Sorria, você está sendo escaneado
Publicado em: 19 de junho de 2020A covid-19 transformou a cultura urbana, introduzindo elementos inéditos no cotidiano das cidades. A imagem da multidão, sempre associada à emergência e à vida das metrópoles, foi substituída pela das ruas vazias. O repovoamento paulatino do espaço público vem acompanhado do ressurgimento de seus habitantes de máscara. Acompanha esse quadro de “novo normal” a multiplicação das câmeras térmicas e a proliferação dos termômetros de infravermelho na entrada de qualquer lugar.
A paranoia é o horizonte estético pandêmico, e nada mais condizente com isso do que um termômetro em forma de arma. Inevitável pensar no que diria sobre esse tema o filósofo e urbanista Paul Virilio (1932-2018), que tantas vezes nos alertou para as dimensões políticas da automação da percepção e da industrialização da visão. Essa automação diz respeito à emergência de uma visão artificial, à delegação a máquinas de um olhar que não temos. Já a industrialização remete ao mercado da percepção sintética, fartamente instrumentalizada pelas formas de vigilância contemporâneas.
Um dos pilares desses sistemas de vigilância é o sensoriamento remoto, uma forma de monitorar e extrair dados sem contato físico com o objeto. Tecnicamente, os primeiros voos militares de balão, que eram realizados desde o fim do século 18, antes da invenção da fotografia, podem ser considerados a origem desse procedimento, numa arqueologia de suas práticas. E, muito embora a fotografia aérea tenha sido um dos marcos da Primeira Guerra Mundial, foi apenas no âmbito da corrida espacial e da Guerra Fria entre os EUA e a URSS que aquilo que entendemos por sensoriamento remoto se consolidou.
Em reação ao lançamento do Sputnik II (1957), os EUA lançaram o programa de espionagem Corona, que desenvolveria uma série de satélites para fotografar a União Soviética. Embalados em cápsulas, os filmes entravam em órbita e eram devolvidos à Terra por paraquedas, sendo coletados por aviões equipados com uma espécie de vara. Toda essa parafernália, que hoje parece uma obra do cineasta George Méliès (1861-1938), foi usada de 1959 até 1972 e é a antessala do fim da visão direta, que vivemos desde a década de 1980. A partir daí, com a migração dos sistemas analógicos para os digitais, a imagem passou a ser articulada a sensores, deixando de ser uma prótese compensatória do tempo não vivido e do que já passou, para tornar-se um amálgama de dados variados, como os campos eletromagnéticos não visíveis aos humanos.
Apesar de não enxergarmos, tudo aquilo que vemos reflete e absorve energia eletromagnética do sol. A forma pela qual cada superfície absorve e reflete a radiação identifica particularmente os diferentes objetos ou corpos, e constitui o que os cientistas chamam de “assinatura espectral”. Isso permite o desenvolvimento de uma gama de sensores, com finalidades variadas, para medir a energia de determinados comprimentos de onda. Os sensores utilizados por câmeras térmicas e pelos gun thermometers, popularizados pela covid-19, por exemplo, operam no espectro infravermelho.
Utilizadas em operações militares e em controle de fronteiras, essas câmeras tiveram um vertiginoso aumento de uso com a pandemia do coronavírus. Atreladas a drones, monitoraram Wuhan do alto, e um protótipo associado a alto-falantes foi testado no Recife. Recentemente, a Amazon implantou esse tipo de câmera em seus depósitos para monitorar o contágio entre seus funcionários. Ela funciona como um porteiro eletrônico. Caso o indivíduo esteja com febre, não entra. O corpo transforma-se, assim, na nova senha do novo normal.
Criticados pela relatividade de suas informações em veículos especializados e também na grande imprensa (para quem se interessar, há uma reportagem detalhada sobre o tema no New York Times), a popularização desses dispositivos traz ainda outras questões de ordem política, cultural e estética, relacionadas à naturalização e à opacidade dos sistemas de sensoriamento remoto.
Primeiramente. é preciso levar em conta que sua precisão está associada a um tipo novo de resolução de imagem: a “resolução temporal”. Ela é qualificada pela frequência com que os sensores revisitam e obtêm informações da mesma área. O que indica uma capacidade cada vez maior e mais sofisticada de ler (e armazenar, sabe-se lá em quais servidores) dados sobre funcionários de uma empresa, usuários do sistema público de transporte a caminho do trabalho ou da escola, e por aí vai.
Tudo isso é feito a partir de imagens da fisiologia do indivíduo, vistas por olhos totalmente maquínicos, que escaneiam o corpo e o reconstituem a partir da tradução de inputs eletromagnéticos em pixels que, ao final, em segundos, compõem um retrato “em rosa-púrpura e azulão” do sujeito. Um retrato só pode ser validado em um banco de dados, abrigado em uma nuvem computacional e submetido a alguma inteligência artificial que buscará padrões para eventualmente contribuir para a cura da covid-19. Mas que também podem vir a ser utilizados para outras finalidades. Não sabemos.
Faz parte da “industrialização da prevenção”, diz Virilio, a dinâmica “da previsão, espécie de antecipação pânica que mobiliza o futuro e prolonga a ‘industrialização da simulação’”, em um contexto em que “as contramedidas se constituem em objeto do segredo, da maior dissimulação possível”. E aí está o problema. Não se discute a necessidade de conter a propagação do vírus, mas sim como as estéticas da vigilância domesticam o imaginário, a partir de sua invisibilidade. São essas estéticas que transformam o monitoramento em um procedimento poroso, que adentra os corpos sem tocá-los, sem coerção e sem dor.
Na naturalização dos revólveres travestidos de termômetros e nas câmeras que recolhem a assinatura espectral dos nossos corpos, está contido, portanto, muito mais que a leitura da temperatura. Tais ferramentas trazem à tona, ainda que de forma cifrada por uma ciência militarizada, as pautas de uma óptica algorítmica que é preciso aprender a ver. Porque ela já nos enxerga. ///
Giselle Beiguelman é colunista do site da ZUM, artista e professora da FAUUSP. Assina também a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Memória da amnésia: políticas do esquecimento (2019), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).
+
Leia também no #IMSquarentena uma seleção de ensaios do acervo das revistas ZUM e serrote, colaborações inéditas e uma seleção de textos que ajudem a refletir sobre o mundo em tempos de pandemia.
Tags: câmeras térmicas, Covid 19, estéticas da vigilância, IMS Quarentena, novo normal, termômetro infravermelho, ZUM Quarentena