciais e econômicas visíveis até hoje, além de ter sido uma carnificina sem paralelo na história do país.
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Mal saída da primeira infância na Europa, onde estreou em 1839, a fotografia desbravada por Joseph Nicéphore Nièpce e Louis Daguerre não demorou a cruzar o Atlântico e logo alterou a forma de comunicação visual da população. A mostra no Metropolitan é impactante justamente por demonstrar o momento em que essa nova tecnologia e a história política dos Estados Unidos se fundiram de forma inextricável.
Quando a Guerra Civil Americana irrompeu, duas décadas mais tarde, a fotografia já estava suficientemente fincada no país para tornar-se a narradora oficial do conflito – sua face indelével. Até então, e desde sempre, guerras e batalhas vinham sendo narradas através da milenar arte militar. Da Antiguidade a Delacroix, passando pela Renascença e atravessando as Guerras Napoleônicas, glória, desgraça e heroísmo bélicos passavam pela interpretação de expoentes das Belas Artes.
A fotografia mudou essa narrativa de forma radical. “Ela permitiu que o foco se fechasse na realidade física – nos fatos de vida e morte – que definem a experiência humana”, define o diretor do Metropolitan, Thomas P. Campbell.
O primeiro fotógrafo de guerra, segundo os estudiosos, parece ter sido um americano anônimo que captou algumas imagens em daguerreótipo durante a Guerra Mexicano-Americana, em 1847. Também existem inúmeros registros fotográficos da Guerra da Criméia (1853-1856), que envolveu o império russo de um lado e uma coligação anglo-franca-sarda-otomana do outro. Mas foi somente na Guerra Civil Americana que fotógrafos documentaram, pela primeira vez, um conflito militar do início ao fim. Eles eram perto de mil a fotografar sozinhos ou em equipes. Seguiam a guerra e montavam tendas infláveis junto às tropas para retratar a soldadesca, que municiava suas famílias de retratos posados com esmero e despachados com regularidade dos acampamentos.
Esses estúdios itinerantes, montados com claraboias para permitir a entrada de luz natural, produziam milhares de imagens de cidadãos de todas as idades, raças e classes sociais do período. Estúdios fixos e galerias nas cidades também se multiplicavam, refletindo a imagem em transformação que o país começava a ter de si mesmo. Jeff L. Rosenheim, o diretor do Departamento de Fotografia do museu e curador da mostra, arrisca uma análise do período: “A câmera fotográfica desempenhou um papel que nem os exércitos em confronto, e tampouco seus líderes, poderiam ter tido. Ela definiu e ajudou a unificar a nação através de um ato , nem planejado nem ensaiado, de construção de memória nacional”.
Quatro grandes fotógrafos – Alexander Gardner, Mathew Brady, Timothy O’Sullivan e Andrew Joseph Russell – constituem a espinha dorsal da mostra. São, também, cultuados como pioneiros de uma linhagem de olheiros da cena americana que desemboca em um Walker Evans, Robert Frank ou Lee Friedlander. Eles deixaram uma obra colossal – não apenas volumosa como inovadora. Por outro lado, não raro ajeitaram a realidade com a mão, recriando cenas para lhes insuflar mais impacto ou para compensar a limitação tecnológica da época e a dificuldade de chegar ao local no momento da ação.
Duas das imagens de mais impacto captadas na Gettysburg pós-carnificina, e que trazem à memória cenas semelhantes imortalizadas em guerras posteriores, fazem parte da prolífica obra de Alexander Gardner. Não por acaso o autor lhes deu títulos assemelhados: em tradução livre, “O último descanso do atirador” e “A moradia do atirador rebelde”. Diante da limitação tecnológica de se fotografar objetos em movimento, que em alguns casos exigia exposições à luz de até oito minutos de duração, tornou-se praxe não pecaminosa recriar cenas já ocorridas.
Vários dos nomes mais respeitados da fotografia da época foram adeptos declarados da prática, intensificando com genial teatralidade o efeito visual e emocional desejado. No caso das fotos gêmeas de Gardner citadas acima, um mesmo cadáver serve de protagonista a duas cenas distintas. Para tanto, seu corpo foi carregado da trincheira para o descampado (ou vice-versa), sua roupa foi alterada, sua arma foi reposicionada para melhor se encaixar na composição desejada pelo autor, o distanciamento da câmera sugerindo abandono numa das imagens é trocado pelo foco mais fechado e cru na outra.
Foi ao prestigioso estúdio nova-iorquino de Mathew Brady, de onde saíram alguns dos retratos mais célebres da elite do país, que Abraham Lincoln recorreu em fevereiro de 1860 para tentar reverter uma desvantagem física e deslanchar sua ascensão política.
Naquele ano os americanos escolheriam pelo voto o 16º. presidente da nação e Lincoln era um candidato-zebra. Obtivera a indicação do Partido Republicano somente no terceiro escrutínio e poucos no país conheciam seus modos e feições. Tinha fama de desajeitado e introvertido, além de grandalhão – talvez pouco presidenciável para ocupar a Casa Branca. Como obscuro advogado do Kentucky que se elegera congressista pelo Illinois e agora pretendia disputar o comando do país, ele precisava de uma imagem nacional. Por isso encontrou tempo entre dois comícios e se apresentou a Brady sem hora marcada, no concorrido estúdio.
O fotógrafo optou por não fazer um retrato em close-up do candidato de 1m93 de altura e aspecto um tanto cadavérico. Recuou a câmera e decidiu tirar proveito do porte do candidato. No último momento pediu permissão para levantar-lhe o colarinho
– Já entendi. Você quer diminuir o meu pescoço, disse Lincoln.
– Exatamente, respondeu Brady-o-marqueteiro.
Acertou. Da sessão em que foi feita uma única imagem resultou a fotografia–ícone do candidato que se elegeu presidente. Ela é tida como o retrato mais conhecido daquele período.
Na apresentação em áudio à disposição do visitante da mostra, o curador Rosenheim dá ênfase especial ao retrato de uma ex-escrava, Sojourner Truth, que se tornou feminista de destaque no período. “Ela posa como quem está no controle do próprio destino, como quem afirma sua identidade. Encara a câmera de frente, com intensidade.” Alinhada na mesma parede e disposta em tamanho igual à de Sojourner está a fotografia do torso lanhado de um escravo que escapara de uma plantação do Mississipi e se refugiara junto aos soldados da União. Intitulada “Costas açoitadas” (“The scourged back”), a foto desempenha o papel de síntese da questão central da Guerra Civil – a liberdade da escravidão para todos – e transformou-se em imagem-ícone ao longo dos últimos 150 anos de história americana.
O impulso dado pela fotografia à disseminação de imagens de negros país afora, aliás, foi estrondoso. Tanto pela demanda crescente de retratos individuais e familiares, como pela própria presença do negro em flagrantes captados na guerra. Embora o negro americano estivesse proibido de servir nas Forças Armadas desde 1772, os libertos e emancipados podiam ocupar funções não militares para auxiliar as tropas no esforço de guerra – eram ferreiros, coveiros, serviçais de várias modalidades.
Foi em julho de 1861 que Abraham Lincoln reverteu essa política, ao permitir a formação das primeiras unidades negras a serviço da União. Ao todo, perto de 186 mil negros serviram nessas unidades segregadas, cuja existência foi mantida nas tropas dos Estados Unidos despachadas para lutar nas duas Guerras Mundiais. A segregação militar só foi abolida por decreto presidencial de Harry Truman em 1948.
Uma das figuras mais visionárias reveladas pela Guerra Civil foi o cirurgião Reed Brockway Bontecou, que atravessou o conflito atuando como dublê de fotógrafo clínico. Armado de sua câmera, foi quem talvez mais perto chegou do realidade cotidiana do conflito, quem produziu a evidência visual mais consistente da brutalidade com a qual a guerra afetou o indivíduo, não o coletivo. Durante três anos o doutor Bontecou empreendeu perto de 600 visitas a pacientes em hospitais de campanha. Por catorze meses seguidos, fotografou meticulosamente, de vários ângulos, cada caso de amputação, mutilação, ferimento a bala, perfuração no corpo, desidratação. Registrou cada caso com nome, data, acompanhado de uma ficha clínica apontando o tratamento dispensado. Ao final, deixou para a história da medicina uma documentação valiosíssima e pioneira de imagens com méritos tanto artísticos quanto científicos.
Diz-se que a Guerra Civil é a Ilíada de Homero dos americanos. Travada não por soldados profissionais, mas por cerca de três milhões de cidadãos voluntários na qual irmãos lutam contra irmos, pais contra filhos, amigo contra amigo, com cada lado tentando proteger sua terra. Os estudos mais atualizados de historiadores e demógrafos estimam em 750 mil o número de mortes resultante do conflito. Hoje, levando-se em conta o aumento da população do país, uma guerra de dimensões comparáveis custaria a morte de 7,5 milhões de americanos.
Ainda assim, passados 150 anos desde que Lincoln proferiu seu histórico discurso de Gettysburg anunciando “o renascer da liberdade”, igualdade racial e coesão nacional continuam em pauta.///
Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.